Audição na Assembleia da República

Declarações de Lucília Gago

Anotações

Esta é a quarta vez que me encontro a ser ouvida na Assembleia da República. Não pedi em momento algum o adiamento desta audição”

A procuradora-geral da República tinha de responder às primeiras perguntas dos partidos proponentes da audição na 1.ª Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República — Bloco de Esquerda e PAN —, mas fez questão de enfatizar que não só nunca recusou ir recusou ir ao Parlamento, como esta audição representa a quarta visita formal que fez aos deputados. A primeira ocorreu no âmbito dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito ao furto nos paióis militares de Tancos, em março de 2019, a segunda teve como tema a violência doméstica, e verificou-se em junho do mesmo ano, e em janeiro 2021 regressou ao Parlamento para falar sobre a diretiva dos poderes hierárquicos. Lucília Gago tentou, assim, desmentir qualquer espécie de falta de colaboração. Contudo, não deixou de fazer alusão ao “súbito interesse” do poder político sobre a atividade do Ministério Público (MP) e de dizer que o escrutínio da magistratura que lidera é feito pelos serviços de inspeção do MP e também pela publicação do relatório de atividades do MP no site da Procuradoria-Geral da República.

Tendo em conta o RASI [Relatório Anual de Segurança Interna] verificamos que o número de escutas telefónicas conheceu o auge em 2015, com cerca de 15 mil escutas telefónicas. Desde então tem vindo a decrescer, tendo estacionado nos 10.533 escutas telefónicas em 2023. Nunca ultrapassaram os 2,5% do total das investigações em curso. E em 2023 não chegaram a 1,5%. A lei está bem. O Ministério Público recorre a escutas quando percebe que elas são essenciais. Essas situações em que as escutas demoraram tempo longo são absolutamente excecionais e é porque se reconhece a necessidade para as finalidades do inquérito.”

As intercepções telefónicas, vulgo escutas telefónicas, foram uma das grandes preocupações manifestadas pela maioria dos grupos parlamentares sobre o estado do Ministério Público, nomeadamente dos deputados António Filipe (PCP), Mariana Leitão (Iniciativa Liberal) e Andreia Neto (PSD) — que fez, inclusivamente, uma alusão indireta às escutas telefónicas alegadamente realizadas pelo MP durante cerca de quatro anos a João Galamba, ex-ministro das Infraestruturas de António Costa. Além de enfatizar que as escutas telefónicas em Portugal carecem de uma promoção do Ministério Público do controlo e da autorização do juiz de instrução criminal (que também tem de concordar com a renovação das mesmas escutas), Lucília Gago revelou que se verificou um significativo decréscimo na utilização desse meio de obtenção de prova, com uma queda de mais de 30% entre 2015 e 2023 — sendo certo que cerca de 10.533 escutas não correspondem a idêntico número de pessoas, mas sim ao número de aparelhos sob escuta. Mais: tendo em conta a quantidade dos inquéritos movimentados em 2023, apenas foram usadas escutas telefónicas em cerca de 1,5% do total dos inquéritos do MP, segundo a PGR. Um número que contraria a perceção de uma parte da classe política de que o uso das escutas estaria descontrolado. Em jeito de conclusão, a procuradora-geral da República disse que o poder político tem legitimidade para alterar a lei que regula as escutas telefónicas, mas avisou que qualquer restrição levará ao arquivamento de inquéritos relevantes.

Existe uma presunção de culpa sobre o Ministério Público, o que é uma coisa extraordinária. Esse clima interessa muitas vezes aos arguidos, como é bom de se ver. Se se pretende efetivamente perseguir e punir os responsáveis pela violação do segredo de justiça, então temos de aceitar os meios intrusivos de obtenção de prova, como as escutas telefónicas”.

As violações de segredo justiça foram outra das grandes preocupações dos deputados da 1.ª Comissão do Parlamento. Tudo porque, segundo eles, promovem alegados “julgamentos populares” e violam a presunção de inocência dos arguidos. As deputadas Cláudia Santos (PS), Andreia Neto (PSD), Joana Mortágua (Bloco de Esquerda) e Cristina Rodrigues (Chega) chamaram a atenção para este tema, questionando Lucília Gago sobre os resultados das investigações do MP a este crime. A procuradora-geral da República recusou admitir a hipótese de tais violações do segredo de justiça terem origem no MP porque, alegou, isso seria contra natura. Isto é, iria contra os interesses da própria investigação criminal. Por outro lado, e tendo em conta a grande preocupação que os deputados manifestaram sobre o tema, Lucília Gago disse aos deputados que, enquanto titulares do poder legislativo, poderiam alterar a lei que regula as escutas telefónicas para permitir o uso desse meio intrusivo de obtenção de prova na investigação do crime do segredo de justiça — fê-lo num tom neutro, sem manifestar a sua opinião a favor ou contra de uma opção que pertence ao legislador. Seja como for, tal opção teria como opção colocar escutas telefónicas a jornalistas para tentar descobrir as suas fontes — uma solução que levantaria outros problemas em termos de proporcionalidade e de eventual constitucionalidade, visto que a liberdade de imprensa é um direito constitucional.

Há uma diminuição de 12 magistrados, isto leva à insuficiência de magistrados. A greve de funcionários judiciais tem malefícios que só daqui a algum tempo é que serão medidos. Há uma falta de 400 funcionários judiciais. Se as condições dos funcionários judiciais continuarem é certo que podemos abrir concursos que eles acabarão por não permanecer nesse desempenho. O peso do sexo feminino é superior a dois terços, ou perto de 90%, se considerada a faixa etária até aos 30 anos. Objetivamente, esta circunstância constitui um fator de agravamento de constrangimentos em razão de situações de gravidez, de gravidez de risco, de baixa para assistência a filhos menores, gozo de licença parental, ausência para efeitos de amamentação, toda uma panóplia de situações que ocorrem comummente”.

Apesar do Relatório de Atividades do Ministério Público para 2023 revelar que ocorreu um acréscimo de 71 procuradores entre 2021 e 2023, facto que foi evidenciado pela deputada Cláudia Santos (PS), a procuradora-geral da República fez questão de alertar para a insuficiência de magistrados do MP, acrescentando que o poder político está atrasado no cumprimento de uma promessa de construir um polo do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) no norte do país. Tal medida, enfatizou Lucília Gago, seria importante para aumentar o número de candidatos ao CEJ devido ao reduzido valor da bolsa atribuída a cada auditor de Justiça para morar para Lisboa durante os estudos na escola dos futuros magistrados — uma preocupação na qual é acompanhada pelo conselheiro Cura Mariano, novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que manifestou idêntica preocupação em entrevista ao Observador. De uma forma mais polémica, Lucília Gago explicou ainda que os problemas nos quadros do MP se devem ao facto da sua magistratura ser maioritariamente composta por mulheres — que engravidam e têm de amamentar, o que leva a ausências do serviço.

Os excessos a que os senhores deputados se têm vindo a referir são questões verdadeiramente excecionais.

Foi uma das frases que marcou a audição de Lucília Gago. Não só as escutas por longos períodos de tempo foram classificadas pela procuradora-geral como “excecionais”, como a prisão preventiva prolongada para lá das 48 horas previstas na lei são igualmente excecionais, como foi o caso dos arguidos detidos na Operação Madeira que ficaram sob detenção durante 21 dias. Sendo certo que esta última questão se deveu ao juiz de instrução criminal que conduziu os primeiros interrogatórios aos arguidos sob detenção, a procuradora-geral da República não assumiu qualquer responsabilidade por eventuais excessos dos procuradores do MP, tal como também não quis identificar os autores da alegada “campanha orquestrada” contra o Ministério Público, que denunciou em entrevista à RTP, ou aqueles que produzem “malediência” com “pérfidos desígnios”. Vários deputados, como Paulo Muacho (Livre), João Almeida (CDS) e Mariana Leitão (IL) bem insistiram para que Lucília Gago dissesse nomes, mas a procuradora-geral remeteu-se ao estado em que esteve durante muito tempo: o silêncio.

“A diretiva mantém-se em vigor e os poderes hierárquicos são exercidos regularmente pelos dirigentes do Ministério Público. Foi impugnada e aguardamos uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo há cerca de três anos.”

Lucília Gago referia-se a uma diretiva — uma ordem da procuradora-geral para toda a estrutura do Ministério Público — que sentiu necessidade de emitir em 2020 para clarificar o exercício dos poderes hierárquicos dentro da magistratura. Tal diretiva surgiu após o Estatuto do MP ter sido alterado em 2019 por proposta do então governo de António Costa — uma medida que causou desagrado no Grupo Parlamentar do PS e que ainda hoje é criticada pelos próprios deputados socialistas, como a líder parlamentar Alexandra Leitão. A procuradora-geral da República não esclareceu se é a favor de uma clarificação legal — como defendem vários partidos —, mas disse claramente que a diretiva impugnada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público continua em vigor. Uma afirmação que, contudo, entra em contradição com a própria forma como Lucília Gago (não) exerceu os seus poderes hierárquicos, nomeadamente no acompanhamento do trabalho do Departamento Central de Investigação e Ação Penal.