Por detrás de grandes atletas olímpicos há grandes mulheres. “Sabe, tenho muitos problemas de ansiedade… Enervei-me quando comecei a ver a Telma com a lesão no ombro. Tive que ir à farmácia, tive que ir medir a tensão. Tinha a tensão muito alta, coisa que nunca tinha acontecido. Gritava muito dentro de casa e mandava calar toda a gente”. Manuela Monteiro vai ao baú das lembranças recuperar as sensações que viveu em 2016 quando a filha, a judoca Telma Monteiro, conquistou, em condições limite, a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, naquele que era um dos poucos pódios que faltavam na carreira.
Telma tem a quem sair. Herdou da mãe o tom de voz. A única diferença é o instinto maternal que as palavras de Manuela não são capazes de esconder. “Só de falar nela, eu já…”. Não consegue completar a frase. Começa a fazer gestos que substituem uma explicação clara da cumplicidade que construíram desde o berço. Ao Observador revela o incentivo que dá à filha: “A única coisa que digo é ‘Telma, vais conseguir'”.
“Nos Jogos Olímpicos de 2016, já estávamos a passar a cancela do aeroporto. Eu já não podia avançar, e lembro-me de dizer ao senhor da TAP para me deixar ir só dizer uma coisa à minha filha. Disse à Telma ‘Podes não trazer a primeira nem a segunda, mas acredita que trazes medalha. Vais trazer medalha!’. Achei graça que, quando ganhou, ela disse ‘A minha mãe disse que ia trazer medalha’. Foi uma intuição”, conta Manuela sobre o momento em que se despediu da filha.
Os dias de glória de Telma Monteiro começaram no Bairro Branco, no Monte da Caparica. A distância para o Construções Norte-Sul, clube onde começou a praticar judo, obrigava-a a tirar os pés da cama cedo. “Nós morávamos num bairro social. Não tenho nada contra o bairro, mas, na altura, achei que o clube onde ela estava era muito longe da nossa casa”, conta Manuela. Mas mãe que é mãe faz sacrifícios. “Visto que ela já estava a receber a bolsa da Federação e não me ia fazer tanta diferença a nível monetário para mim, porque já não tinha que lhe dar aquele dinheiro, achei que devia aproveitar as minhas poupanças e dar entrada para uma casa. Essa casa era mesmo perto do clube onde ela treinava, ou seja, escusava ela de se levantar tão cedo para treinar”. Nascia assim uma campeã. “Uma atleta que vai para o judo com 14 anos e aos 17 para 18 é atleta olímpica, não é para qualquer um. Os miúdos começam aos cinco anos no judo e ela começou aos 14. No fundo, só vivia para o judo”.
Manuela Monteiro ou Maria, como lhe chama a filha, em tempos foi cozinheira. Acaba de comer um salgado antes de falar. “Eu trabalhava até tarde. A Telma teve a ajuda da irmã. Tenho uma filha mais velha que abdicou de estudar. Ela era mãe presente e eu era a mãe que telefonava a perguntar se estava tudo bem. Nos estágios, era eu que tinha que ter dinheiro, a bolsa só não era nada. Quando iam para o Japão… O que é que era a bolsa no Japão? Não era nada…”.
Além da medalha olímpica, Telma Monteiro foi seis vezes campeã europeia (entre 15 presenças consecutivas no pódio das competições em que participou) e ficou quatro vezes em segundo lugar em Campeonatos do Mundo. No entanto, em cima do tatami, os combates nem sempre correm bem e aí a mãe emociona-se. “Choro muito. Você não tem noção… Choro muito de tristeza porque sei que ela está triste. Choro muito, porque, às vezes, é injusto. Já consigo perceber algumas coisas das regras e sei que ela foi ‘roubada’ ou então digo ‘Somos portugueses, nunca mais nos conseguimos afirmar'”.
“Psicologicamente, a Telma é muito forte. Já vi atletas muito fortes, mas, como vê, estamos a falar de saúde mental e muitos atletas não estão a conseguir lidar. Admiro-a muito por isso. Ela tem os seus amigos como sempre teve. As maiores amigas dela ainda são as do bairro onde nós morávamos. Gostava de um dia a ver num alto cargo do judo. A minha filha não ia olhar para ela mas ia olhar pelos atletas porque ela sabe de onde veio. É uma pessoa que poupa muito, que não esbanja dinheiro. Ela sabe que isto tem um limite – é uma fase que acaba – e tem que precaver o seu futuro”, descreve num tom em que se percebe que uma mãe a descrever uma filha é um momento em que fala de uma parte de si.
Telma Monteiro soma participações em cinco Jogos Olímpicos. Em Tóquio, depois de ter sido eliminada ao segundo combate, frente à polaca Julia Kowalczyk, a judoca deixou em aberto uma participação em Paris-2024, com 38 anos. A mãe não tem dúvidas do que vai acontecer. “Ela vai aos próximos Jogos Olímpicos, acredito. Escreva o que lhe digo. Isso lhe garanto. Tenho um feeling. E vai sair pela porta da frente”.
Regina Rodrigues não queria que o filho bicampeão do mundo de judo fosse polícia
Manuela Monteiro foi homenageada no Dia Internacional da Mulher em conjunto com outras mães de atletas portugueses que conquistaram medalhas olímpicas. A cerimónia decorreu na sede do Comité Olímpico de Portugal. O edifício recebe os visitantes com uma grande imagem de Nelson Mandela. As paredes estão preenchidas com os nomes que integraram cada Missão Olímpica. São muitos. Tantos que resta pouco do fundo claro onde são inscritos. A grandeza ocupa espaço. Mesmo assim, num canto da sala, ainda há lugar para o corpulento Jorge Fonseca. Apesar do corpo habituado a projetar adversários no tapete, o judoca figura ao lado da mãe, Regina Rodrigues, como um aluno que aguarda pela apresentação da escola ao lado da encarregada de educação.
Jorge costuma dizer que ninguém se metia com ele na escola por causa do corpo que tinha. O Observador questionou a mãe se era mesmo assim, se o judoca nunca tinha levado uma tareia como as que aplica no tatami. “Que eu saiba não”, respondeu Regina. Ambos sorriram com o judoca envergonhado com o que a mãe pudesse contar perante a pergunta. Desde criança, o atleta queria ser polícia, o que a mãe diz não apoiar. “Não gostava que ele fosse polícia. Não quero, não gosto. Mas é o sonho dele, ele é que sabe…”.
Jorge Fonseca, o judoca que fez ippon ao cancro. “Incomodou-me a forma como fui exposto na doença”
No ano passado, Jorge Fonseca, bicampeão do mundo, tentou realizar as provas de acesso à PSP mas chumbou. Era um sonho de criança, talvez o mais cliché. “Já não estou focado na polícia, estou focado nos próximos Jogos Olímpicos que são daqui a cerca de um ano e meio”. O judoca aponta para uma coluna onde estão imagens dos portugueses que conseguiram vencer medalhas de ouro por Portugal nas olimpíadas. “O meu objetivo é ter a minha cara ali ao lado da Rosa Mota. Falta-me a medalha principal”. Em Tóquio, Jorge Fonseca conseguiu alcançar a medalha de bronze ao derrotar o canadiano Shady Elnahas. Soube-lhe a pouco principalmente porque, na meia-final, as caibrãs nos dedos das mãos levaram-no a não estar no seu melhor para garantir o acesso à final.
Quando chega Nuno Delgado, antigo judoca, medalhado olímpico em Sydney-2000 (bronze), Jorge Fonseca apresenta-lhe Regina. A mulher diz-lhe que tem “um grande menino”. Às pessoas, Jorge diz “Esta é a minha mãe”. “É o meu pai e a minha mãe ao mesmo tempo. Foi ela que me criou desde miúdo. Tenho muito que agradecer a esta senhora por tudo o que ela fez por mim, momentos difíceis que passámos juntos. Não há palavras para descrever”.
Regina Rodrigues, a quem Jorge dedica sempre as medalhas que conquista, admitiu o que sente quando o filho, “um bocadinho reguila”, combate. “Sofro muito só de o ver. Fico muito nervosa. O Jorge como criança? Não foi nada fácil. Foi com essa rebeldia que ele chegou onde chegou. Ele agora é mais disciplinado”.
Filomena Obikwelu pensou que o filho tinha morrido quando fugiu de casa
Da Nigéria veio Filomena Obikwelu. Francis, Francis Obikwelu, indica-lhe o caminho com o braço por cima do ombro. Já não se mexe ao ritmo a que o filho corria os 100 metros. “Ele era um rapaz terrível quando era mais novo”, confessa em inglês. Na infância, ainda longe de representar Portugal, Francis parecia treinar para ser barreirista, tal a forma como saltava pelas janelas de casa enquanto brincava. “Ele costumava brincar demasiado e eu tentava impedi-lo de brincar mas não conseguia. Quando as brincadeiras lhe corriam mal, ficava chateada”, descreve Filomena.
“Eu era um filho terrível, estragava tudo em casa. Sempre soube onde é que ia chegar e o que é que ia fazer. Dizia à minha mãe que ia ser famoso. Ela dizia-me ‘Vai dormir, esquece isso’. Sempre achei que ia ser um atleta de outro nível”, conta Francis Obikwelu. O percurso até ganhar a medalha de prata em Atenas-2004 teve muitas peripécias e nem sempre os dois foram próximos. “Aos 14 anos, a minha mãe e o meu pai não me deixavam fazer nada de desporto. Era só estudar, estudar, estudar…”, conta Francis. “Roubei dinheiro e fui comprar material para correr. A minha mãe bateu-me tanto… O meu pai queimou tudo o que comprei. Chorei tanto… Depois, fugi de casa. Nunca mais vi a minha mãe e fui para outra cidade fazer a minha vida. Só assim é que conseguia fazer o que gostava de fazer”.
Quando veio a Portugal correr pela Nigéria no Campeonato do Mundo de Juniores, fugiu do hotel e por cá ficou. “Tive que fugir e ir trabalhar nas obras. Aí é que comecei a fazer a minha vida. Não foi fácil, mas foi marcante essa experiência. Deu-me mais força para fazer o que gostava”. O reencontro com Filomena só aconteceu aos 18 anos. “Não tinha comunicação. Os meus pais pensavam que eu tinha morrido”.
No entanto, Francis Obikwelu guarda boas memórias da infância. “Partia tudo em casa. Quando a minha mãe me dizia para eu fazer uma coisa, eu fazia outra coisa. Sempre a brincar e a correr, a estragar tudo. Temos sempre recordações muito fortes da infância”. Entretanto, o antigo corredor e a mãe reaproximaram-se e celebraram juntos a medalha de prata que o velocista ganhou na Grécia.
“O povo português mandou dinheiro para o meu voo e para o do meu marido, na altura em que ele era vivo. Viemos para a celebração. Nesse ano, o meu filho ganhou a medalha para eles. Por causa do meu filho, eles ouviram o nome deles por todo o mundo. Por isso, estou muito feliz. Estou sempre feliz com o meu filho. Ele é uma boa pessoa, uma criança muito boa”.
Governo quer maior acesso das mulheres aos “lugares de poder no desporto”
A cerimónia que reuniu as mães dos atletas olímpicos com medalhas para assinalar o Dia Internacional da Mulher contou com a presença do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, que anunciou que os registos de desportistas em Portugal comunicados ao Estado estão em níveis superiores ao período pré-pandémico devido à subida do número de praticantes femininos. “O crescimento das mulheres no desporto está a permitir que as federações digam que têm números recorde”, disse o membro do Governo.
João Paulo Correia destacou ainda a necessidade de um maior mais acesso da mulheres aos “lugares de poder no desporto” e assumiu que “o combate às desigualdades é uma missão de todos os dias e que convoca cada um de nós”. “Precisamos de promover a igualdade de género no desporto, porque é assim que promovemos as mudanças”, referiu.
O presidente do Comité Olímpico de Portugal, José Manuel Constantino, agradeceu “em nome de Portugal” às mães dos atletas. “Só hoje conheci as mães dos nossos atletas. São as primeiras adeptas deles. São as que mais sofrem. Choram de alegria quando corre bem e de tristeza quando corre mal” pelo que “não é demais valorizarmos o papel das mães no percurso desportivo destes atletas”.