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Se os números que as sondagens preveem se confirmarem, a Venezuela pode estar prestes a viver um verdadeiro terramoto político. No domingo, dia de eleições, culmina um processo eleitoral atribulado — no mínimo — e que até agora envolveu a exclusão de candidatos da oposição, sanções impostas pelos Estados Unidos e um aviso do Presidente, Nicolás Maduro: se perder, as ruas da Venezuela podem testemunhar um “banho de sangue”.
Uma derrota de Maduro, tendência antecipada pelos estudos de opinião, viria a mudar tudo num cenário político há décadas dominado pelo chavismo que o atual presidente perpetuou, mas as dúvidas persistem: depois de anos de alegações sobre eleições fraudulentas, existem muitas dúvidas sobre se o ato eleitoral de domingo será mesmo justo e se a oposição será capaz de chegar ao poder — e ainda se, caso o faça, será possível garantir uma transição pacífica. Aconteça o que acontecer, uma coisa parece consensual: a expectativa está alta e faz destas as eleições mais aguardadas da última década, desde que Maduro chegou ao poder.
Oposição tem ampla vantagem nas sondagens
O dado que está a gerar uma maior curiosidade a propósito destas eleições é que desta vez, numa altura em que Nicolás Maduro concorre ao seu terceiro mandato consecutivo como Presidente, as sondagens preveem que a sua principal oposição — protagonizada pelo ex-diplomata Edmundo González Urrutia — vença as eleições.
É isso que indicam três empresas de sondagens diferentes (Datincorp, Meganálisis e ORC Consultores) citadas pela BBC: os estudos colocam González à frente e a uma larga distância, com mais de 50% das intenções de voto, enquanto Maduro convence menos de 20% dos eleitores (há outros candidatos, mas com percentagens residuais). Responsáveis da empresa Delphos acrescentavam que haveria uma vantagem de “20% a 34%” para a oposição.
Além disso, um estudo recente do Centro de Estudos Políticos e de Governo da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas, indica que 85% da população deseja uma mudança no governo. Todos estes sinais animam a oposição — apesar de todas as reservas que existem sobre a possibilidade de o processo eleitoral ser justo e transparente — e parecem estar a irritar Maduro.
O perfil do opositor — e os obstáculos que impediram as primeiras escolhas de serem candidatas
Apesar de contar com uma larga vantagem nas sondagens, Edmundo González Urrutia é, na verdade, apenas a terceira escolha da coligação que representa a principal oposição a Nicolás Maduro, a Plataforma Unitária. Isto porque as duas primeiras candidatas que os opositores quiseram ver enfrentar Maduro acabaram por ser impedidas de se candidatarem a estas eleições.
O nome mais forte seria, teoricamente, o de María Corina Machado, ex-deputada de 56 anos que é considerada a grande impulsionadora deste movimento anti-chavismo e anti-madurismo, com duras críticas à corrupção e aos erros da administração de Maduro. Neste perfil do The New York Times, o ex-ministro de Hugo Chávez Andrés Izarra, que entretanto se tornou crítico desse regime e partiu para o exílio, admite que este será o movimento político mais importante do país desde o próprio chavismo (o projeto socialista venezuelano iniciado nos anos 1990), embora neste caso a ideologia não seja um fator central: “O movimento de María Corina gira à volta de as pessoas estarem fartas do madurismo“.
Acontece que, apesar de liderar o movimento e de ter ganhado as eleições primárias da oposição no ano passado com 90% dos votos, Corina viu-se impedida de concorrer às eleições gerais. Tudo porque o governo de Maduro acusou a pré-candidata de fraude, acusação que Corina nega, e também de apoiar as sanções norte-americanas impostas à Venezuela. Resultado: o Supremo Tribunal confirmou a condenação de Corina, ficando a professora e engenheira proibida de ocupar cargos públicos durante 15 anos. O Ministério Público do venezuelano emitiu, além disso, nove ordens de detenção para dirigentes da coligação, por suspeitas de planearem “ações desestabilizadoras”.
A ideia passou então a ser candidatar a historiadora e filósofa Corina Yoris, que Machado apoiou e disse ser uma pessoa da sua “confiança”. Mas este plano também não resultou: a oposição veio alegar que Yoris não conseguiu concretizar a formalização da sua candidatura na plataforma online da autoridade eleitoral.
Edmundo González Urrutia surge, assim, como terceira opção, um “candidato de consenso”, como escreve a BBC, que é um diplomata aposentado de 74 anos, além de ser escritor e, segundo a CNN, um “avô tranquilo e amante de pássaros”. Apesar de gozar de menos notoriedade do que María Corina Machado, continua bem à frente nas sondagens, além de contar com o apoio e a companhia de Machado na estrada e nas ações de campanha.
As suspeitas sobre o processo eleitoral: “Não é justo nem limpo”
É a maior dúvida destas eleições: caso as preferências expressas nas sondagens se confirmem no domingo, serão os resultados transmitidos de forma transparente e terá a oposição oportunidade de governar? O histórico mostra uma série de acusações recorrentes de “fraude” sobre as eleições na Venezuela, particularmente as últimas, assim como uma imposição repetida de impedimentos às candidaturas da oposição.
Como lembra a BBC, eleições anteriores na Venezuela foram consideradas fraudulentas por organizações internacionais como a Organização dos Estados Americanos (“uma farsa”), os Estados Unidos e a União Europeia, depois de partidos da oposição terem sido impedidos de se candidatar e de Maduro os ter considerado marionetes “fascistas” de países estrangeiros que estariam a tentar intrometer-se na política venezuelana. Em 2018, as eleições que Nicolás Guaidó assegurava ter ganhado — tentando assumir uma presidência interina do país — foram consideradas ilegítimas por 14 países latino-americanos, o Canadá e os Estados Unidos, que acusaram Maduro de fraude eleitoral.
O tom tinha parecido acalmar nos últimos meses: Maduro permitiu que a Plataforma Unitária se apresentasse a eleições, acordo que levou a que os EUA suspendessem temporariamente as sanções económicas impostas à Venezuela, e assinou assim o Acordo de Barbados, comprometendo-se a respeitar o resultado destas eleições. No entanto, o acordo foi por água abaixo depois de María Corina Machado ter sido impedida de concorrer e de se terem registado detenções de membros da oposição, ativistas e jornalistas (além do chefe de segurança da própria Corina), pelo que a coligação já não assinou a tentativa de acordo seguinte, já em junho deste ano.
Entretanto, Maduro cancelou o convite à missão da União Europeia para observar o processo eleitoral na Venezuela e o Brasil também decidiu não enviar ninguém. A ONU enviará observadores próprios.
Outro dado a ter em conta é a censura de informação: como conta aqui o El Mundo, já restam poucos meios independentes de comunicação social, e seis deles foram bloqueados esta semana, além de acontecerem frequentes apagões e cortes elétricos. Mas a fatia do eleitorado que anseia por uma mudança parece ter arranjado uma solução, ou uma solução possível: bastou pegar nos telemóveis e ligar as suas câmaras.
“O chavismo não contava com as centenas de milhares de mãos que se elevaram em direção ao céu para protagonizar nestes meses a revolução dos celulares”, conta uma reportagem do jornal, explicando que é a estes cidadãos presentes nas manifestações e comícios organizados pela oposição que está a caber passar a mensagem por grupos de WhatsApp, chats de familiares ou amigos. Se os venezuelanos já se tinham habituado a falar à distância e por vídeochamada com os seus entes queridos, uma vez que são muitas as famílias que se vão separando enquanto parte sai da Venezuela, a necessidade aguçou o engenho e transformou-se num meio de comunicação e de transmissão de informação poderoso. É uma espécie de “revolução dos telemóveis”, como lhe chama o jornal espanhol.
Por todos estes motivos, o principal opositor de Maduro vai, durante a campanha, garantindo que as eleições não são “justas” nem “limpas”, enquanto membros da oposição se vão queixando do controlo do aparelho do Estado por Maduro e da forma como o usa para desequilibrar a arena nestas eleições. Já Maduro diz que o sistema eleitoral venezuelano é “o mais transparente do mundo” e acusa a oposição de querer “semear uma hecatombe” para pedir a suspensão do ato eleitoral e “sabotá-lo”.
Há 21 milhões de venezuelanos inscritos para votar, sendo que o voto não é obrigatório e é eletrónico.
Inflação, pobreza e desconfiança: as razões para o declínio de Maduro
Convém recordar que Nicolás Maduro era um discípulo de Hugo Chávez (e ex-condutor de autocarros), tendo chegado ao poder em 2013, um ano depois de Chávez ter sido eleito para um quarto mandato como presidente. Com o chavismo consolidado, o seu líder acabou por adoecer, com cancro, e morrer em Caracas, aos 58 anos, em 2013, sendo substituído — primeiro de forma interina, depois com uma ida às urnas que lhe deu uma vitória por uma margem curta — por Maduro.
Ora estas eleições encontram Maduro com 61 anos, no seu terceiro mandato e 11º ano à frente dos destinos do governo. Os especialistas citados pela imprensa internacional, como neste texto da CNN internacional, notam que durante o este consulado a inflação na Venezuela disparou, a escassez de alimentos também e o Fundo Monetário Internacional sentenciou que o país sofreu “o maior colapso económico de um país sem conflitos em quase meio século”, com muitas pessoas a viverem na pobreza e no desemprego — e oito milhões de venezuelanos a deixarem o país nos últimos anos.
É por isso que as promessas da oposição giram muito à volta do controlo da inflação, da recuperação da economia — tema identificado como central nesta campanha pelos analistas políticos — e da recuperação da confiança nas instituições venezuelanas. Já Maduro responsabiliza as sanções económicas impostas pelos Estados Unidos pelo declínio da economia da Venezuela.
E depois das eleições? O “banho de sangue” e o aviso de Lula
Os primeiros sinais estão a gerar preocupação: num comício recente, Nicolás Maduro antecipou que pode haver um “banho de sangue” e uma guerra “fratricida” nas ruas se não ganhar, pedindo por isso a “maior vitória eleitoral de sempre” — e depois desvalorizou essas declarações, respondendo, ao ouvir o Presidente brasileiro, Lula da Silva, dizer que estava assustado com aquelas palavras, que quem estiver assustado deve “beber um chá de camomila”.
Lula, que tem deixado alertas sobre a situação na Venezuela — uma mudança a registar depois de muitos anos de simpatias políticas entre os consulados do PT de Lula e o regime chavista, como nota a imprensa brasileira — deixou o recado: “O Maduro tem que aprender, quando você ganha, você fica; quando você perde, você vai embora”.
Ainda assim, analistas como Mark Feierstein, consultor sénior do programa América Latina do think tank United States Institute of Peace, dizem à BBC Brasil que seria “altamente arriscado” para Maduro tentar permanecer no poder caso a oposição tenha uma vitória “clara e esmagadora”, com observadores internacionais a acompanhar o processo e “multidões nas ruas”. “Será que as forças armadas reprimiriam manifestantes de um presidente rejeitado? E os aliados de Maduro aceitariam sanções e a ira popular por um líder repudiado?”, questiona o analista.
O atual ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, já veio assegurar que as tropas venezuelanas irão fazer “o que está no quadro do Plano República [destacamento militar para salvaguardar a ordem e a segurança]”. “Vamos esperar pela decisão do povo transmitida através do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e pronto”, disse López em Caracas. “Quem ganhou vai avançar com o seu projeto de governo e quem perdeu pode ir descansar”, adiantou López, criticando “o joguinho das sondagens (…) que se quer impor sobre as instituições”.
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Certo é que, se houver mudança no governo, o período de transição ainda durará seis meses, uma vez que o mandato de Maduro só termina no início de 2025. Esse período poderia incluir negociações para amnistias no governo de Maduro — que está acusado de tráfico de drogas e corrupção pelos Estados Unidos e crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional — sendo que María Corina Machado tem assegurado que propôs uma “negociação séria com garantias” para Maduro, como cita a CNN, garantindo que o objetivo não é o de pôr em prática nenhum tipo de vingança ou “perseguição” contra o atual regime.
No entanto, todo esse processo só avançaria se as intenções indicadas pelas sondagens se traduzissem em votos e se esses resultados fossem transmitidos e confirmados de forma transparente — e tudo isto é, para já, uma incógnita.