Fernando Medina quis fazer da redução da dívida a prioridade n.º1 da proposta de Orçamento do Estado que entregou na Assembleia da República no último dia 10 de outubro. Mas não será a saída do “top 3” dos países mais endividados da zona euro que irá proteger Portugal de ser contagiado por uma possível nova crise da dívida na Europa. A convicção é de John Plassard, diretor no grupo suíço Mirabaud, que, em entrevista ao Observador, defende que este não é o timing adequado para acelerar a redução da dívida – seria melhor, nesta fase, apostar em reformas pró-crescimento e na modernização da economia, defende.
O economista, que acredita ser inevitável uma recessão na Europa (que até já poderá ter começado), tem perspetivas um pouco mais animadoras para Portugal – “há razões para ter esperança, em relação ao próximo ano”, diz. Mas embora reconheça que é necessário reduzir o endividamento, diz estar muito mais preocupado com os indicadores de produtividade nos quais o país não tem conseguido fazer progressos suficientes. E confessa alguma perplexidade pelo facto de se pagar praticamente o mesmo numa bomba de gasolina em Portugal, um país com salários comparativamente baixos, e na Suíça, onde vive.
É inevitável que haja uma recessão na Europa no próximo ano?
É, quase a 100%, uma certeza. O FMI já veio dizer que um terço das economias mundiais vai ter um crescimento negativo, a Alemanha vai ter uma recessão, França também, Itália… Portugal não tenho tanta certeza…
Tem uma visão menos negativa para Portugal?
Nós, na Mirabaud, fomos um dos primeiros bancos de investimento – em 2014/2015 – a reconhecer que Portugal tinha feito um esforço tremendo, e atravessado um período de grande dor (económica), para sair da crise. Ao ponto de até conseguir reembolsar o FMI antes do tempo. Para reabilitar uma economia que estava quase destruída, para se sair de uma uma crise daquelas, é inevitável que isso traga alguma dor. Isso foi, aliás, uma coisa que me fez interessar muito pelo país nessa altura. Nesta fase, a importância que o turismo tem para a economia fez com que [Portugal], na recuperação da pandemia, não tenha tido uma retoma tão rápida quanto a média. Porém, neste ano de 2022, embora isso pareça não se sentir muito, Portugal deverá ter o crescimento mais robusto da Europa.
E daqui para a frente, no próximo ano, qual é a sua expectativa?
Nós vimos que a taxa de poupança, durante a crise da Covid-19, foi enorme – esse valor saltou para 10,9%, comparado com 7% antes da crise. Acreditamos que essa poupança vai ter um impacto importante no consumo. Por outro lado, sabemos que Portugal está a ser menos afetado, em termos diretos, pela guerra na Ucrânia. Aliás, a propósito disso, achei interessante que, nas sondagens que foram feitas em abril em toda a Europa, Portugal aparecia como o segundo país mais preocupado com as consequências económicas que a guerra podia trazer, logo após a Hungria. Faria sentido pensar que outros países podiam manifestar, desde logo, uma maior preocupação, como os alemães, que têm uma dependência muito maior do gás russo. Mas a questão é que, apesar dessa menor dependência de Portugal, os preços médios da energia são mais elevados do que a média na UE. Ainda ontem apanhei um táxi em Lisboa e constatei, ao olhar para os preços nas bombas de gasolina, que os preços são muito parecidos com os que se pagam na Suíça, onde vivo…
Isso deve-se, em parte, à diferença na carga fiscal sobre os combustíveis…
Sim, isso faz com que, apesar de Portugal ter menos exposição à Rússia, acaba por pagar custos muito elevados na energia. Porém, mesmo tendo isso em conta, o facto é que Portugal deverá ter um crescimento superior a 6% este ano, o que significa que irá ter, repito, o crescimento mais elevado em toda a Europa. Ou seja, Portugal tem uma dívida elevada, os salários médios são muito baixos mas, mesmo assim, irá ter a expansão económica mais robusta em toda a Europa. Isso faz com que, na minha opinião, haja razões para ter esperança para o próximo ano, embora saibamos que a inflação é muito alta, os impostos são elevados e os principais parceiros comerciais (Espanha, Alemanha, França) vão ter recessão ou, pelo menos, muitas dificuldades.
Na proposta de Orçamento do Estado para o próximo ano, o Governo mostra dar um enorme ênfase à redução da dívida – ambicionando sair do “top 3” dos países mais endividados [onde está acompanhado de Grécia e Itália] e mover-se para mais perto de um conjunto de países com dívida, ainda assim, um pouco menor, como França e Bélgica. O Governo quer baixar a dívida pública de 115% do PIB este ano para 110,8% em 2023. Essa deve ser a prioridade?
Penso que será muito difícil baixar a dívida nas ordens de grandeza que se preveem. Toda a gente quer impulsionar o crescimento, toda a gente quer reduzir a dívida, todos os países querem ter os melhores ratings, claro que sim… Mas isso é wishful thinking (“sonhar acordado”). Estamos possivelmente a entrar numa recessão. As recessões não são necessariamente um grande problema, porque fazem parte dos ciclos económicos normais, mas não sei se devemos pedir às pessoas que paguem mais impostos quando estão a perder o emprego ou a ver os seus rendimentos baixarem. Queremos pedir-lhes, a essas pessoas, que paguem impostos mais elevados quando vão abastecer o carro porque o Estado quer baixar a sua dívida, neste contexto? Não me parece…
OE2023. Medina reitera objetivo de retirar Portugal da lista de países mais endividados
Então qual seria, na sua opinião, a estratégia mais correta?
Mais do que o rácio da dívida, onde eu vejo um problema é que Portugal está no lugar número 29 em termos de produtividade, entre os países desenvolvidos. A produtividade é muito baixa, é uma das mais baixas da Europa. Quando se tem uma produtividade baixa, deficiências nas infraestruturas, é muito difícil conseguir crescer de forma mais rápida para “matar” a dívida.
Quer dizer com isso que faria sentido baixar a dívida, sim, mas a um ritmo mais lento – dando maior importância às reformas pró-crescimento?
Sim, totalmente. Vemos como a indústria em Portugal precisa de ser modernizada, vemos como o sistema judicial precisa de ser reformado e melhorado para funcionar mais rapidamente… Ou seja, as deficiências estão bem identificadas e, por regra, aquilo que os governos não fazem (e deviam fazer) são reformas quando as coisas estão bem, quando está a haver crescimento. Portugal tem muitos fatores positivos, por exemplo o papel das energias renováveis, mas há coisas que estão há anos a precisar de ser reformadas. Isso fica provado no facto de a produtividade ser tão baixa, em comparação com outros países, e não devia ser assim, porque Portugal tem pessoas que estão disponíveis para trabalhar, para produzir, mais do que em França por exemplo, onde estão sempre na rua a gritar contra o governo e contra tudo.
Já disse que não acredita que irá acontecer, mas vamos assumir que a dívida cai mesmo ao ritmo que está previsto. Nesse pressuposto, caso haja um ressurgimento das tensões na zona euro, seja por problemas em Itália ou outra razão qualquer, Portugal vai ser arrastado para essa crise ou acredita que a redução da dívida e a saída desse top 3 vão proteger Portugal nos mercados?
Penso que não. Lamento dar esta resposta, mas não. Ainda há pouco falámos da baixa produtividade, dos padrões de vida, das reformas que têm de ser feitas, não me parece o mais adequado que neste momento se esteja a criar um período de “dor” – só para baixar a dívida de forma mais rápida. Numa altura em que se acredita que a maior parte dos países europeus vai cair em recessão no próximo ano, não tenho a certeza de que seja um bom momento para fazer isso. Não estou a dizer que não é importante para Portugal reduzir o endividamento, mas o problema é que o timing é muito difícil nesta altura.
Disse que as recessões são normais, no ciclo económico. Não vê isso com preocupação, esse risco?
Eu diria que a principal “fenda” que existe na economia global está ligada à geopolítica e à guerra na Ucrânia. Antes da invasão da Ucrânia, estávamos numa fase em que se perspetivava um grande aumento da procura, programas de estímulo pós-Covid, retoma, etc. Depois, a partir de 24 de fevereiro, ficou evidente o quão dependente a Europa é da energia russa e, na verdade, quão dependente é do resto do mundo. A guerra está a obrigar os líderes europeus a tomar decisões difíceis, num contexto em que a inflação na zona euro está quase em 10%, no Reino Unido há estimativas de que possa chegar aos 22%…
Estamos perto do pico na inflação?
Não creio. Penso que o pico da inflação ainda não chegou. Mas é difícil prever porque não sabemos o que vai fazer o sr. Putin nos próximos meses.
Se a guerra terminasse amanhã, com um compromisso relativamente pacífico, seria tarde para evitar a recessão?
Não, porque acho que já estamos em crescimento negativo neste momento, na Europa. A Alemanha já deverá estar em recessão neste momento: o governo antecipa uma recessão no próximo ano e reconhece que este quarto trimestre – no qual já estamos – seja negativo. Mas, como dizia há pouco, as recessões são uma parte normal do ciclo económico. A questão é quanto é que dura a recessão – em média. Nas recessões desde a Segunda Grande Guerra, cada recessão dura cerca de 11 meses (na Europa).
E se durar mais do que 11 meses, desta vez?
Aí teremos um problema. Mesmo que eles [Rússia e Ucrânia] dessem um aperto de mão amanhã, teríamos uma recessão – mas penso que seria uma recessão ligeira. O risco é que não haja fim na guerra, nos próximos tempos, o que levará a que se tornem mais perigosas as situações de escassez de energia e de outros bens e serviços essenciais – falhas de luz no Natal, população a ter de diminuir o aquecimento…
BCE sobe juros (enquanto é tempo) e admite recessão em 2023, num cenário “muito negro”
Neste contexto, qual é a sua avaliação sobre a forma como os bancos centrais estão a conduzir a política?
Ficou demonstrado que Christine Lagarde estava errada. Há mais de oito meses eu disse num programa de televisão que o BCE tinha de dar o passo de aumentar as taxas de juro, sobretudo a partir do momento em que Jerome Powell nos EUA [presidente da Reserva Federal] diz, em novembro de 2021, que a inflação não era apenas transitória. A presidente do BCE, agora mais recentemente, admitiu que estava errada na análise da inflação e há quem questione se, pela proximidade que ela tem com Mario Draghi (na altura, primeiro-ministro de Itália), ela não atrasou a subida dos juros porque havia um receio de que isso pudesse desestabilizar Itália e, por consequência, o resto da zona euro.
Depois dessa hesitação inicial, agora estão a correr atrás do prejuízo?
Neste momento, os bancos centrais estão a correr atrás da inflação e estão, ao mesmo tempo, a ganhar margem nas taxas de juro para poder baixá-las, se for necessário, na próxima crise. A nossa perceção é que voltou a sentir-se algum risco nas dívidas soberanas, até porque até ao momento a nova ferramenta do BCE anti-fragmentação [contra o risco de dilatação excessiva dos juros da dívida dos países] não foi explicada aos jornalistas nem aos investidores. No que diz respeito às taxas de juro, a janela de oportunidade para o BCE poder subi-las está a fechar-se rapidamente. Porque depois de se confirmar que se está em recessão é uma certeza que não irão subir mais as taxas de juro.
Acredita que é mesmo assim? Numa recessão, o BCE vai parar as subidas de juros mesmo que a inflação continue sem dar sinal de acalmar?
É impossível [que continuem a subir juros]. Com uma recessão, pessoas a perder o emprego, consegue imaginar nesse contexto o BCE a fazer com que as prestações de crédito continuem a subir de forma significativa? De qualquer forma, o raciocínio deles é o seguinte: acreditam que se houver mesmo uma recessão então a procura económica vai cair e isso vai conter a inflação. Aliás, os dados sugerem que a procura já está a cair e o maior pessimismo já se alastrou: até na Suíça, onde vivo, a inflação está relativamente mais controlada e mesmo assim os indicadores de sentimento económico e confiança dos consumidores estão em níveis muito baixos. Se o BCE inverter o rumo antes do tempo, isso será um erro enorme na política monetária. Porque precisamos de atacar a inflação e precisamos de reunir munições para uma eventual nova crise. Ou seja, se tivermos uma recessão que se prolongue por mais do que os habituais 11 meses, precisamos de ter mais munições [para poder estimular a economia baixando as taxas de juro]. Nesta fase, se o BCE não for suficientemente “hawkish” [agressiva] isso será, na minha opinião, um erro de política monetária.
Além do risco monetário, falávamos há pouco sobre os riscos políticos. Preocupam-no?
Essa é outra “fenda” que vejo na zona euro: a política, com a extrema-direita a chegar ao Governo na Itália, na Suécia; Macron em França a perder a maioria absoluta; na Alemanha Olaf Scholz e o SPD estão com as piores sondagens de sempre… Tememos que neste contexto de subida das taxas de juro isso poderá, a dada altura, colocar em perigo a união que existiu entre os Estados-membros quando surgiu a pandemia. É por isso que acreditamos que o euro vai continuar sob pressão, sobretudo face ao dólar. E também é por isso que achamos que as ações europeias estão menos atrativas do que os EUA, muito embora estejam a negociar com avaliações mais contidas do que as ações norte-americanas.
Evitar o euro, investir mais nos EUA do que na Europa. As bolsas têm vivido meses turbulentos, quando poderão recuperar?
Num cenário de recessão, o que eu digo sempre aos clientes é que apenas é necessário adaptar os seus investimentos: apostar mais em setores defensivos como a saúde, telecomunicações, retalhistas etc; e apostar menos em empresas tecnológicas, ações chamadas “de crescimento”, que são mais penalizadas num cenário de taxas de juro mais elevadas. Porém, quando se olha para os mercados acionistas, historicamente a pior parte do ciclo é sempre aquele momento em que se antecipa a recessão. Depois desse momento, o que a experiência nos mostra é que é aí que se deve recomeçar a investir, precisamente no momento em que se entra oficialmente na recessão. Porque a dada altura os mercados vão passar a prever a saída da recessão, começam a ver a luz ao fundo do túnel. Os únicos riscos são o perigo de haver erros na política (monetária ou governamental) e o risco de haver um cenário mais negativo na guerra.
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