Timothy Ray Brown foi a primeira e única pessoa no mundo a conseguir eliminar todo o VIH (vírus da imunodeficiência humana) do organismo, mas sente-se culpado por isso. “Vivo em Palm Springs, na Califórnia, um lugar onde há muitos seropositivos. E sinto alguma ‘culpa de sobrevivente’, quer dizer, é difícil ser a única pessoa no mundo que foi curada”, disse ao Observador.
O norte-americano confessa ter um quotidiano “aborrecido”, sempre que não está em conferências. “Acordo de manhã, tomo o pequeno-almoço, tento ir ao ginásio. Basicamente estou a tentar que o meu corpo volte a funcionar como antes. Está a chegar lá, mas é um processo longo”, contou o sobrevivente, de voz entrecortada para recuperar o fôlego.
Todos os tratamentos, incluindo os dois transplantes por causa da leucemia, deixaram marcas profundas na vida de Timothy Ray Brown. “Quase morri variadas vezes, devido a complicações.” Mas a verdade é que, de alguma forma, se curou e agora promove a investigação de uma cura para todas as pessoas. “Provavelmente não será da mesma maneira como fui curado, porque é bastante perigoso”, lembrou. “Mas existem vários cientistas brilhantes a tentar descobrir a cura para o VIH neste preciso momento e isso é uma grande esperança.”
Timothy Ray Brown estava a estudar na Alemanha, em Berlim, quando lhe foi diagnosticada a infeção com VIH, em 1995. Vivia na capital alemã há dois anos e por lá ficou até 2010. “Nunca senti qualquer estigma em Berlim, de todo, porque Berlim é uma cidade muito liberal e as pessoas têm uma mente muito aberta. Depois de ter sido diagnosticado com VIH, contei a todos os meus colegas, no café onde trabalhava e aos patrões. E portanto toda a gente sabia.”
Bem, nem todas as pessoas sabiam. “Levei algum tempo até ser capaz de contar à minha mãe. Tinha-lhe sido diagnosticado cancro da mama e ela estava a fazer tratamento. Por isso, esperei algum tempo até lhe dizer que era seropositivo.” E não foi o único caso. “A minha antiga colega de casa em Seattle disse-me uma vez que, se eu alguma vez fosse diagnosticado com VIH, ela deixaria de ser minha amiga. Então tive medo de lhe contar. Mas mais tarde, depois de estar curado, foi mais fácil contar-lhe e ela pediu desculpa pelo que tinha dito.”
Logo depois do diagnóstico começou o tratamento antirretroviral (com medicamentos contra o retrovírus VIH) e durante cerca de 10 anos afirma ter vivido uma vida normal. Até que, inesperadamente, se começou a sentir muito cansado, mesmo nas atividades que fazia diariamente. Na altura, ainda só tinha 40 anos.
Disseram-lhe que tinha anemia, falta de glóbulos vermelhos (ou de hemoglobina) no sangue. Mas uma semana de transfusões sanguíneas não foi suficiente para resolver a situação. Depois de fazer uma biopsia à medula óssea, Timothy Ray Brown descobriu que afinal tinha leucemia mieloide aguda, uma doença maligna de evolução muito rápida que impede a formação normal de glóbulos brancos.
Foi assim que conheceu Gero Hütter, o médico que haveria de ser o responsável pela sua cura. “Os médicos disseram-me que precisaria de quatro ciclos de quimioterapia, cada um de uma semana, com várias semanas de intervalo entre eles. Fiz o primeiro ciclo e correu tudo bem. No segundo ciclo tive uma pneumonia causada por um fungo, mas passou com um tratamento antifúngico. Durante o terceiro ciclo tive uma infeção grave e fui posto em coma”, contou Timothy Ray Brown num testemunho pessoal na revista científica Aids Research and Human Retroviruses (2015).
O “Paciente de Berlim” – assim chamado por ter sido tratado nos hospitais universitários desta cidade -, pensava que os ciclos o tratariam, mas afinal o médico planeava para ele um transplante de medula. Nesta fase do tratamento teve mais sorte, havia 267 dadores compatíveis. Oitenta destes dadores tinham sequenciação do ADN (uma mapa dos genes), o que permitiu ao médico Gero Hütter tentar algo diferente: procurar um dador que tivesse uma mutação na proteína CCR5 dos linfócitos CD4. A proteína CCR5 é a porta de entrada nas células imunitárias CD4 que o VIH ataca, mas nas pessoas com esta mutação rara, a porta está bloqueada.
A leucemia, entretanto, estava em remissão e Timothy Ray Brown decidiu que não queria fazer o transplante. “A taxa de sobrevivência dos transplantes de células estaminais não é formidável, normalmente é cerca de 50/50”, escreveu no testemunho. Mas, em 2006, a leucemia voltou e o Paciente de Berlim não teve outra hipótese senão aceder ao transplante.
No dia 6 de fevereiro de 2007, o dia que Timothy Ray Brown chama de “segundo nascimento”, foi feito o transplante. E, a partir desse momento, o sobrevivente nunca mais tomou medicamentos antirretrovirais (contra o VIH). “Depois do primeiro transplante dei-me muito bem. Voltei ao trabalho, voltei para o ginásio — já lá tinha estado, mas sem nunca ganhar massa muscular. Depois do primeiro transplante fui capaz de ganhar massa muscular e isso foi muito bom. Agora, acho que estou a ficar gordo”, disse, entre risos, na entrevista ao Observador.
Mas, um ano depois, Timothy Ray Brown estava a receber um novo transplante do mesmo dador. Uma pneumonia tinha feito regressar a leucemia. “[Com o novo transplante,] a recuperação correu mal. Fiquei com delírios, quase ceguei e fiquei praticamente paralisado. Tive de reaprender a andar num centro para doentes com lesões cerebrais graves”, escreveu no testemunho de 2015.
“Quando os médicos disseram que provavelmente estava curado do VIH fiquei bastante feliz”, contou ao Observador, sorrindo. “Não sei se acreditei completamente até que o doutor Gero Hütter – o médico responsável -, teve o artigo [científico] aceite”, continuou, referindo que numa primeira tentativa o artigo tinha sido rejeitado. “[Mas] se uma revista [científica] muito respeitada – The New England Journal of Medicine – disse que eu estava curado, então devia estar curado.”
O que os próprios médicos estranham é que, mesmo as pessoas que têm a mutação da proteína CCR5, não ficam completamente imunes à infeção com o vírus, como escreveram no artigo. Timothy Ray Brown, que não faz tratamentos antirretrovirais há nove anos, nunca mais teve sinais da infeção. Mais, algumas células do intestino mantinham os linfócitos CD4 do doente – com a proteína CCR5 normal -, mas sem sinais do vírus.
“Infelizmente nenhum outro paciente foi curado do VIH”, lamentou o Paciente de Berlim ao Observador. “O Dr. Hütter disse-me, em dezembro de 2010, que já tinha tentado o mesmo [tratamento] em dez doentes diferentes, que morreram todos devido às suas outras doenças, como leucemia ou linfoma.” Timothy Ray Brown lembrou ainda os pacientes de Boston, que também receberam um transplante de medula óssea, mas de dadores que não tinham a mutação. Durante algum tempo pareciam estar livres do VIH, mas depois a infeção voltou.
Já este ano, na 21ª Conferência International sobre a Sida, em Durban (África do Sul), uma equipa de investigadores verificou que um transplante com células estaminais parece reduzir a quantidade de vírus nos reservatórios do organismo dos doentes, noticiou na altura a CNN. Tal como Timothy Ray Brown os doentes seropositivos receberam o transplante para tratarem doenças de sangue severas. A grande diferença é que este doentes continuam a tomar antirretrovirais. Apesar dos resultados promissores, os cientistas continuam sem ter a certeza sobre o que poderá ter diminuído a quantidade de vírus no organismo. Mais, este tratamento devido aos riscos, custos e dificuldade em arranjar dadores compatíveis continua sem poder revelar-se um tratamento eficaz para tratar os mais de 37 milhões de pessoas infetadas (dados de 2015) em todo o mundo.
Ainda não se sabe o que levou exatamente à cura de Timothy Ray Brown, mas existem três hipóteses que podem ter contribuído isoladamente ou em combinação para este resultado, referiu a revista Science.
- O tratamento com quimioterapia e irradiação que destruíram completamente o sistema imunitário do doente;
- O uso de células estaminais de um dador com uma mutação que não permitiu que os linfócitos CD4 fossem infetados com o VIH;
- O sistema imunitário formado a partir das células do dador terem atacado as células do doente que tinham reservatórios do vírus.
Sem nenhum caso tão bem-sucedido como o seu Timothy Ray Brown mantém, mesmo assim, a esperança de que se encontre uma cura para a doença no seu tempo de vida. “Queria ser um líder e tentar encontrar [a cura], ter a certeza que mais pessoas são curadas do VIH.” Por isso criou Cure for AIDS Coalition (Aliança para a Cura da Sida), com Dave Purdy e Gero Hütter. O principal foco da organização é o Cure Report, que pretende combater a falta de informação, aumentar a sensibilização e conhecimento sobre a doença, fazer divulgação sobre ensaios clínicos e angariar financiamento para investigação.