É um dos nomes mais conhecidos das ciências sociais em Portugal e acaba de publicar um estudo inédito com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. O “Inquérito às Práticas Culturais do Portugueses 2020”, executado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, é conhecido nesta quarta-feira e já tem edição em livro.
Pela primeira vez em pormenor, e à escala nacional, é possível conhecer os hábitos culturais das pessoas e as suas preferências quanto a consumos de televisão, idas a espectáculos e monumentos, leituras, participação em festivais ou festas populares.
Além de José Machado Pais, o trabalho teve coordenação do programador cultural Miguel Lobo Antunes e do politólogo Pedro Magalhães. É descrito pela Gulbenkian como um “retrato inédito da diversidade das práticas culturais em Portugal”, que pode “dar um contributo para a produção de políticas públicas inovadoras”.
Em entrevista a propósito deste trabalho, Machado Pais, de 68 anos, — doutorado em Sociologia, investigador do ICS, professor catedrático convidado do ISCTE e antigo responsável pelo Observatório das Atividades Culturais — afirma que houve tentativas ao longo dos anos de convencer diversos governos a fazerem um inquérito semelhante. E sugere que os poderes públicos se demitiram desta responsabilidade. Explica ainda porque é que a tauromaquia ficou de fora deste estudo.
Ficou totalmente surpreendido com alguma das conclusões deste inquérito?
De facto, na pesquisa estamos sempre em busca das surpresas, muito embora por vezes nos apareçam coincidências expectáveis que até desvalorizamos. Mas mesma as coincidências expectáveis podem ter uma face oculta que também surpreende.
Coincidências expectáveis é quando os estudos confirmam aquilo de que o sociólogo suspeita à partida?
Pode ser, sim. Por exemplo: é algo expectável que os inquiridos que participam em ateliers artísticos, que tiveram formação e desenvolvem atividades artísticas, se envolvam mais com as práticas culturais, sejam mais comprometidos a este nível. Mas depois começamos a pensar: o que é que estes dados nos sugerem em termos de políticas públicas? Justamente: uma maior aposta na formação artística ou na reunião de condições para que se possa exercer a atividade artística. Um indicador do nosso inquérito refere-se à formação artística extracurricular. Curiosamente, a maior parte desta formação ocorre nas escolas, fora do período de aulas. Se acontece, é porque há estudantes que não se importam de continuar mais tempo na escola para fazerem algo que possivelmente lhes agrada muito.
Essa será uma informação que já esperaria encontrar. E elementos surpreendentes? O baixo índice de leitura, com 61% dos inquiridos que não leram qualquer livro em 12 meses?
Nem tanto. Mas deixe-me voltar às coincidências expectáveis: por que não criar dinâmicas curriculares que possam dar oportunidade de se aprofundar a formação artística, mesmo em áreas que pudessem ser oferecidas por opção, como música ou cerâmica, por exemplo?
É um repto para os municípios e também para o Ministério da Cultura e da Educação?
Exatamente. Haverá pedagogos que fazem a disjunção entre as Artes e outras matérias consideradas mais importantes para a formação dos jovens, as ciências, sobretudo. Essa disjunção é própria de quem gosta de engavetar a realidade, de a segmentar, em vez de promover elos.
Essa sugestão implica alterar currículos?
Não uma alteração, mas um acrescento. Fugir da lógica disjuntiva, apostar na lógica conjuntiva.
O estudo indica que as práticas culturais em Portugal estão muito marcadas pelo contexto de cada pessoa: rica ou pobre, muito ou pouco instruída, nova ou velha. Faz sentido?
Há variáveis sociográficas que de facto são determinantes. É o caso dessas que aponta: as habilitações literárias, o rendimento, a idade. Curiosamente, o género não é tão relevante nas práticas culturais. Em 1994 realizámos um inquérito às práticas culturais dos lisboetas e aí, sim, havia uma diferença acentuada por género. Agora, neste inquérito, já não se nota tanto isso, apesar da diferença entre homens e mulheres nas horas passadas em lazer, mais a favor dos homens, o que se explica pelo facto de as mulheres continuarem a ser sobrecarregadas por tarefas domésticas.
As conclusões a que chegaram permitem dizer que nos hábitos culturais Portugal está atrasado?
Em alguns casos, poderá parecer. Noutros casos, verifica-se que há dinâmicas de mobilidade escolar, que se refletem em comportamentos diferentes do ponto de vista da participação cultural. Fizemos uma análise dos indivíduos em função do grau de escolaridade próprio e o dos pais. Constatámos que inquiridos oriundos de meios sociais mais desprivilegiados, cujos pais têm um grau de instrução mínimo — escolaridade obrigatória ou menos —, mas que conseguiram chegar à universidade, frequentam concertos de música clássica. Se não estou em erro, isto acontece com 14% dos inquiridos. É um indicador que reflete uma mobilidade social induzida pelo prolongamento das trajetórias escolares.
Ainda em relação aos livros, o estudo mostra que os mais novos leem muito na internet, incluindo blogues e notícias. Será preciso mudar a ideia clássica de que ler um livro em papel é que é leitura?
Temos de considerar essa hipótese. Particularmente, os jovens exploram outros registos de leitura, envolvem-se em blogues, criados por eles ou de outrem. Mas são os jovens que reportam formas de participação digital os que mais leem. Mais uma vez, temos uma correlação que não tem de implicar uma disjunção do tipo “se não lês livros, passas a vida a ler o que apanhas na internet”. Há outras possibilidades.
O consumo televisivo pelos mais velhos e menos instruídos diz-nos o quê?
Que a televisão pode ser uma companheira que tenta preencher situações de solidão. Para muitos idosos que vivem isolados em suas casas, a TV é uma companhia quotidiana. Há uns anos um jornalista telefonou-me para saber porque é que certo programa tinha muita popularidade. Referia-se ao concurso “O Preço Certo”. Até nem tinha visto o programa e fui ver. O facto de existir, penso que há já 20 anos, tornou a presença do apresentador familiar, como é familiar a presença dos pivots de telejornal. Já fazem parte de uma família que os idosos não têm, têm a função de substituir ausências.
Porquê só agora um estudo com esta amplitude?
É uma pergunta a que não sei responder. Houve muitas tentativas, muitos contactos com vários Ministérios da Cultura. Eu próprio, quando estive no Observatório das Atividades Culturais, diligenciei apoios para a realização de um inquérito desta natureza e não fui bem-sucedido. O mesmo fez uma colega minha, Maria de Lourdes Lima dos Santos.
Porque é que os poderes não foram sensíveis às tentativas dos cientistas sociais? É a famosa “falta de vontade política”?
Estaria a especular.
Agora foi uma fundação privada a financiar o estudo.
É sinal de que a Fundação Gulbenkian sempre tem exercido funções e criado estratégias e políticas ao nível daquelas que são ou devem ser levadas a cabo pelo poder público.
Que políticas públicas podem resultar das conclusões deste estudo?
Sou do campo da pesquisa… O último capítulo do livro, escrito pelo Miguel Lobo Antunes, fala sobre a questão das políticas culturais. Numa conversa que tivemos, ele disse-me que um resultado interessante do nosso inquérito passa pelo conhecimento da dimensão convivialista, de se ir ao cinema e a espetáculos ao vivo, até a museus e monumentos, na companhia de amigos. Uma das razões invocadas para não se ir é não se ter com quem ir. A ideia é dele, não é minha: por que não pensar em bilhetes para grupos de pessoas, não apenas bilhetes familiares, mas para grupos de amigos, de jovens? É uma possibilidade. Penso que seria interessante ter políticas públicas que pensassem na dimensão mais participativa da cultura. A cultura não apenas no sentido de um domínio de receção, mas também de produção. Falo da participação cultural, dos incentivos à produção artística.
Foi especialmente difícil fazer o inquérito nesta fase de pandemia?
Foi inesperado, claro, e tivemos de tomar decisões. Chegámos a pensar adiar, mas depois vimos que seria importante realizá-lo, até para haver termo de comparação com o que vier a seguir.
A tauromaquia não aparece no inquérito. Decidiram seguir o critério do Eurostat e do Instituto Nacional de Estatística, que há alguns anos deixaram de considerar a tauromaquia uma atividade cultural?
Não fizemos essa pergunta. Na medida em que pretendíamos saber a cadência com que as práticas culturais eram desenvolvidas, tínhamos de fazer perguntas em referência a uma atividade. As entrevistas tinham grande extensão e tivemos de selecionar as atividades.
Seguiram os critérios do Eurostat e do Instituto Nacional de Estatística?
Esse critério também entrou, entre vários. Tínhamos indicadores que mostravam que não é uma prática muito frequentada.
Prevê-se a continuação deste inquérito nos próximos anos?
É possível, espero que sim.
É um estudo histórico?
Não diria histórico, é um marco. Previsivelmente alguns indicadores vão ser replicados no futuro, o que dá margem a que se possa ter já não um retrato, mas uma dimensão temporal nas análises que resultam de uma observação assente em indicadores analisados numa perspetiva longitudinal.