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Julia Mestre sozinha, com Bala ou arrepiada: não vai vacilar

A cantautora de 27 anos, parte dos Bala Desejo, vai apresentar o seu novo disco a solo em cinco concertos em Portugal. É um álbum pop e diverso que afirma a sua maturidade artística.

Arrepiada é o título do seu mais recente álbum a solo e também a palavra que melhor caracteriza a trajetória de Julia Mestre nos últimos tempos. A cantora, compositora e produtora brasileira de 27 anos foi uma das grandes responsáveis pelo fenómeno Bala Desejo — banda vencedora de um Grammy Latino com o álbum SIM SIM SIM no ano passado, quando se propuseram a refrescar a música popular brasileira com canções quentes de espírito tropical.

Agora, Julia Mestre prepara-se para atuar em nome próprio em Portugal. Uma mini digressão que começa esta quarta-feira, dia 27, no Porto (Hard Club), segue para Lisboa na quinta, 28 (Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, no âmbito do festival MIL) e sexta 29 (bar Samambaia), antes de Coimbra (Salão Brazil) e Esposende (NICE (Núcleo de Intervenção Cultural de Esposende), dias 30 de setembro e 1 de outubro. O mote, claro, é a apresentação de Arrepiada, editado em abril, um disco inspirado pela pop dos anos 80 onde a artista se procura afirmar.

Em declarações ao Observador, a cantora revela estar “muito expectante” para regressar a Portugal, depois do concerto “incrível” de Bala Desejo no Super Bock em Stock do ano passado, que aconteceu no Cinema São Jorge. “Foi muito bonito, mágico, ao tocarmos num cinema com aquela grandiosidade. Foi mesmo especial. E agora tenho mesmo vontade de voltar com um novo projeto, novas canções… Também fico curiosa com a receção do público.”

[o álbum “Arrepiada” na íntegra, no Spotify:]

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Herdeira da elite cultural do Rio de Janeiro, Julia Mestre cresceu a ouvir música, muito por culpa da mãe. Juntas partilhavam horas e horas de escuta de álbuns, que ajudaram a formar a compositora e intérprete em que se viria a tornar. Eventualmente aprendeu a tocar guitarra e foi aperfeiçoando a sua escrita, levando-a mesmo a conquistar um concurso de poesia. Estava a semente plantada para mais tarde ser convidada para o projeto I’m Alive, onde pôde compor ao lado de nomes importantes da música brasileira como Caetano Veloso ou Emicida. Só depois lançou o seu EP de estreia, Desencanto, em 2017.

Apesar de a música representar a sua maior paixão, Julia Mestre começou por ser artista enquanto atriz. Foi a sua primeira experiência: em 2014 participou no filme Confissões de Adolescente. É daí que vem o seu lado narrativo e performativo. “Gosto de pensar em personagens diferentes para cada projeto”, assume. “Quando me ouves em Bala Desejo, talvez encontres uma personalidade que faz parte daquele projeto, daquelas músicas; quando canto o Arrepiada, claro que existe uma transformação.”

[“Arrepiada”:]

Julia Mestre refere que teve de passar por uma “descoberta interior” para compor este trabalho elaborado e maduro, que apresenta uma “nova Julia”, ainda que não deixe de ser a mesma artista que apresentou Geminis, o seu primeiro álbum, em 2019. Tal como o disco de Bala Desejo, Arrepiada foi construído durante a pandemia. Se no projeto em grupo permitiu-se a explorar mais um sentido comunitário, inspirado pelo tropicalismo, ao cantar sobre “coletividade” em tempos de isolamento social; neste caso permitiu-se a olhar para dentro, a orquestrar um trabalho mais introspetivo.

“Bala Desejo transformou-me como artista, sendo que tocou muitas pessoas de uma maneira positiva e bonita. E sabia que, por ter escolhido o nome Arrepiada, precisava de me arrepiar por dentro. Então precisei de viver um ano inteiro de trabalho com Bala Desejo para me sentir fortalecida e compreendida por quem eu sou, e o que eu quero gritar para o mundo. Acho que só entendemos realmente estas coisas quando começamos a fazer estrada a sério e entendemos o peso que é segurar num microfone. Aquele ato tem muita responsabilidade. Porque te tornas porta-voz de muitas pessoas. Então não pode ser qualquer grito, tem de ser de liberdade, tem de vir de dentro.”

[“Chuva de Caju”:]

E faz questão de distinguir os dois projetos, até em palco. “Tem a ver com a energia que levamos para cada um. Cada filme tem a sua personagem e cada espetáculo também. Por estar ali com os meus parceiros de cena, numa banda, há todo um equilíbrio em palco. Sinto que em Bala Desejo descobri uma personagem que usa muito as mãos, as cores são mais douradas, o cabelo é solto… Bala Desejo bebe mais do tropicalismo, um som orgânico e vivo. O Arrepiada vai para uma lembrança dos anos 80, com timbres mais modernos, teclados… E sinto que a minha postura em palco vai para um lugar mais… Não sei se é rock’n’’roll, mas talvez mais atrevida, divertida, experimental”.

Entre “segredos” e “paixões”, num álbum com “muitas camadas” e “sentimentos muito femininos”, Julia Mestre vai expondo as suas “vulnerabilidades e inseguranças” nos 12 temas que compõem o disco. Também, lá está, por estar novamente a solo — mas agora com um reconhecimento e uma exposição maior, além de existirem mais expetativas e responsabilidade em torno da sua música. “Precisei de passar pela trajetória de Bala Desejo para que agora me sinta mais empoderada.”

Julia Mestre trabalhou com vários compositores (como Ana Caetano, João Gil, Zé Ibarra ou Lucas Nunes), enquanto a produção musical foi partilhada com Lux Ferreira, da dupla Lux & Tróia. Preferiram trabalhar no seu quarto, num ambiente acolhedor e familiar, e evitaram os estúdios grandes e impessoais. Juntos analisaram e pesquisaram timbres, referências ou estéticas musicais. Embora existam faixas bastante distintas dentro de Arrepiada, que tanto se aproximam do forró como do reggae, passando pela disco music ou pela percussão afro-brasileira que evocam os blocos de Carnaval, procuraram criar uma “unidade” sonora que funcionasse em harmonia.

Assume referências claras como Rita Lee ou Marina Lima, entre outras cantautoras do seu país, mas sublinha que não se fica pelo passado. “Também sou uma artista de 2023, do burburinho do agora.”

“Quem for ao espetáculo vai poder voltar um pouco atrás no tempo, porque brincamos com a estética dos anos 80 e com estes timbres todos. Tenho gostado muito de estar ligada a este universo. O espetáculo está muito divertido, muito dançável e é uma experiência que estou muito ansiosa de apresentar em Portugal pela primeira vez.”

Assume referências claras como Rita Lee ou Marina Lima, entre outras cantautoras do seu país, mas sublinha que não se fica pelo passado. “Também sou uma artista de 2023, do burburinho do agora.” Talvez por isso encontremos no alinhamento Do do u, uma faixa caseira, com pouco mais de um minuto, gravada no seu telemóvel, tal e qual como um esboço inacabado, ao estilo de Billie Eilish.

A única participação do disco vem precisamente de uma artista contemporânea, a portuguesa MARO, que tem passado largas temporadas no Brasil e trilhado uma carreira internacional. Juntas partilham o tema Sonhos & Ilusões, que nos últimos dias ganhou uma versão acústica gravada ao vivo pelas duas, no momento em que, finalmente, se conheceram pessoalmente. Julia Mestre conta que, antes de tudo, era fã de MARO e acompanhava a sua música à distância.

[“Sonhos e Ilusões”:]

“Comecei por ser espectadora. Mas reconheci-me muito nela, porque a MARO também tem timbres vocais mais graves. E durante muito tempo tive dificuldade para me entender como cantora, porque, quando comecei a trabalhar com a voz, perdia-a com muita facilidade. Muitas vezes ficava afónica. E fiquei muito triste, no início da minha carreira, porque perdia a voz muitas vezes. Dizia a mim mesma: nunca vou poder trabalhar nisto, porque não tenho controlo sobre a minha voz. E na altura disseram-me que eu deveria operar as minhas cordas vocais para solucionar o problema. Que bom que não o fiz e que ouvi uma professora de canto que me dava aulas, que me recomendou falar com uma fonoaudióloga para tratar a minha voz. Desde então fiz uma pesquisa e ouvi muitas cantoras que também tinham esta questão. Fui ouvir a Maria Gadú, a Vitória Falcão, e acabei no trabalho da MARO. Comecei a ouvir muito e identifiquei-me com a voz dela, apesar de termos vozes completamente diferentes. E o que sempre me impressionou é que a MARO é muito musical, toca todos os instrumentos”, explica.

Certo dia, Julia Mestre recebeu uma notificação inesperada no telemóvel. De forma espontânea, MARO tinha acabado de lhe enviar um vídeo por mensagem no Instagram, a ouvir o seu tema Mudar o Mundo e a dizer-lhe que era fã da sua música.

[“Meu Paraíso”:

“Eu fiquei: ‘caramba, não acredito’. E ela convidou-me para participar no projeto dela, de duetos nas redes sociais durante a pandemia, e cantámos essa música juntas. E aí começámos esta troca musical muito bacana. Quando comecei a gravar o meu disco, pensei: quero convidar alguém para fazer uma participação, mas tem de ser uma pessoa especial. E comecei a pensar neste processo, em como ouvir a MARO me fez perceber que eu também podia cantar e seguir este trabalho. Foi uma escolha muito simbólica e sensível para mim, fiquei muito feliz por contar com ela. Foi muito especial. Ainda mais por ser uma relação entre Brasil e Portugal.”

Enquanto uma das novas vozes e autoras da música brasileira, Julia Mestre assume que sente a “responsabilidade de não vacilar”. “É um processo de descoberta e de reflexão para a minha geração: quais os caminhos por onde estamos a ir? Tenho os meus mestres musicais, que me fizeram acreditar e me fizeram ouvir muita música. Fizeram parte da minha infância, da minha e de muitos outros artistas, contaram-nos muitas histórias. E espero estar nesta eterna construção de música, que é o que realmente me move.”

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