Rita Rustalova, padeira de Kiev, ainda está a tremer. Passaram duas horas depois da violenta explosão que abalou um edifício a 200 metros, mas não passaram os nervos, não passou a ansiedade, não passou a sensação de pânico. “Começou tudo a abanar. Foi pior do que um tremor de terra”, diz Rita ao Observador, a falar pelo pequeno rectângulo aberto no vidro da sua banca do pão.
Os clientes que estavam na fila da padaria “começaram todos a gritar. E alguns foram daqui para o local da explosão, para tentar perceber o que tinha acontecido”. Eram 11 da manhã em Kiev (9h em Lisboa), quando as baterias de defesa anti-aérea ucranianas atingiram um rocket russo. Os destroços atingiram em cheio um edifício e um elétrico na rua Kyrylivska, a apenas 5 km da Praça da Independência. Uma pessoa morreu. Seis ficaram feridas. E centenas de vizinhos afligiram-se quando sentiram o estrondo.
“Portugal!? Quero enviar a minha família para Portugal”
Ao lado da padaria de Rita, o dono da frutaria também viu muitos clientes fugirem com medo. Uma senhora caiu no meio do alvoroço e Samaidin Bairama largou a loja para lhe dar água e ajudá-la a levantar-se. “Claro que tive medo, fiquei assustado. Mas agora já passou”, tenta convencer-se este imigrante do Azerbaijão, que mantém a frutaria aberta e insiste em levar legumes a casa de alguns idosos que não arriscam sair, apesar da subida de preços dos vegetais.
Samaidin Bairama está em Kiev há 25 anos e recusa deixar a capital ucraniana, a que sente pertencer: “É a minha segunda casa e não gostava de ir para outro lado. Claro que a Ucrânia vai ganhar a guerra: a verdade ganha sempre. A Ucrânia é um país independente e vamos proteger este território”.
Um médico que pediu para não ver o seu nome publicado ouve este diálogo, percebe que estão ali jornalistas portugueses, e mete conversa com o Observador, em inglês: “Portugal? I want to send my family to Portugal” [Quero enviar a minha família para Portugal]. O médico não está a ajudar nos hospitais, porque diz que ainda não é preciso, mas mostra-se disponível para também ir salvar vidas, caso se chegue a essa necessidade.
Na verdade só permanece em Kiev por causa da lei marcial, que impede os homens com idade entre 18 e 60 anos de saírem da Ucrânia. Também não consegue lugar nos comboios para ir ter com a mulher e a filha a Lviv, pelo que esta explosão o apanhou em casa e o forçou a afastar-se dos vidros, para se proteger.
Faz muitas perguntas sobre o acolhimento de refugiados ucranianos em Portugal, teme que não seja possível para quem não tiver passaporte, e diz que tem recomendado à mulher e à filha que se dirijam para Bucareste, capital da Roménia, para depois irem até Portugal, onde sabe que a temperatura é “very hot”. Se não der, coloca Espanha e Itália como segunda e terceira opções.
O ex-combatente da União Soviética orgulhoso por ter o filho a lutar pela Ucrânia
Micola Markuca também mora perto do quarteirão atingido, mas não ouviu a explosão — admite que tem o sono muito pesado. Responde ao Observador enquanto assiste do lado de fora do perímetro de segurança à remoção dos escombros e vidros do prédio que aterraram estilhaçados na rua, junto a um carro que ficou com a frente destruída por ter chocado com o elétrico que estava na paragem, no momento do impacto.
Micola esteve na então Checoslováquia em 1968, ao serviço da antiga União Soviética, quando Moscovo reprimiu a Primavera de Praga. Hoje não esconde o orgulho por ter o filho como voluntário ao serviço das forças de defesa territorial da Ucrânia, apesar de o rapaz não ser militar: era motorista numa empresa de logística.
Este reformado continua a sentir-se seguro em Kiev e resiste à ideia de fugir para outra cidade ou país: “Acredito que a Ucrânia vai vencer esta guerra. Não tenho medo de viver aqui. Não tenho medo que os russos venham. Mesmo que bombardeiem Kiev, não tenho medo. As paredes de minha casa são bem espessas” — e abre as mãos para mostrar a largura das divisórias, como se quisesse enfatizar a segurança que sente dentro do seu apartamento.
Uma avozinha que passa a espreitar os escombros não se sente tão à vontade. Ia levar comida a uma amiga idosa quando se assustou com o barulho, com o estremecimento e com o fogo que viu no telhado do edifício. Admite o medo, até por ainda viver com os netos em Kiev, mas recusa ir-se embora: “(Niet) Não. A minha casa é aqui. Não tenho outro sítio para onde ir”. Só admite mudar de posição se os homens de Putin vencerem: “Não gostaria de ficar cá com os russos. Pode ser que nesse caso consiga sair a tempo”.
Uma cidade atormentada por sirenes, bombas e disparos da defesa anti-aérea
Kiev é hoje praticamente uma cidade-fantasma, atormentada pelo ruído sonoro de ambulâncias e veículos militares, pelas sirenes que frequentemente avisam que a cidade está a ser alvo de ataques aéreos do inimigo, e pelos disparos das baterias de defesa anti-aérea que rasgam os céus de vermelho durante a noite e madrugada (voltou a acontecer esta segunda-feira à noite pelas 21h41, como o Observador testemunhou).
Apesar do êxodo de refugiados, as autoridades estimam que continuem a viver 2 milhões de pessoas na capital ucraniana. E segundo o jornal Kyiv Independent, garantem que têm bens alimentares essenciais para durar pelo menos duas semanas a um eventual cerco russo.
Os comboios continuam a funcionar, algo incrivelmente, apesar de alguns atrasos. Esta segunda-feira de manhã havia 12 comboios a chegar ou a partir de Kiev entre as 11h e as 14h25. São fundamentais para transportar alimentos e outros bens de primeira necessidade às cidades cercadas. E para levar as mulheres e crianças até destinos mais seguros, em estações de outras cidades.
Na estação central da capital, todos os guichets estão fechados, exceto uma banca de café onde nem têm troco e oferecem a bebida e o balcão para informações e venda de bilhetes, onde esta segunda de manhã se acumulavam cerca de cem pessoas na fila. A “premium comfort waiting room”, com os seus sofás faustosos onde antes se sentariam os passageiros com bilhetes de primeira classe, acolhe agora as mulheres e crianças que aguardam lugar num comboio para partir.
Praticamente todas as lojas e restaurantes de Kiev estão agora fechados, bem como as escolas. Há recolher obrigatório entre as oito da noite e as sete da manhã. O trânsito infernal deu lugar a avenidas vazias, onde os carros com jornalistas, voluntários de organizações humanitárias e forças de segurança passam os sinais vermelhos e só param nos múltiplos checkpoints, em trincheiras montadas com barras de cimento, cruzes de ferro cravadas no chão, e bandeiras ucranianas espetadas em sacos de areia.
Nestes postos de controlo, militares que envergam vários uniformes diferentes, armados com Kalashnikovs intimidatórias, pedem a identificação aos passageiros dos carros. Um deles sorriu e disse “Obrigado” em português quando viu os passaportes dos enviados especiais do Observador: tinha estado em Portugal no Outono; agora, meses depois, está ali a controlar quem passa, numa missão cheia de nervos que pode correr mal a qualquer momento. Um outdoor publicitário numa das maiores avenidas dirige um apelo direto para fora da Ucrânia: “NATO close the sky” (NATO: fecha o espaço aéreo).
O exemplo de Zelensky que inspira os ucranianos a resistir em Kiev
Às 5 da manhã, Yuriy acordou com um estrondo. Vladislav caiu da cama. E Yevgueni despertou com os vidros de sua casa partidos: diz que foi salvo pelas cortinas. Os três são vizinhos de um edifício atingido por um rocket russo em Obolon, uma zona residencial a norte de Kiev, que fica a cerca de 9 km da Rua Bankova, onde trabalha o Presidente Zelensky. Duas pessoas morreram, três foram internadas no hospital, 9 foram tratadas no local, 63 foram resgatadas de suas casas com a ajuda dos bombeiros.
Depois de cair da cama num apartamento no prédio das traseiras, Vladislav foi à janela tentar perceber o que se tinha passado. Desceu à rua e ficou a ver as chamas no edifício vizinho e a aflição dos sobreviventes.
Depois de se certificar que não tinha sido atingido pelos vidros partidos das suas janelas, Yevgueni Danilevsky foi à varanda, viu o incêndio provocado pelo rocket no prédio do lado, mas não desceu à rua porque a família não deixou, por causa do recolher obrigatório.
Vive desde criança neste bairro. Estudou na escola que fica ao lado do prédio atingido, viu jogos de futebol no campo relvado mesmo em frente, levou familiares ao parque infantil que fica do outro lado. “Não saio daqui. Tenho aqui os meus amigos. Espero que os russos não matem civis em Kiev. Mas mesmo que aconteça alguma coisa, fico aqui. Não tenho medo. Acredito em Deus”.
Mas não aprova totalmente a postura dura de Zelensky, acha que devia insistir mais nas conversações diplomáticas e ser mais flexível, para ajudar a pôr fim à guerra.
Já Yuriy Bondar deixou-se ficar em casa assustado com a violência do impacto. Tem 59 anos, a idade limite em que ainda pode ser chamado a defender a Ucrânia, mas não é por ser proibido de sair que fica: “A minha terra é aqui.”
Se a Rússia conquistar Kiev, junta-se aos militares para combater e está pronto para pegar em armas. Mas para já aprova a estratégia ucraniana e a atuação do presidente: “É importante que Zelensky não saia de Kiev. Devemos lembrar-nos que Zelensky é um actor e por vezes representa. Mas é um bom líder e ainda bem que está em Kiev”.
É um bocado o que sente a padeira Rita Rustalova, que continua a trabalhar e a viver com a família em Kiev, apesar do medo, inspirada pelo exemplo do Chefe de Estado: “Zelensky é um tipo fixe. Está a fazer o seu trabalho de forma espectacular. E claro que a Ucrânia vai ganhar esta guerra”.