Entrevista à RTP
Sempre considerei que a discrição é sempre melhor do que o espalhafato. Não tenho, nem nunca tive, o culto da imagem. Não privilegio tal coisa e não preciso de popularidade. Não preciso, de modo algum, de estrelato. Também considero que é e sempre foi a minha prioridade dar um contributo sério e honesto e muito, muito envolvida com aquilo que considero os problemas da Justiça e do Ministério Público. Tudo o que procurei fazer foi numa ótica de isenção e de retidão.”
A procuradora-geral da República começou por explicar, esta segunda-feira à RTP, por que razão aquela entrevista foi a primeira do seu mandato, que se iniciou em outubro de 2018, e por que razão fez muito poucas declarações no espaço público. É uma espécie de statement que vários procuradores da sua geração já tinham antecipado ao Observador logo na altura: Lucília Gago iria ser sempre muito discreta no exercício do mandato. Apesar de enfatizar precisamente essa sua opção pela “discrição”, a procuradora-geral da República usa adjetivos como “espalhafato”, “culto da imagem” e “estrelato” para classificar a normal aceitação do escrutínio da opinião pública por parte de alguém que exerce um alto cargo público com grande visibilidade mediática.
Foram duplicados os elementos que compõem a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República. Desde que iniciei o mandato, houve a preocupação de dotar o gabinete de imprensa de mais elementos. Poderia ter dado uma entrevista, poderia ter evoluído para aí. Nunca pensei que a critica fosse tão forte e violenta nesse campo“
Apesar de recusar o “espalhafato”, Lucília Gago garante que duplicou o número de elementos da assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR). Contudo, os resultados práticos dessa duplicação de recursos humanos não são propriamente no esforço de comunicação. Por exemplo, basta ir à página oficial da PGR para perceber que em 2024 — que já tem sete meses — só houve um comunicado oficial da PGR, e logo sobre o caso da Madeira. Em 2023 houve seis e em 2022 houve três, sendo que um deles tem a ver com a nomeação do vice-procurador-geral. Entre 2018 e 2021, o panorama é melhor mas, mesmo assim, fica muito aquém dos resultados de política de comunicação clara e com regras para as respostas a jornalistas que foi determinado no mandato da anterior procuradora, Joana Marques Vidal.
Esse parágrafo foi concebido conjuntamente entre mim e o gabinete de imprensa. Acontece que em todas as situações — não só essa — em que os temas são particularmente sensíveis, relevantes, há um acompanhamento muito próximo sobre o que é dito. Esse parágrafo, a inclusão, é da minha inteira responsabilidade. Não o escondo. Aliás, já o assumi publicamente. [“E a divulgação do comunicado também foi da sua responsabilidade?”, pergunta Vítor Gonçalves]. A divulgação foi da minha inteira responsabilidade, sem dúvida. Considerei na altura, e considero hoje, que não era admissível a omissão a essa referência que desse parágrafo consta. Porque numa operação que envolveu buscas e detenções, nomeadamente na residência oficial do primeiro-ministro, a circunstância de não se dizer que, para além daquelas pessoas que ali estavam referenciadas, era também existente um processo que surgiu na sequência de referências feitas por suspeitos — e houve o cuidado de se fazer essa específica menção — que apontavam a pessoa do primeiro-ministro como tendo tido um protagonismo certo e determinado. Ou seja, ninguém iria perceber que devesse ser omitida essa referência. Pelo contrário, teria havido uma tentativa de branquear ou de proteger. Não acho que, por razões de transparência, devesse ser omitida a referência”.
Lucília Gago assume tudo: que escreveu e autorizou o famoso parágrafo do comunicado da PGR de 7 de novembro que confirma as buscas e detenções da Operação Influencer. Tal parágrafo, que foi incluído na parte final do comunicado, refere que “no decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ser esse o foro competente”. O que este texto significa é que António Costa era considerado suspeito (o Observador revelou mais tarde que era suspeito do crime de prevaricação) no exercício das suas funções de primeiro-ministro e seria investigado no STJ devido ao foro especial a que qualquer chefe de Governo tem direito. A procuradora-geral da República diz que, por “razões de transparência”, não poderia ter feito de outra foram, senão seria acusada de estar a “branquear” ou a “proteger” António Costa
Quando o parágrafo foi construído, é evidente que se antevê que possa haver uma reação forte ao seu conteúdo. O que quero dizer é que a avaliação feita pelo senhor primeiro-ministro à época é uma avaliação pessoal e política que não cabe ao Ministério Público fazer, nesta circunstância ou em qualquer outra. O Ministério Público fez o seu trabalho. Com transparência, revelou o que tinha de revelar. E não tem mais que se preocupar — e não deve fazê-lo — com as consequências que daí advêm para o próprio, se ele quiser optar por determinada solução. Volto a dizer: é uma decisão que tomou, pessoal e politicamente. Aliás, vários exemplos mostram que não é automático esse resultado, como se quer fazer crer. Outros políticos pela Europa fora têm-se visto a braços com investigações — eles próprios ou por familiares próximos — e não se demitem. Ninguém disse que o sr. primeiro-ministro à data estava indiciado ou fosse suspeito desses crimes [de corrupção, de tráfico de influências, de tráfico de influências, referidos no comunicado da PGR de 7 de novembro]. O que se disse, volto a dizer, é que suspeitos nesse processo aludiram ao seu nome [de António Costa] e à sua influência.”
Quando apresentou a demissão no dia 7 de novembro, após as buscas na residência oficial do primeiro-ministro e a detenção do seu então chefe de gabinete Vítor Escária e do seu melhor amigo Lacerda Machado, António Costa afirmou que se demitia por entender que a “dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade, da sua boa conduta e, menos ainda, com a suspeita da prática de qualquer ato criminal”. A procuradora-geral da República já tinha afirmado a 23 de novembro de 2023, na única declaração pública que fez sobre a Operação Influencer, que não se “sentia responsável por coisa nenhuma”, numa alusão à demissão de António Costa. Na entrevista à RTP, foi mais clara e estruturada e revelou que antecipou uma “reação forte” do “primeiro-ministro à data”. Contudo, Lucília Gago diz que nada tem a ver com a “decisão pessoal” e “política” que António Costa tomou. Isto é, o princípio da legalidade (inscrito na lei processual penal e que obriga o MP a investigar toda e qualquer suspeita criminal) levou o MP a abrir o inquérito no Supremo Tribunal de Justiça contra António Costa mas em nenhuma parte do comunicado é dito que o então primeiro-ministro era suspeito de algum ilícito criminal. Lucília Gago alude mesmo a outros exemplos de políticos sob suspeita na União Europeia para fundamentar que a demissão não era o resultado final automático da abertura da investigação de um inquérito criminal no STJ — mais à frente virá a confirmar que se está a referir a Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol e camarada socialista de António Costa.
O expediente que chegou à Procuradoria-Geral da República foi encaminhado para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do foro próprio que o primeiro-ministro tem. Portanto, a instauração do inquérito aconteceu no Supremo Tribunal de Justiça. Não quer dizer que eu discorde dessa opção. A opção que foi tomada… tem a minha chancela. A instauração do inquérito decorre da singela circunstância de o Ministério Público estar obrigado, por razões de legalidade, a dar essa sequência (…) Se uma mulher, num crime de violência doméstica, se queixa que o marido a agride, nós não temos a figura do pré-inquérito. A mera alusão à prática de um crime obriga o Ministério Público à instauração de inquérito. Não se pode ter dois pesos e duas medidas. Não se pode dizer que todos os cidadãos são iguais perante a lei e depois querer dar um tratamento diferenciado à figura de um primeiro-ministro. Todos os cidadãos têm de ter um tratamento igual”.
O entrevistador Vítor Gonçalves quis saber que factos objetivos levaram à abertura do inquérito contra António Costa e Lucília Gago explicou que a certidão dos autos da Operação Influencer, que a procuradora-geral classifica de “expediente”, chegou à PGR e foi reencaminhada para o STJ. Tal como aconteceu com o comunicado sobre as buscas do caso Influencer, Lucília Gago assume que a abertura de tal inquérito no STJ teve a sua “chancela” e repete que o MP estava obrigado a abrir aquele inquérito, devido ao princípio da legalidade. Aliás, é nesta parte que a procuradora-geral da República deixa uma suas principais mensagens: todos são iguais perante a lei, “não se pode ter dois pesos e duas medidas” e António Costa (ou qualquer outro titular de cargo político) não merece um tratamento de favor ou privilégio. Para fundamentar tal ideia, Lucília Gago usa mesmo um exemplo de violência doméstica para dizer que uma denúncia de uma vítima também obriga à abertura de um inquérito criminal.
Essa instauração não decorre automaticamente de indícios, de indícios fortes ou de indícios que conduzam a uma acusação. (…) A ser verdade aquilo que essas afirmações continham [dos vários suspeitos da Operação Influencer sobre António Costa], havia ou poderia haver a prática de ilícitos. Coisa que ainda se está a apurar no inquérito que ainda está pendente. Ou seja, o sr. primeiro-ministro à data foi ouvido nesse inquérito, a seu pedido. Na altura, o magistrado que procedeu à audição, entendeu que não havia indícios fortes da prática de ilícitos, logo não o constituiu como arguido. Foi ouvido como testemunha. Naquele momento. O inquérito ainda corre. Não sei, nem poderia saber, se vai haver encerramento de inquérito a breve trecho, quanto tempo vai demorar essa investigação — que corre a par e passo [com a Operação Influencer] (…).”
É uma das novidades da noite. Lucília Gago confirma que o inquérito que visa António Costa, e que desceu do Supremo Tribunal de Justiça para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal em abril último, ainda corre termos. Não foi arquivado, mesmo depois de o ex-primeiro-ministro ter sido ouvido na qualidade de testemunha no dia 24 de maio. “Não posso dizer” que o inquérito vá ser arquivado, disse a PGR. Outra questão relevante é que Lucília Gago diz que não sabe, “nem poderia saber”, se o caso vai ser encerrado a breve trecho. Uma afirmação que diz muito sobre a forma como a procuradora-geral interpreta os seus poderes hierárquicos.
Não me sinto responsável pela demissão do primeiro-ministro. O primeiro-ministro fez uma avaliação pessoal e política. Poderia ter continuado a exercer as suas funções. Ursula Von der Leyen [presidente da Comissão Europeia] permaneceu em funções. Como aqui ao lado em Espanha, Pedro Sánchez tem a sua mulher alvo de uma investigação. Portanto, [a demissão] não é de modo algum automática.”
A procuradora-geral da República volta ao tema da sua alegada responsabilidade na demissão de António Costa para dar o exemplo do que se passou com Pedro Sánchez e a sua mulher, alvo de uma investigação judicial em Espanha por alegado enriquecimento injustificado. Também o irmão de Sánchez é igualmente alvo de escrutínio judicial.
Quando fui à Presidência da República, o comunicado [da Procuradoria-Geral da República] estava já preparado, com aquele parágrafo. Muito se disse em torno deste tema… [sobre a eventual participação de Marcelo Rebelo de Sousa na elaboração do comunicado, nomeadamente na introdução do famoso parágrafo que refere António Costa]… nada disso… [o Presidente não teve qualquer participação]… absolutamente…, nem uma vírgula. O que acontece é que não podíamos revelar aquele comunicado antes do início da audiência [com o PR] porque ainda estava uma detenção por concretizar.“
Foi um dos pontos mais comentados no espaço público: terá tido Marcelo Rebelo de Sousa alguma influência na introdução do famoso parágrafo? Lucília Gago diz que não há qualquer influência e revela que o referido comunicado já estava pronto para ser divulgado antes da audiência na manhã de 7 de novembro no Palácio de Belém. Mais: Lucília Gago garante que informou o Presidente da República do famoso comunicado e do seu conteúdo.
Faço um acompanhamento de alguma proximidade de alguns processos, com o distanciamento inerente à autonomia. Nós temos uma magistratura hierarquizada. Mas os magistrados têm alguma autonomia. A nossa magistratura tem sucessivos escalões hierárquicos até chegar à procuradora-geral da República. Responsabilidade inteira eu não posso ter porque não conheço os processos todos à minúcia. Processos com esta dimensão envolvem factos de uma complexidade extrema, com um número muito elevado de documentos e escutas telefónicas.”
Lucília Gago deixa clara a sua visão sobre os poderes hierárquicos do Ministério Público (MP), falando em “alguma autonomia dos magistrados”. Acresce que a procuradora-geral diz que não se sente com uma “responsabilidade inteira” pelos processos que correm termos no MP e dá uma imagem muito conservadora sobre o exercício dos poderes da procuradora-geral da República.
Essa pergunta é difícil porque eu não gostaria de fazer comentários sobre referências do senhor Presidente da República sobre o maquiavelismo subjacente à existência de uma coincidência temporal entre a instauração desse inquérito [o caso das gémeas] e a realização de buscas no caso Influencer. A verdade é que o senhor Presidente da República, apesar da informalidade das suas declarações, não perdeu por isso a qualidade de Presidente da República. Essas frases foram ouvidas por um universo grande de pessoas e causaram alguma perplexidade, desconforto e surpresa. Eu tive de ouvir sucessivas alusões a essas frases. Provocaram até, naquele específico contexto, umas gargalhadas que eram audíveis no registo áudio. Isso criou a ideia de que houve um esforço de serem alinhadas datas para aquelas diligências. Não fui eu que instaurei o inquérito e não sabia dessa data no momento em que fui à Presidência da República. Quis o destino que tivesse assim ocorrido.”
Marcelo Rebelo de Sousa acusou a procuradora-geral Lucília Gago, por si nomeada em outubro de 2016, de “maquiavelismo” por ter decidido abrir os autos do caso das gémeas no mesmo dia em que foram realizadas buscas à residência do primeiro-ministro no àmbito da Operação Influencer. Além da acusação de maquiavelismo, Marcelo também disse aos correspondentes internacionais em Lisboa que Lucília Gago ia gerindo equilíbrios com a abertura de determinados inquéritos — o que sugere uma gestão política. Certo é que Lucília Gago recusa qualquer tipo de gestão política dos processos. E repetiu por três vezes que “não existiu” qualquer gestão de processos para que o caso das gémeas tivesse um início no mesmo dia da Operação Influencer.
Confesso que ouvi essas declarações uma vez e outra vez e fiquei algo incrédula e até perplexa. Essas declarações são, na verdade, indecifráveis e são graves. Indecifráveis porque se o diagnóstico está feito, não revelou qual fosse. E também não o disse numa audiência que lhe pedi, que me concedeu e que durou três horas. Se havia qualquer elemento relevante que quisesse apontar, seria uma ocasião ótima para o fazer. Depois são graves ao dizer que o Ministério Público tem uma situação de falta de liderança, de falta de capacidade de comunicação, tem de arrumar a casa e tem de haver uma restituição da confiança. Ou seja, dizendo ou querendo dizer implicitamente que nos últimos tempos houve uma perda de confiança imputável ao Ministério Público e à liderança da procuradora-geral. A minha conclusão é a de que estas declarações, que se juntam a muitas outras, imputam ao Ministério Público a exclusiva responsabilidade pelas coisas más que acontecem na Justiça — coisa que eu rejeito em absoluto.”
Depois das críticas indiretas a António Costa e a Marcelo Rebelo de Sousa, Lucília Gago decidiu responder de forma direta às declarações que Rita Alarcão Júdice fez na entrevista exclusiva que concedeu ao Observador. É verdade que a ministra da Justiça afirmou que houve “uma certa descredibilização e algum ruído à volta do MP” durante o mandato de Lucília Gago e que, virada para o futuro, afirmou que o próximo procurador-geral da República deve ter um perfil “de liderança e de comunicação” para criar uma “nova era” na magistratura. Lucília Gago classificou estas declarações como “indecifráveis e graves”. Em termos de conclusão geral, Lucília Gago parece tentar ligar as declarações de Rita Alarcão Júdice ao Manifesto dos 50 e às várias intervenções de alguns subscritores desse manifesto, dinamizado por Rui Rio. Certo é, contudo, que a ministra da Justiça não defendeu nenhuma das ideias mais queridas daqueles subscritores, nomeadamente a alteração das regras da autonomia do MP.
Não, nunca ponderei demitir-me. Não coloquei nunca essa questão, porque encaro o meu mandato como sendo um mandato que leva um cunho de rigor, de objetividade e de isenção. Estou perfeitamente consciente de que há uma campanha orquestrada por parte de pessoas que não deviam… campanha orquestrada na qual se inscrevem um conjunto alargado de pessoas que têm ou tiveram no passado responsabilidades de relevo na vida da Nação.”
Lucília Gago diz que nunca colocou em cima da mesa a hipótese de se demitir — como defendeu repetidamente Rui Rio, um dos principais subscritores do Manifesto dos 50 (ver aqui e aqui) entre outras ocasiões. Esse documento foi dinamizado pelo ex-líder do PSD e teve a assinatura de várias pessoas que ocuparam cargos de destaque na política portuguesa, como presidentes da Assembleia da República, deputados ou ministros.