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À entrada, todos medem a temperatura corporal e são testados à Covid-19, só depois de receber um resultado negativo por e-mail é possível entrar no edifício da Alfândega do Porto, onde o ambiente é calmo e quase silencioso, muito diferente daquele que se costuma sentir em dias de Portugal Fashion no calendário.
As filas nas escadas desapareceram, assim como o cheiro a comida que vem dos food corners, o bar está fechado e nos bastidores o burburinho e a agitação foram substituídos por música e jogos no telemóvel. Durante a gravação dos desfiles da 48ª edição do Portugal Fashion, o cenário é quase irreconhecível e quem se depara com ele consegue quase compará-lo à rodagem de um filme ou de uma telenovela, onde os manequins são atores, sempre acompanhados por uma equipa audiovisual.
Na sala de maquilhagem e de cabelos, a máscara faz parte do dress code e os profissionais falam da falta de adrenalina, do stress habitual das últimas horas e dos cuidados que a pandemia os obrigou, como a desinfeção do material ou a utilização de produtos mais resistentes devido ao uso obrigatório da máscara.
Pelos corredores há charriots a passar com coordenados pendurados, manequins vestidas, penteadas e maquilhadas a segurar o sapatos na mão, enquanto pousam para as fotografias, e a zona reservada à realização de testes Covid-19 serve também de bastidores para um desfile no cais.
No exterior do edifício, cerca de uma dezena de pessoas preparam a gravação do momento, há câmaras, claquetes e vários cadernos com indicações para que nada falhe no momento do play. “Estamos prontos?”; “Quem pede a música?”; “Alguém tem dúvidas?”, ouve-se durante a longa preparação. O desfile é gravado duas vezes, uma para cada lado da passerelle, e nas muitas pausas são retificados pormenores de iluminação, trajetos de câmaras e posições de acessórios.
No fim do desfile, os designers não ouvem aplausos, não abraçam amigos ou família, não respondem a perguntas de jornalistas nem negoceiam com potenciais compradores das suas coleções. Resta-lhes guardar a roupa, os acessórios e os sapatos, sorrir para uma fotografia e esperar por dias melhores.
A segunda parte da The Sofa Edition do Portugal Fashion acontece dias 22, 23 e 24 de abril em live streaming no site do evento.
Paulo Almeida, makeup artist
“Agora temos o cuidado de, entre as aplicações, desinfetar os pincéis ou optar por materiais descartáveis”
Habituado a trabalhar num ritmo frenético na zona de maquilhagem, onde reinam as luzes dos espelhos e o burburinho nas cadeiras, nesta edição Paulo Almeida pinta lábios e contorna olhos apenas ao som da música que soa de uma coluna pousada em cima da sua mesa de trabalho. “Esta calma agrada-me por um lado, porque temos mais tempo para fazer as coisas, estamos mais focados e há menos stress, por outro lado, sentimos menos adrenalina e não há aquele divertimento próprio dos bastidores, aquela correria a correr-nos nas veias.”
Apesar de ter mais tempo disponível para transformar o rosto das manequins, o maquilhador garante que nem por isso a pressão é menor. “A responsabilidade mantém-se, mas não existe aquela rapidez de última hora. Para algumas pessoas isso pode ser limitador ou penoso, eu adoro, estou super habituado.”
No final de cada maquilhagem, os manequins voltam a colocar a máscara no rosto até à hora do desfile, obrigando a equipa de maquilhagem, composta por 16 pessoas, a utilizar texturas mais resistentes, como batons mate e de longa duração. “Evitámos que textura em gloss sejam colocadas aqui. Na boca de cena, parte da equipa aplica esse tipo de produtos e aproveita para retocar todas as imperfeições dos vincos que a máscara deixa na pele. Já o fazíamos antes, mas agora damos mais atenção a essa parte.”
Outra mudança na rotina do maquilhador é a desinfeção dos materiais que tem mais à mão. “Se antes usávamos o mesmo pincel ou o mesmo pó para toda a gente, agora temos o cuidado de, entre as aplicações, desinfetar os pincéis ou optar por materiais descartáveis. Tudo isto faz com que o meu trabalho seja um pouco mais demorado, mas já toda a gente está à espera disso, também por isso é que se reduziu o número de desfiles.”
O facto de tudo ser gravado desta vez, não faz com que Paulo Almeida seja menos perfecionista. “Aqui não há margem para o erro, fazemos tudo como se fosse para um desfile ao vivo, quando chegam à passerelle, deve estar tudo perfeito, não há Photoshop. O que as pessoas vão poder ver em casa é exatamente o mesmo que se pode ver aqui.”
Se nas edições anteriores do Portugal Fashion os testes de maquilhagem eram realizados dias antes do desfile, este ano tudo é feito horas antes do grande momento. “Muitas vezes recebo a ideia do criador e algumas imagens de referência, falo sempre muito com eles para juntos podermos criar um look único e exclusivo. Essa antecedência é importante, até porque há testes que podem demorar meia hora e outros que podem duram três dias.”
Segundo o profissional, o facto de os testes de maquilhagem serem feitos no próprio dia faz com que muitos designers não queiram arriscar em propostas mais criativas ou artísticas. “Vemos imensos looks naturais e uma aposta grande na qualidade da pele, o que é uma tendência, mas também é a opção mais segura. Na próxima estação, quando a pandemia passar, acredito que as pessoas vão querer arriscar e abusar muito mais na cor.”
Zé Carlos Taipa, hairstylist
“Prefiro trabalhar com mais confusão à minha volta, mas assim conseguimos partilhar conhecimento, o que também é importante”
Ao contrário da maquilhagem, nos cabelos houve tempo para testar penteados e cores uma semana antes da gravação dos desfiles. “Neste momento estou a aplicar extensões, mas é uma coisa de última hora para dar mais textura ao cabelo da manequim.” Zé Carlos Taipa coordena uma equipa de 10 cabeleireiros, de secador e latas de laca em punho, distribuídos por um espaço amplo e luminoso, onde saltam à vista as cadeiras separadas por dois metros ou a funcionária da limpeza que higieniza o local sempre que é abandonado por um manequim, varrendo o chão e despejando o lixo.
“Este ano há menos movimento e agitação, mas sinceramente prefiro trabalhar com mais confusão à minha volta. Neste contexto, tudo é feito com tempo, de forma mais relaxada e tranquila, conseguimos controlar melhor as coisas que podem correr mal e na equipa conseguimos partilhar conhecimento, o que num desfile normal era quase impossível que acontecesse.”
Na rotina do cabeleireiro, a grande mudança prende-se com a desinfeção de escovas e pentes após cada utilização, tudo o resto manteve-se. “O trabalho de equipa que faço com os designers não se alterou por ser um formato ser online. Alguns enviaram-me inspirações com imagens e criámos algo a partir dali, outros preferiram contar a história da coleção e tentámos inspiramo-nos nisso mesmo. Por exemplo, a marca Pé de Chumbo não me enviou imagens, desenhou a mulher que queria apresentar e desenvolvemos o cabelo pensando nesses adjetivos.”
Piet Hein Bakker, responsável pela produção
“O objetivo final é sempre mostrar os coordenados e respeitar a criatividade de cada designer”
É nas catacumbas do edifício da Alfândega do Porto que encontrámos Piet Hein a coordenar as filmagens de mais um desfile da plataforma Bloom, dedicada a jovens designers. O produtor admite que gravar um evento como o Portugal Fashion implica “montar uma máquina de alguma complexidade”, onde, em época de pandemia, a prioridade é que não existiam muitas pessoas ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
Cerca de 40 profissionais do audiovisual foram distribuídos por seis equipas diferentes: uma para gravar os desfiles em vários espaços da Alfândega; outra para gravar as entrevistas da apresentadora Raquel Strada aos designers; outra para acompanhar o anfitrião Hugo van der Ding nas conversas que fará nos bastidores; outra que estará com o apresentador Renato Duarte numa sala equipada para realizar entrevistas pelo Zoom; outra para auxiliar a equipa dedicada à publicação de conteúdos nas redes sociais; e uma outra para todo o tipo de entrevistas no exterior, especialmente a designers de moda no seu próprio ateliê.
“Dois dias antes das filmagens, a equipa preparou o local com a iluminação e os cenários, depois disso, tivemos um dia só com ensaios, sem manequins, apenas para programar os percursos na passerelle e para os operados de câmara saberem onde se devem posicionar.” As gravações irão durar três dias e depois segue-se o processo de edição, que deverá estender-se até à véspera da emissão dos desfiles, agendada para esta quinta-feira. “Adoro estar no terreno, mas também gosto muito do lado da edição, que, no fundo, é onde toda a magia acontece. Há desfiles que gravamos e estão prontos para serem emitidos e outros que são autênticos clips, tudo tem de ser mesmo completamente editado.”
Seja como for, o objetivo é simples: mostrar a coleção e passar a mensagem de cada designer. “Por muita criatividade que exista, a intenção é sempre mostrar a coleção, o público tem de conseguir ver todos os coordenados. Também é importante respeitar a criatividade de cada designer, a sua linguagem e a sua identidade, mas também a ideia e a mensagem que quer passar. Uns querem uma dinâmica de desfile, outros preferem uma dinâmica mais de rua, ou seja, nem todos são filmados da mesma forma. No Bloom, por exemplo, cada criador tem a sua personalidade, no entanto é necessário que exista uma certa coerência nas apresentações, pois todos os trabalhos integram a mesma plataforma.”
Habituado a produzir programas de televisão mais robustos, Piet Hien viu na pandemia uma oportunidade para também filmar moda. “Neste contexto, o que mais gosto é o facto de haver espaço para a criatividade e não estarmos condicionados às audiências. Existe outro tipo de pressão e para quem faz televisão, como é o meu caso, é maravilhoso não termos que sacrificar algumas ideias porque eventualmente podem não ter tantas audiências.”
Mónica Neto, diretora do Portugal Fashion
“Algumas aprendizagens vão ficar, mas não acredito que a componente presencial seja substituível”
Depois de uma edição à porta fechada, exclusiva para imprensa, uma outra híbrida, que juntou conteúdos digitais e a componente presencial, o Portugal Fashion aventurou-se num modelo 100% digital, devido à atual situação pandémica no país. “É uma edição muito diferente, reformulámos o conceito e há um sensação de momento inédito e histórico. Transformar o evento numa missão digital é um desafio que obviamente trouxe algumas dificuldades, mas também um entusiasmo transversal a designers e à própria organização.”
As barreiras são muitas e vão da oportunidade de negócio à captação de novos públicos, passando por conseguir transmitir a dinâmica que existe numa semana de moda. “Há dificuldades grandes do ponto de vista de negócio para os criadores, mas ao mesmo tempo existe uma adaptação a um momento que provavelmente não se voltará a repetir e que nos faz criar formas diferentes de apresentar coleções. Do ponto de vista de interação com o público, imprensa e compradores, não é fácil transpor isso para um universo digital, daí a nossa aposta em conteúdos complementares, esperamos alcançar isso de outra forma.”
Para Mónica Neto, este registo traz uma maior capacidade de planeamento relativamente ao que se vai fazer, o que é bom, pois permite controlar questões que num direto não é possível. “Por outro lado, tira a dose de adrenalina inerente a tudo isto, os aplausos no final e a sensação do risco de alguma coisa correr mal. Ficamos agora só com o risco que a emissão falhe de alguma forma, o que é muito diferente.”
Dar individualidade a cada criador em cada desfile foi uma prioridade num processo que passou a ser mais personalizado relativamente à estratégia, à comunicação e à coleção de cada um. “Fizemos um esforço para que pudesse existir uma maioria personalização, até porque as estratégias que todos têm em relação à pandemia são diferentes, uns optaram por apresentar coleções mais pequenas, outros preferem mostrar já as peças que vão vender.”
Sobre a possibilidade de a componente digital ditar as semanas de moda no futuro, a diretora do Portugal Fashion admite que “algumas aprendizagens vão ficar como um novo procedimento para algumas apresentações”, mas não acredita “que a componente presencial seja complementa substituível”. “Estas valências serão incorporadas no futuro, pois há sempre alguém que está mais longe e não pode vir, mas penso que estamos todos necessitados de uma experiência que permita trazer pessoas internacionais para visitas complementares a fábricas e a ateliês, isso é insubstituível.”