Tinha de acontecer logo ali, naquele dia, e enquanto uma multidão aguardava, ansiosa e entusiasta, para ver e ouvir um discurso que ficara enclausurado durante 27 anos. A 11 de fevereiro de 1990, o mundo estava colado à televisão, os sul-africanos saíam à rua e o centro da Cidade do Cabo, diante do edifício da câmara municipal, enchia-se de gente. Nelson Mandela acabara de ser libertado. Mas ninguém sabia onde andava o homem cujo “ideal de uma sociedade livre e democrática” manteve preso durante quase três décadas. O mesmo pelo qual estava “preparado para morrer”.
A impaciência e preocupação cresciam na multidão como fervura em água ao lume. O cenário “estava caótico”, como lembrou a Fundação Nelson Mandela. Até a violência aparecera, com pessoas a pilharem lojas e relatos de disparos e mortos já registados. A demora na chegada do símbolo de um povo, do ícone de uma luta contra a segregação racial, não ajudava. “Se ele não aparecesse, a cidade seria rasgada ao meio. As pessoas ficariam tão zangadas que a Cidade do Cabo ficaria irreconhecível”, avisou, na altura, o arcebispo Desmond Tutu, que seis anos antes recebera o Prémio Nobel da Paz.
Numa época em que muito raros eram os bolsos com telemóveis ou a internet atual ainda era uma miragem, cerca de uma hora passou até se descobrir onde andava Nelson Mandela — estava num dos subúrbios da cidade, a tomar um chá, descalço e sentado no sofá da casa de Saleem Mowzer, um dos cerca de 800 ativistas que, à pressa, organizaram a cerimónia de libertação de Mandela — o próprio, aliás, só no dia anterior foi informado que iria ser libertado. “Já estava a divagar sobre o que vos teria acontecido”, disse Mandela, bem-disposto, a Trevor Manuel, quando o então responsável pela sua segurança o encontrou, de chávena na mão, no interior da tal casa. Nelson Mandela estava tranquilo, como estivera ainda nesse dia na prisão, onde, como de costume, lera os jornais pela manhã e até fizera a sua sesta diária antes de ser libertado.
O futuro Presidente sul-africano (1995-1999) fora ali parar, a uma casa nos subúrbios, porque o motorista, ao deparar-se com a multidão nas ruas que afunilavam em direção à câmara municipal, decidiu alterar a rota e esperar que a confusão se dissipasse. Nunca aconteceu. E Nelson Mandela chegaria mesmo a discursar perante quase 60 mil pessoas, no topo de uma das varandas do edifício. “Estou aqui diante vós não como um profeta, mas como um humilde servo do povo”, foram das primeiras palavras que proferiu. “Aquela multidão despertou em mim sentimentos de excitação que não consegui controlar, nem consigo descrever”, diria mais tarde à BBC, por ocasião de um documentário sobre a vida de Mandela.
Today, 11/2/1990 #NelsonMandela was released from Victor Verster Prison in Paarl at 16h22 http://t.co/4QBhJl9Z4W pic.twitter.com/19uzJ7IRC5
— NelsonMandela (@NelsonMandela) February 11, 2015
Horas antes, e a quase 70 quilómetros do centro da Cidade do Cabo, Mandela saíra de braço direito bem erguido, com um punho cerrado, olhos cortados, semi-fechados, de sorriso rasgado e com a cara de felicidade que para sempre ficaria como uma das marcas do homem que passou 27 anos, seis meses e quatro dias detido entre três prisões. Foram 1040 os dias de prisão que cumpriu desde 1964, quando ele e vários outros membros do ANC [sigla inglesa para o Congresso Nacional Africano, partido ao qual pertencia] foram condenados a penas de prisão perpétua, considerados culpados de crimes de conspiração contra o apartheid, regime de segregação racial, imposto pela minoria branca, que imperava no país desde 1948.
Da última, a de Victor Verster, insistiu em sair pelo próprio pé, a caminhar, com a então mulher, Winnie, ao seu lado. Queria que o mundo e a África do Sul o vissem dar os primeiros passos em liberdade. Por isso rejeitou a proposta feita por Frederik de Klerk, então Presidente do país, dois dias antes: que Nelson Mandela voasse diretamente até Joanesburgo, para ser libertado em sua casa, no bairro do Soweto, a cerca de 1400 quilómetros da prisão que o guardou entre 1988 e 1990. A mesma onde já tinha direito a uma casa com televisão, microondas e um cozinheiro privado. Ou seja, conforto. Tudo o que não tivera em Robben Island, na ilha ao largo da Cidade do Cabo, onde passou 18 dos 27 anos de prisão numa cela com menos de dois metros quadrados e com o chão a servir de cama.
O enclausuramento acabou a 11 de fevereiro de 1990, dois meses antes de António Mateus o entrevistar pela primeira vez e bem cedo pela manhã. “A entrevista estava marcada para as 6h30. Quando cheguei à sede do ANC não estava lá mais ninguém, nem mesmo os seus guarda-costas”, conta o então chefe de delegação da Agência Lusa. “Tínhamos um cartão do ANC que nos permitia passar pelas portas e, quando chegámos ao gabinete do Mandela, nem a secretária dele lá estava”, revela, ao telefone com o Observador, quem na altura tinha 30 dos 54 anos que já leva contados.
António estava prestes a falar com o homem que voltou as costas ao rancor e ressentimento para com a minoria branca sul-africana que o mantivera preso — pois com ela teria, e teve, de negociar uma solução para terminar com o apartheid. “Era uma altura em que literalmente toda a gente queria falar e entrevistar o Nelson Mandela”, recorda, antes de passar a memória pelo momento em que chegou ao gabinete onde o futuro líder da África do Sul o esperava. “Quando lá chegámos, ele viu-nos, levantou-se ao fundo, olhou para nós e disse: “You must be Ross, and you António Mateus”, desenha, lembrando o jornalista australiano que o acompanhava e, como o português, se espantou com “a extraordinária preocupação de [Mandela] ir buscar o melhor de todas as pessoas que estavam à sua volta”.
Uma das “qualidades”, prosseguiu o hoje jornalista da RTP que, de início, o deixou “surpreso” com Nelson Mandela, mas que, com o passar dos anos e das “montanhas de conferências de imprensa coletivas”, fez crescer a admiração pelo líder sul-africano, falecido em dezembro de 2013, aos 95 anos. “Era sempre super-pontual. Dava um valor enorme ao tempo. Explicava-nos que o tempo era a coisa mais preciosa que temos na vida, que era a própria vida em si. Nunca fazia ninguém esperar porque achava que isso era deitar fora a existência dos outros”, explica. Depois, pareceram faltar palavras para, ao mesmo tempo, António falar do “fascinante e genuíno” interesse que Mandela tinha “sobre as coisas que diziam respeito aos seus interlocutores”.
Por isso parecia investigar sobre as origens de quem sabia estar prestes a privar consigo. Fossem políticos, chefes de Estado, cidadãos comuns ou jornalistas. “O Nelson Mandela ensinou-me imensas coisas sobre a história de Portugal”, recorda, sem conter uns quantos risos. “Na tradição oral Xhosa, que era a tribo dele, eles absorveram montes de náufragos portugueses ao longo da costa sul-africana. Transmitiam muitas histórias dos navegadores que tinham ficado a viver com eles, e as histórias eram sempre muito positivas”, explica, quando falou do “carinho” que Mandela tinha para com os portugueses, “apesar da imagem comum dos portugueses na África do Sul, naquela altura, ser de apoio ao regime do apartheid, porque tinha sido o regime a acolher os que tinham perdido tudo em Angola e Moçambique”.
António Mateus, que permaneceria na África do Sul até 1999 para, depois, voltar a residir no país entre 2000 e 2005, ainda conseguiria outras cinco entrevistas com Nelson Mandela. “Era uma pessoa que saiu da prisão mais preocupada em serenar as expetativas e os medos da minoria branca, e daqueles que temiam que, na África do Sul, acontecesse o mesmo caos que tinha acontecido nos períodos de independência em outras nações africanas. Estava muito preocupado para que isso não acontecesse na África do Sul”, afirma o jornalista, realçando que “é surpreendente como alguém que saiu da prisão onde estava há 27 anos teve a lucidez absoluta da necessidade e prioridade de fazer com que todos os cidadãos daquele país se sentissem lá bem-vindos”.
E o esforço que tal lhe exigiu não foi pouco. Mesmo com Nelson Mandela em liberdade e longe de uma cela de prisão, o racismo e a segregação ainda moravam na sociedade sul-africana. O presidente Frédérik de Klerk mostrava abertura para acabar com o apartheid, mas as negociações com o ANC, lentas e morosas, demorariam quatro anos até culminarem nas eleições que, em 1994, chamaram pela primeira vez milhões de negros a exercerem um direito de voto. Pelo meio, contudo, a violência e os confrontos não cessaram. Pior ficaram quando o Inthaka Freedom Party, associado aos zulus, o maior grupo étnico do país, se opôs ao ANC. E pior ainda quando a extrema-direita começou a reclamar pela permanência da minoria branca no poder.
Alturas houve em que até mesmo a figura de Mandela parecia insuficiente para unir a maioria negra na postura que o seu líder advogava. “Odiávamos o regime do apartheid. Não queríamos ter nada que ver com ele. Mas os nossos cérebros diziam-nos que, se não conversássemos com estas pessoas, o nosso país desapareceria em fumo”, chegou a dizer, anos mais tarde, a um documentário realizado pela BBC. Por isso, Madiba — alcunha de origem Xhosa –, “foi sempre serenando os ânimos” entre todos, como salientou António Mateus. “Ia a todas as cidades negras, aos principais sítios de confronto físico e de grande risco, sempre de peito feito, sem guarda-costas da polícia, para os locais onde se andava aos tiros com kalashnikovs [metralhadoras]”, lembra o jornalista, sem abrandar no ritmo com que juntava palavras para falar do homem “admirado pela coragem, o despojamento e o exemplo”.
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O mesmo que “quando entrava numa sala, a enchia”, e planeava todos as palavras, gestos, atos ou visitas que realizava para, uma dia, ver na África do Sul “todas as pessoas a viverem juntas, em harmonia e com igualdade de oportunidades”, como sublinhou na última sessão de tribunal que teve antes de ser preso, aos 45 anos, e na primeira vez que, em público, discursou após ser libertado, com 71. “Chegou a dizer que, se tivesse medo de andar no meio do seu povo, então quem poderia lá andar? Só o facto de ir para ali tinha um efeito”, enalteceu António Mateus, autor de dois livros sobre Nelson Mandela. Foi com este sonho que Madiba foi eleito presidente em 1994, no primeiro ato eleitoral livre e democrático na África do Sul, e liderou o país até 1999.
Foi com este mesmo ideal, por exemplo, que Mandela, em 1995, abraçou o râguebi, um desporto quase exclusivo à minoria branca, e viu na caminhada da seleção sul-africana até à conquista do Mundial (que se realizou no país) uma oportunidade para apelar à união entre negros e brancos. Nelson Rolihlahla Mandela estava disposto a morrer por este ideal, mas conseguiu viver por, com e para ele: “Não me julguem pelos meus sucessos. Julguem-me pelas vezes em que caí e me voltei a erguer.”