É uma manhã como tantas outras na marginal de Tel-Aviv. Jovens e menos jovens cruzam-se em todas a direcções nas suas corridas matinais – há mesmo quem consiga correr empurrando um carrinho de bebé. Passeiam-se cães, faz-se ginástica em aparelhos, na praia são já inúmeros os grupos que praticam voleibol. Uma amanhecer tranquilo e luminoso como tantas outras quintas-feiras. Ou será que não?
Nos telemóveis já caíram as notícias mais recentes. Nessa noite, houve ataques na fronteira do Líbano que provocaram vários feridos apesar de a região de fronteira ser hoje um rosário de aldeias fantasma. Aviões israelitas atingiram alvos nas montanhas do sul do país. E há mais notícias onde se especula sobre a origem dos pagers e walkie-talkies que explodiram nos últimos dois dias, atingindo milhares de operacionais do Hezbollah – uma das mais recentes, revelada pelo New York Times é que pode haver uma firma israelita escondida por detrás dos fornecedores do equipamento.
Não fossem estes últimos desenvolvimentos e dir-se-ia uma manhã como tantas outras, pois todos os dias são atirados rockets contra o norte de Israel, todos os dias há aviões israelitas em missões no sul do Líbano ou em Gaza, ou então notícias de progressos ou reveses do exército neste enclave. É assim há muitos meses, nenhuma destas notícia, e agora a ameaça da abertura de uma nova frente na guerra parece capaz de distrair os que correm ou passeiam na longa e ampla marginal de Tel-Aviv, como na véspera à noite não terão perturbado os muitos milhares que enchiam as inúmeras esplanadas na cidade.
Contudo, agora pode ser diferente. Nos últimos dias multiplicaram-se os sinais de que Israel pode estar a preparar uma invasão do sul do Líbano, seja ela uma invasão preemptiva, para evitar mais ataques do Hezbollah, surja ela como reacção a um ataque da milícia xiita, até como retaliação pelo que acaba de lhe acontecer. Talvez também por isso são limitados os festejos por uma operação que, mesmo não reivindicada por Israel, poucos duvidam que terá sido obra do seu serviço secreto, a Mossad, uma operação tão extraordinária e aparentemente tão eficaz que supera mesmo a imaginação.
A reacção do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, não ficou longe do que se esperaria – acusou Israel de levar a cabo um massacre e “ultrapassar todas as linhas vermelhas”, admitiu que foi “um golpe muito duro” e prometeu retaliação. Mais ou menos à mesma hora, a aviação israelita realizava uma das suas maiores operações no sul do Líbano.
Entre a urgência e a prudência
“Não temos alternativa senão entrar no Líbano, e quanto mais depressa melhor”, diz ao Observador Amir Aviv, brigadeiro general na reserva, fundador de um think-tank dedicado à defesa e segurança e claramente um “falcão”.
“Irmos para o Líbano sem antes resolvermos Gaza significaria que as hipóteses de uma solução política desapareceriam, se o fizermos ficaremos presos em dois pântanos”, havia defendido horas antes Israel Ziv, major general também na reserva e antigo chefe de operações do IDF, o exército israelita.
“Uma guerra no Líbano pode desferir um golpe mortal, terminal em Israel: se o IDF não conseguiu destruir o Hamas certamente que não conseguirá destruir o Hezbollah, que é centenas de vezes mais poderoso do que o Hamas”, escrevia no Haaretz (diário ligado à esquerda israelita), Itzhak Brik, também ele major general, herói da guerra do Yom Kippur, antigo provedor do soldado no IDF e um forte crítico das opções militares do país.
Junto à fronteira do Líbano, no alto de uma colina de onde se avista o muro em ziguezague que marca a separação entre os dois países, não longe de um rebanho de cabras apascentado por um árabe israelita e ouvindo ao longe o som de armas automáticas, o tenente-coronel Dotan Razili é mais comedido e escusa-se a dar qualquer opinião: “Já sabem, dois judeus, quatro opiniões…”
Mas este militar, que fala com uma arma automática a tiracolo, uma pistola no cinto e um auricular na orelha, conta como, apesar de toda a parafernália electrónica, continua a confiar num pequeno apito amarelo para dar o alarme. Este militar e os seus homens não têm muitas dúvidas: dentro de poucos dias, ou mesmo de poucas horas, podem estar a combater dentro do Líbano e é para isso que estão a ser treinados.
Os sinais políticos estão lá todos. Na última reunião do conselho de ministros, o governo acrescentou aos dois objectivos declarados desta guerra – a libertação dos reféns e a eliminação do Hamas – um terceiro: o regresso a casa das populações retiradas da faixa fronteiriça com o Líbano. Serão ainda mais de 60 mil os habitantes das aldeias e kibutzim (o plural hebraico de kibutz) do norte de Israel que se encontram deslocados, tendo sido levados para outras regiões do país e muitos vivendo em situações precárias há quase um ano.
Na mesma altura, o ministro da Defesa, Yoav Gallant (que estava para ser despedido do posto por ser um rival do primeiro-ministro Netanyahu), deslocou-se ao norte para falar aos soldados e comentou que as soluções diplomáticas para resolver a crise na fronteira do Líbano estavam esgotadas. Logo a seguir explodiram os pagers (na terça-feira) e os walkie-talkies (na quarta-feira), matando pelo menos 37 pessoas e ferindo quase três mil, ao mesmo tempo que unidades militares se começavam a dirigir para o norte do país e o IDF anunciava que, em torno de Haifa (a grande cidade do norte de Israel), haveria estradas cortadas para “manobras militares de rotina há muito agendadas”. Na quinta-feira, Gallant voltou a falar para defender que “o centro de gravidade da guerra está a mover-se para norte”. No mesmo dia, Netanyahu quebrou o silêncio e, sem se referir às explosão dos pagers, prometeu apenas, numa pequena mensagem em vídeo, que Israel já disse que devolverá “os residentes do norte em segurança às suas casas “e é exatamente isso que faremos”,
Um só obstáculo parece neste quadro interpor-se entre o prolongamento da actual guerra de atrito com o Hezbollah e uma operação militar de maior envergadura, porventura uma terceira guerra do Líbano: a oposição dos Estados Unidos. Até porque a opinião pública dá indicações de apoiar maioritariamente uma acção militar – uma sondagem divulgada esta semana indica que dois em cada três israelitas estarão do lado dos que defendem uma acção preemptiva contra o Hezbollah, porventura uma terceira guerra no Líbano.
A “guerra esquecida”
A memória das guerras anteriores não é positiva e nem todos a desejam. Ishay Efroni é uma dessas pessoas apesar de o encontrarmos também de arma automática a tiracolo (“anda sempre comigo, como os meus sapatos”) no limite de um dos kibutz de onde se avista a fronteira libanesa, o kibutz de Metsuva. Até ao 7 de Outubro viviam aqui 1300 pessoas, 200 famílias — agora, Ishay é o único que percorre as ruas desertas cumprindo a sua missão como chefe de segurança. Também a sua família foi para longe, pois aqui nem sempre há tempo para correr para os abrigos quando soa o alarme, uma corrida que todos sabem fazer e que não pode demorar mais de 10 segundos.
Aqui o risco é serem atingidos por tiros de armas anti-tanque disparados das colinas que se avistam a pequena distância, apenas algumas centenas de metros. “Contra esses disparos não há aviso possível, contra eles não temos a protecção do Iron Dome”, o sistema de protecção dos israelitas contra mísseis. E mesmo com o Iron Dome há por vezes projécteis que passam: dois dias depois de termos estado em Metsuva um outro kibutz mesmo ao lado, Ya’ara, foi atingido por um drone suicida, do ataque resultando seis feridos.
A ameaça é de facto constante. No 7 de Outubro, o Hezbollah não atacou, sinal de que porventura foi apanhado desprevenido pela ofensiva do Hamas em Gaza — mas a partir de dia 8 os bombardeamentos a partir do sul do Líbano passaram a ser constantes.
“Já contabilizámos mais de três mil ataques nestes 11 meses”, precisa Sarit Zehavi, tenente-coronel na reserva, fundadora e presidente da Alma, uma organização não governamental que se dedica a estudar temas de segurança no norte de Israel. “Em alguns destes ataques foram disparados dezenas de mísseis ou de drones. Não podemos subestimar o Hezbollah, não podemos cometer a norte o mesmo erro que cometemos no 7 de Outubro”.
Para esta organização que monitoriza os órgãos de informação árabes, segue as redes sociais do Hezbollah e escuta e traduz as aparições públicas do seu líder, Hassan Nasrallah, o grande erro que permitiu o ataque terrorista de há quase um ano foi não compreender e não conseguir pensar como estas organizações — foi não entender que o seu objectivo final é a destruição de Israel e que qualquer acordo ou mesmo qualquer cessar-fogo nunca é mais do que um compasso de espera. Por cada túnel que se descobre há sempre mais um ou dois em construção, sendo que no Líbano o território é imensamente mais vasto. Para além de que, para a forma de pensar destas organizações, qualquer derrota nunca é a final.
Estará o Hezbollah enfraquecido?
É por isso que Sarit Zehavi não acredita que a vaga de atentados dirigidos que o exército israelita tem levado a cabo nos últimos meses, e que já permitiu eliminar um total de 49 quadros superiores da estrutura militar do Hezbollah (o Observador falou com ela ainda antes de serem conhecidas as explosões dos pagers e dos walkie-talkies), esses assassinatos podem enfraquecer a cadeia de comando mas apenas isso – há sempre alguém que toma o lugar dos que morrem. E depois, insiste, é mesmo preciso ouvir Nasrallah e levá-lo a sério, mesmo quando fala do apocalipse.
Do apocalipse? Sem dúvida: numa entrevista dada pelo líder do Hezbollah e que Sarit Zehavi mostra legendada, Nasrallah exibe vários mapas e explica que em Israel quase todas as infraestruturas e a esmagadora maioria da população estão concentradas numa estreita faixa de 17 quilómetros de largura entre o mar e os territórios da Margem Ocidental: é aí que estão todos os edifícios governamentais, as centrais elétricas e as industriais, os centros comerciais e as zonas de escritórios. “Temos mísseis suficientes para arrasar tudo isso”, concretiza. “É só querermos”.
O arsenal do Hezbollah é de facto impressionante e não tem comparação com o do Hamas. A milícia xiita tem mesmo mísseis iranianos que podem realizar ataques de precisão, nada que se compare com muito do armamento do Hamas que é disparado literalmente ao acaso.
“Lidar com esta ameaça para nós não é uma questão de opção, esta não é uma guerra de escolha, não podemos ter ilusões: se duvidam, leiam as redes sociais e vejam como não há sinais de que estejam cansados, se duvidam ouçam depoimentos como o de uma mãe quase que a pedir desculpa a um repórter por ainda não ter nenhum filho mártir”.
Sarit não tem, contudo, sugestões a dar, apenas avisos que nunca se cansa de repetir, mesmo sabendo que as anteriores guerras no Líbano nunca correram bem, mesmo quando pareceram trazer vitórias no curto prazo.
A memória das duas guerras do Líbano
Em 1982, os tanques avançaram até Beirute, a pressão militar acabou por obrigar a OLP a retirar do Líbano – Yasser Arafat transferiu o quartel-general da organização para a Tunísia –, mas a verdade é que no lugar da Fatah temos hoje o Hezbollah. A verdade também é que a memória dessa intervenção ficou indelevelmente marcada pelos massacres de Sabra e Chatila. E, porventura mais importante ainda, a verdade é que os actuais líderes do Hezbollah, tal como os do Hamas, não são como Arafat — preferem morrer a fugir.
Depois, em 2006, os tanques voltaram a cruzar a fronteira, empurraram o Hezbollah mais para norte, as Nações Unidas aprovaram uma das poucas resoluções que Israel cita com frequência, a resolução 1701 que previa o estabelecimento de uma zona desmilitarizada entre a fronteira e o Rio Litani, controlada por uma força internacional, a UNIFIL (de que Portugal já fez parte).
Só que “essa força das Nações Unidas é como se não existisse”, queixara-se Ishay Efroni no kibutz de Metsuva. “Eu nem estou a ver que soldados vindos de outras regiões do mundo estivessem dispostos a morrer para conter as infiltrações do Hezbollah, preferem olhar para o lado”.
“Se calhar é sinal de que temos de voltar a entrar no Líbano para os empurrar de novo para norte”, concluiria Dotan Razili, sugerindo que porventura Israel está condenado a travar uma guerra na sua fronteira norte de 20 em 20 anos, e sempre para criar uma zona de segurança.
Há, no entanto, a consciência de que agora tudo pode ser diferente – no fundo, que o tal risco fatal para o destino do país de que falam as vozes mais críticas pode mesmo existir. Uma ofensiva terrestre, a ofensiva terrestre que a diplomacia americana tanto se empenha em impedir, pode levar à guerra total não apenas com o Hezbollah mas também com o Irão, e se dela pode resultar um Líbano arrasado, “tão atrasado como na Idade Média”, para Israel poderia implicar uma destruição equivalente a um recuo de 50 anos, como alguns verbalizam. Daí também que muitos tentem entender o significado exacto da vaga de explosões de pagers e walkie-talkies, assim como o seu timing.
“The winter is coming?”
Na noite da explosão dos pagers houve quem recordasse uma das imagens mais icónicas das guerras de Israel, a dos aviões e aeródromos egípcios destruídos na salva de abertura da Guerra dos Seis Dias, um golpe preemptivo que praticamente selou o destino desse confronto. Agora, estes milhares de explosões teriam o mesmo efeito, desarticulando a estrutura de comunicações do Hezbollah e abrindo caminho aos tanques do IDF, mas esta teoria depressa perdeu adeptos. A interrogação passou a ser o timing de uma operação que poderia ter sido taticamente muito útil no teatro de operações mas que, sem mais, apenas servirá para humilhar o adversário. Passou então a falar-se da hipótese de a ordem ter sido dada porque se corria o risco de a sabotagem dos aparelhos eletrónicos ser descoberta.
Mesmo assim, permanece a percepção de que a guerra a norte é inevitável – ou, para reproduzir a expressão que ouvimos ao general-falcão Amir Aviv, “the winter is coming” [o icónico aviso da série Guerra dos Tronos]. O que desespera os que olham sobretudo para sul, para Gaza, e para a tarefa incompleta de libertar todos os reféns, pois ainda há 101 em cativeiro (30 já estarão mortos, mas a recuperação dos corpos é considerada vital pelas famílias e pela cultura judaica).
Collete Avital, antiga embaixadora que esteve muitos anos colocada em Lisboa, é hoje uma das voluntárias que dá apoio às famílias das vítimas e dos reféns e que organiza campanhas por todo o país e no estrangeiro. Não tem dúvidas de que um ataque a norte representará uma péssima notícia para os que ainda estão presos nos túneis de Gaza, assim como para as suas famílias, que deles nada sabem. Uma opinião corroborada por Daniel Shek, outro antigo embaixador que também é voluntário na mesma organização. Sem querer tomar posição política, para salvaguardar a independência desta ONG, faz apenas uma distinção simples: “Entre os três objectivos definidos pelo Governo – libertação dos reféns, derrota do Hamas e regresso a casa das populações do norte – não sei qual o mais importante, mas sei qual o mais urgente”.
Uma urgência que sentimos bem naquela sala forrada com imagens dos reféns, naquele edifício não muito longe de onde um grupo de familiares realizava mais uma manifestação a exigir acção ao governo e nas várias vozes que, do kibutz de Nir Oz, um dos mais massacrados no 7 de Outubro, ao kibutz de Metsuva, ouvimos por mais de uma vez: “Se para libertar os reféns tivermos de libertar todos os terroristas palestinianos que estão presos, então libertem-nos já”.
Mas as consequências de um tal passo são toda uma outra história a que teremos de regressar.
O Observador integrou um grupo de jornalistas europeus que esteve em Israel a convite da EIPA, Associação de Imprensa Europa-Israel