Reportagem em Butler, na Pensilvânia
“Há lá algum sítio… estar, seja lá onde e… um comício de Trump?”
Louis Hottenfeller, 54 anos, não consegue perceber o que Donald Trump disse — e quase se irrita consigo mesmo por isso, porque à volta muitos parecem ter entendido. Mas a verdade é que, dali do fundo, o Presidente dos EUA é apenas um ponto distante no horizonte e, por azar, do ângulo em que Louis o apanha, a cara fica tapada por um dos telepontos. Mais azar ainda tem o seu irmão Steve, de 45 anos. Com uma estatura bem abaixo do 1,90m da altura dele, mal consegue ver para lá das pessoas que tem à frente. Se o som já é mau para Louis, para Steve é ainda pior.
Quando ainda se aplaude aquela frase de Donald Trump, Louis toca no vizinho da frente e pergunta-lhe: “Desculpe, sabe dizer-me o que é o que o Presidente disse?”.
“Ele disse que não há melhor sítio nesta porra de mundo do que um comício de Donald Trump!”, parafraseou-lhe o homem, inclinando as costas para trás em direção a Louis mas sem deixar de olhar para frente. “Obrigado, senhor, muito obrigado”, responde-lhe Louis que logo passou a mensagem ao irmão. “Ele tem toda a razão, sem dúvida!”, diz-lhe, para depois gritar: “Obrigado, Trump!”.
Este é o primeiro comício de Donald Trump a que Louis vai. Para Steve já é o segundo. Nos dias que antecederam o comício, no Aeroporto Regional de Pittsburgh-Butler, Louis foi fazendo várias perguntas ao irmão, num misto de entusiasmo e nervosismo antes deste evento. As perguntas foram desde se havia comida até o que é que devia levar vestido. “Lou, não te preocupes, vais sentir-te em casa num instante”, disse Steve já a caminho.
Louis estava nervoso, porque não está habituado a estar entre apoiantes de Donald Trump. Embora viva no estado da Pensilvânia, que foi essencial na vitória de Donald Trump há quatro anos, o facto é que a cidade onde vive — McKees Rocks, perto da cidade industrial de Pittsburgh — é um bastião democrata. O condado onde tem morada, Allegheny, foi dos poucos que votou 55,6% a favor de Hillary Clinton em 2016. E, como tal, Louis procura ser discreto — não usa autocolantes de Donald Trump no carro e as t-shirts políticas que tem só as leva quando sai em trabalho. É camionista e, por isso, não são poucas as vezes em que conduz até estados solidamente republicanos, onde já se sente à vontade para vestir aquelas t-shirts.
Já o irmão, Steve, é do condado de Butler, que elegeu Donald Trump com 66,4% dos votos há quatro anos. Sempre que viaja até aqui para visitá-lo, Louis traz uma dessas t-shirts — e, agora que se vai estrear num comício do Presidente, estava indeciso sobre qual devia escolher. Uma diz “Fazer os Liberais Chorar Outra Vez”, noutra lê-se “Se Não Gostas do Trump Também Não Vais Gostar de Mim” e depois outra tem apenas três linhas: “Vermelho, Branco e Trump”. Nesta última, “Trump” aparece a azul, fundindo assim o nome do Presidente com as cores da bandeira. Ultimamente, Louis tem-se atrevido a usar esta na sua terra, porque tem perdido peso nos últimos meses — e, assim, por haver mais tecido para menos corpo, esconde a linha debaixo, onde se lê “Trump”, por baixo das calças.
Mas, no recinto do Aeroporto Regional de Pittsburgh-Butler, aparece desfraldado. E, apesar dos 5 graus que levam a maioria das pessoas a aparecer de camisolas quentes e casacos, Louis não trouxe nada por cima. Para a cabeça, tem apenas um boné de apoio a Donald Trump, e por cima deste o auricular sem-fios que usa para falar ao telefone. Ao início diz que gosta do frio e que, para ele, só a partir dos 20 graus Fahrenheit (6,7 negativos na escala de Celsius) é que começa a usar casaco. Mas, depois, lá admite: “Nota-se muito que quero mostrar a minha t-shirt?”.
Donald Trump já leva 50 minutos de atraso, mas Louis e Steve não estão nem um pouco impacientes. À medida que o tempo passa, vão falando com as pessoas que têm à volta — umas vezes porque vêem neles alguma coisa que merece comentário, outras porque ouvem as suas conversas e decidem intervir. Noutras ocasiões, ainda, fazem-no só porque sim.
É nesse espírito de “só porque sim” que começam os dois a falar com um homem que está atrás dele. Apresenta-se como Neil e “ex-agricultor” e Louis tem logo resposta pronta para isso. “Uma das nossas avós era agricultora e digo-lhe já uma coisa”, diz, com o indicador direito espetado: “Ela não era uma das pessoas mais inteligentes que eu conhecia, era mesmo a mais inteligente de todas. Portanto, mesmo que os agricultores de hoje tenham metade da inteligência dela, este país não terá falta de comida à mesa”.
O elogio corporativo é suficiente para amolecer a dureza aparente de Neil, que ainda assim nunca chega a tirar as mãos dos bolsos enquanto fala com os irmãos Hottenfeller. Só chega a fazê-lo para apontar para os primeiros helicópteros que começam a sobrevoar os céus de Butler. É sinal de que Donald Trump está a chegar.
Enquanto o número de hélices vai crescendo, Steve tem um desabafo a fazer. “Detesto sequer dizer isto, porque afinal de contas esta é a minha terra, mas porque é que ele vem cá se Butler está mais do que ganho?”, pergunta. Neil, o ex-agricultor, franze as sobrancelhas e dá voz ao receio de Steve. “Leva-me a pensar que ele pode estar preocupado com a possibilidade de perder”, admite.
Louis, ali ao lado, não liga nem um pouco àqueles dois profetas da desgraça trumpista. Está de telemóvel erguido, com o zoom puxado ao máximo para apanhar em grande plano os helicópteros. A meio, vira o telemóvel na sua direção e grita: “Primeiro comício do Trump!”.
À conversa no comício de Trump
Mal Donald Trump sobe ao palco, Louis e Steve começam a circular. Tão inseparáveis como imparáveis, caminham pelo recinto ao mesmo ritmo com que Donald Trump vai mudando de temas, demonstrando que, mais do que para os telepontos, está a olhar para o público de maneira a perceber quando está a perder a sua atenção. É nessas alturas que lhes manda um de vários bestsellers — um estatística que, ao final de centenas de comícios, Donald Trump conhece de cor.
O primeiro começa num tema importante (a economia) e acaba num dos temas favoritos de Donald Trump: o ataque à imprensa, a que chama de “fake news”. “O próximo ano vai ser o melhor ano para a economia na história do nosso país. Vocês sabem o que aconteceu no outro dia? Eles não gostam de dar estas notícias: o PIB chegou aos 33,1”, diz, referindo-se à subida nessa percentagem do PIB entre julho e setembro. É nesta altura que atira contra a imprensa: “Eles não gostam de dar estas notícias”, diz, apontando para a plataforma onde estão as câmaras de televisão. “Estão ali muitos fake news.”
Esta observação merece o primeiro aplauso entusiástico de Louis, que grita de reflexo “é isso mesmo, ali estão eles, ali estão os fake news!”. O tom dócil e simpático que até aqui utilizava desaparece neste primeiro bestseller de Donald Trump, dando lugar a uma voz grave e inflamada. É dessa forma que fala para o lado, com uma pessoa que acaba de conhecer.
“Hoje em dia já nem são notícias, tirem-lhe esse nome e digam só que é entretenimento, que era o que o Obama queria”, diz. O vizinho do lado parece concordar, embora pareça mais interessado em ouvir o que Donald Trump tem a dizer a seguir. Mas Louis continua. “Eu já não vejo televisão, nem a Fox News vejo, porque eles estão a ficar como os democratas”, diz. Os seus canais de informação são o Info Wars (do qual tem dois autocolantes na capa do telemóvel) e a One American News Network (OANN) — ambos meios digitais à direita de Donald Trump e veículos de diferentes teorias da conspiração, como as que sugerem que o 11 de setembro foi um “inside job”, um ataque interno e não um acto terrorista, ou que o tiroteio da escola primária de Newtown, em 2011, foi encenado por atores.
“Eles dão as notícias, tal e qual como elas são, não são fake news”, remata Louis. Ao lado, Steve confirma: “O meu irmão pôs-me a ver a OANN e agora já não quero mais nada. Eles mostram tudo o que os outros nos escondem, acredite no que lhe digo”.
Donald Trump avança com o comício e, pouco depois, o Presidente dos EUA ataca o seu adversário democrata, Joe Biden, por ter defendido no segundo e último debate o fim dos subsídios federais à indústria petrolífera e também um “fim gradual” do fracking — um método hidráulico de extração de petróleo e gás natural, muito popular na Pensilvânia e noutras partes do país, mas longe de estar isento de riscos ambientais.
“E ele disse ‘vamos fazer uma transição para deixar o petróleo, vamos fazer uma transição para deixar o fracking’”, disse Donald Trump a parafrasear o seu adversário. “Espero que vocês tenham ouvido, ok? Porque é para aí que podemos ir…”
Enquanto isto, Steve mete conversa com um homem que veste um casaco de motard. “Que mota é que tens?”, pergunta-lhe a abrir uma conversa onde cada um fala das máquinas que tem guardadas dentro da garagem. Trocados esses pormenores, Steve aproveita a deixa de Donald Trump e diz ao seu novo amigo: “Os democratas querem acabar com o nosso estilo de vida, querem pôr-nos todos a vender as nossas pick-ups e as nossas motas e querem meter-nos a andar de autocarro. Já imaginaste?”. O interlocutor concorda com o prognóstico, mas garante: “Nunca hei-de deixar a minha mota e se a quiserem vir buscar, tenho aqui as minhas armas”.
Noutra altura, Donald Trump fala das sondagens — referindo que nos estudos de opinião internos a que a sua campanha tem acesso “as coisas parecem estar a correr muito bem”; ao passo que nas sondagens publicadas pelos media o quadro é outro. “Hoje apetece-me tirar-lhe 30 pontos na Flórida”, disse, imaginando-se na pele de um analista daquelas sondagens.
Tanto Steve como Louis acreditam que Donald Trump vai ganhar. “Há quatro anos diziam que ele perdia, mas que eu saiba não foi isso que aconteceu…” ironiza Steve, que entretanto já seguiu com Louis para outra parte do recinto. Afastaram-se do palco, para se encostarem a umas grades e é lá que encontram outros apoiantes de Donald Trump de pernas cansadas. Uma delas também acredita que Donald Trump vai ganhar, mas já tem plano para a alternativa.
“Se de alguma maneira completamente retorcida e escandalosa o Biden ganhar, podem ter a certeza de que vou comprar uma pistola”, diz-lhes a mulher, que pede para não ser identificada. Louis também não fica a saber o nome dela, mas ainda assim não hesita em dar-lhe dicas para armas. “Eu tenho uma 9mm e uma 22”, diz, captando-lhe a atenção. “Se quer a minha opinião, para uma pessoa do seu tamanho, aconselho uma 22, porque o coice da 9mm é muito forte.” Ela dispensa a dica: “Noutro dia disparei uma AR-16 do meu pai pela primeira vez a 200 jardas [183 metros] do alvo e acertei mesmo no meio”. Louis não hesita em dar-lhe os parabéns — e um aperto de mão a condizer.
Louis, aliás, nunca hesita no contacto físico — mas não é único a fazer gestos que remetem para tudo o que as autoridades de saúde nacionais tem vindo a desaconselhar. Uma estimativa a olho nu levaria a crer que por cada pessoa que usa máscara duas levam a cara à mostra. Muitas delas vão alternando entre pôr e tirar a máscara, como é o caso de Louis e Steve. Na véspera deste comício em Butler, um grupo de economistas da Universidade de Stanford publicou um trabalho académico onde, através da criação de um modelo matemático, estimaram que 18 comícios de Donald Turmp entre junho e setembro tenham resultado num excesso de 30 mil casos confirmados de Covid-19 e em mais 700 mortes.
Louis não nega a existência da pandemia (“Não sou estúpido”), mas é certo que relativiza a situação. “As pessoas morrem de tudo, morrem da gripe comum, morrem de cancro, morrem de diabetes, morrem de tudo e mais alguma coisa”, diz. “E por acaso essas coisas são testadas? Andam atrás deles? Claro que não. Fazem isto com a pandemia para quê? Para fazerem política, porque são doentes, são doentes!”
“Isto não passa da merda de um esquema para o Biden ter uma desculpa para ter os comícios completamente vazios”, atira a mulher que se prepara para comprar uma arma. Steve olha para Louis e diz: “Esta aqui é esperta”.
Donald Trump sai e entra do tema da pandemia ao longo do discurso, como faz em todos os comícios desta campanha. Porém, na Pensilvânia, tem um alvo claro e identificado: o governador Tom Wolf, do Partido Democrata, que tem decretado medidas de confinamento e redução da atividade económica em todo o estado.
“Ele vai prender-vos em casa ao mesmo tempo que os motineiros andam à vontade. Nós dizemos que isto é uma manifestação, porque a única maneira que temos para nos reunirmos é se for numa manifestação”, diz Donald Trump. “Eles é que não estavam à espera deste tipo de manifestação. Se quiserem ir à igreja, não podem ir. Mas se quiserem queimar lojas e partir uma rua principal, mandar pessoas ou chão e tudo o mais, está tudo bem.”
Louis e Steve estão novamente a mudar de lugar no comício, mas isso não impede o mais velho de responder bem depressa, gritando para o ar: “Pois é, e então aqueles gajos dos Black Lives Matter? São terroristas e racistas, são iguaizinhos ao Ku Klux Klan!”. “É isso mesmo, são iguais”, responde-lhe uma mulher pelo caminho. Estabelecido que está um novo contato com as pessoas que agora tem em volta, Louis deixa-se ficar e grita para o irmão, que já vai 10 passos à frente, para recuar.
Na sua cidade maioritariamente liberal, Louis conta que já teve dissabores com manifestantes do Black Lives Matter. Conta que uma manifestação daquele movimento em McKees Rocks, no final de junho, acabou com mesas cheias de comida colocadas pela paróquia que ele frequenta a serem viradas por aqueles ativistas. “Juro por tudo, perguntem ao meu padre, ele conta-vos tudo”. “Os jornais é que não puseram nada disso, não lhes interessa.”
Louis garante que não é racista, mas não entende a necessidade de um movimento como o Black Lives Matter. “Todas as vidas são importantes”, atira, repetindo a resposta que o lado afeto a Donald Trump costuma responder àquele movimento, que é também um slogan. Esta é uma questão que leva a peito — e que o levou a deixar de acompanhar a sua equipa de futebol americano de sempre, os Pittsburgh Steelers.
“Os jogadores usaram uma tarja enorme a dizer Black Lives Matter durante o hino, isso é inaceitável”, diz. Na verdade, o que ali se lia era “Steelers Contra o Racismo”, mas, independentemente do conteúdo, o que afastou Louis daquela equipa foi a forma. “Não se faz isto durante o hino”, atira em volta. “Já não quero saber dos Steelers para nada, e olhem que eu era bem fanático, o meu irmão que vos diga”, diz. Steve confirma-o e apoia-o. “Para mim é assim: a partir do momento em que põem a política no futebol, eu tiro de lá o meu dinheiro.”
No discurso de Donald Trump os temas estão todos encadeados — e, no final, vão sempre dar a Joe Biden. Aqui em baixo, na plateia, o candidato democrata é referido apenas pelo apelido, por uma questão de facilidade de expressão. Mas lá em cima, no palco, o título é outro: “Joe Dorminhoco”. É esta a alcunha que Donald Trump tem vindo a atribuir a Joe Biden desde que o ex-vice-Presidente foi dando sinais de que estava pronto para concorrer à presidência.
“Enquanto o Joe Dorminhoco estava a mandar os vossos empregos para a China, a família dele estava a arrecadar milhões e milhões e milhões de dólares do Partido Comunista da China. E, quer queiram quer não, Joe Biden é um político corrupto”, diz Donald Trump. Cá em baixo, Louis responde-lhe à boa maneira das igrejas baptistas deste país: tira o chapéu e grita um “é isso mesmo!”. “É do mais corrupto que há!”, continua. “O homem tem razão ou não tem razão?!”, atira à volta. “Tem, claro que tem”, respondem-lhe quase em coro os desconhecidos em seu torno.
Já é noite cerrada e os dois irmãos estão cansados — e Louis por esta altura já admite, com o nariz a pingar, que está com “algum frio”. Mas não tanto que o impeça de acompanhar palavra a palavra da reta final do discurso de Donald Trump, que usa agora o teleponto para embrulhar os mais de 50 minutos em que foi falando. E, por isso, recorre à fórmula de sempre: enumerando as coisas que, na sua opinião, a América voltou a ser. Começa em “poderosa”, passa para “rica” e depois segue para “forte”, “orgulhosa” e “segura”. A cada um destes adjetivos, Louis tenta acertar a tempo para poder dizer em uníssono com o Presidente — mas o discurso é de Donald Trump e por isso é ele que o controla.
Até que chega o final. Louis já o sente — o ritmo na voz de Donald Trump é agora mais familiar do que nunca. E assim se ouve: “Vamos tornar a América grande outra vez!”. Di-lo Donald Trump, com a voz abafada por uma enorme multidão. Louis é um deles — pelo menos é assim que finalmente se sente.