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Maputo viveu cenário de guerra mas não sabe o que vai ser o dia seguinte

Não chegaram ao centro do poder, mas nunca estiveram tão perto. Não houve banho de sangue, mas manifestantes morreram. Maputo viveu protesto "sem precedentes na história do país". E não acabou.

Maputo sabe como foi dormir esta quinta-feira à noite: sem internet e com os despojos de um dia de “guerra”. Fumo na direção dos bairros, sinal de pneus ainda a arder a bloquear passagem para alguns subúrbios e para o aeroporto, “panelanço” na “cidade de cimento” das 19h às 21h, e depois o silêncio. Tal como o do governo, ou da Frelimo, que ainda nada disse sobre o que se passou durante o dia na capital de Moçambique.

Nas ruas, sobram as marcas de uma revolta contida pela polícia: pedaços de borracha desfeita dos pneus incendiados e caixotes do lixo em cinzas, por vezes “alguns ainda em chamas”; pedras, paus e garrafas que os manifestantes atiraram às forças de segurança; balas, algumas de borracha e outra reais, e muitas cápsulas do gás lacrimogéneo que as forças de segurança lançaram contra quem protestava. No ar, um cheiro intenso a queimado e a gás lacrimogéneo. E, em alguns bairros, na descrição que uma moradora faz ao Observador, “sangue no chão”.

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Houve mortes, neste banho de multidão. Quantos, ainda não se sabe bem. Organizações não governamentais como o Centro para a Democracia e os Direitos Humanos (CDD), contabilizaram, para já, cinco, e mais de cem feridos. Há vídeos (que até a sensibilidade menos exigente preferia não ter visto), de jovens sem vida, um deles ensanguentado, a ser arrastado com os órgãos de fora.

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Venâncio Mondlane, que convocou esta marcha para culminar os “Sete dias de libertação de Moçambique do colono preto” e a “Manifestação contra o assassinato do Povo Moçambicano” fala em dois mortos. No entanto, ainda é cedo para ter números, o hospital de Maputo faz esta quinta-feira às 9h00 (hora local) uma conferência de imprensa para dar dados. Porém, Adriano Nuvunga, diretor do CDD, ressalva, em declarações ao Observador, que “muita gente não recorre a unidades de saúde com medo da polícia”. Pelo que serão sempre mais do que os oficiais.

Mas Maputo não sabe como vai acordar. VM7 (como apoiantes e jornalistas tratam Venâncio Mondlane) o candidato independente que garante ter vencido as eleições presidenciais de 9 de outubro, contestando os resultados oficiais, ainda não validados pelo Conselho Constitucional, diz que o protesto nas ruas não acabou.

A sociedade moçambicana fica sempre pendente, à espera do que o Venâncio Mondlane irá dizer para saber o que vai ser da sociedade moçambicana.
Adriano Nuvunga

“Se não houver reposição da verdade eleitoral, estas manifestações não vão parar. Vamos ocupar a cidade de Maputo até se devolver a vontade do povo. Caso contrário, a cidade de Maputo vai ficar ocupada de uma forma indefinida. Sem prazo. Até à devolução dos resultados eleitorais. É isso que queremos”, disse numa das suas “lives” diárias no Facebook a partir do exílio.

O problema é que não disse como é que isso vai ser, avisa Adriano Nuvunga. “O povo não sabe se amanhã pode ir à escola ou não, se pode ir trabalhar ou não, se pode sair para ir vender”, sublinha ao Observador.

“Isso não está claro, então fica a ideia de que a sociedade moçambicana fica sempre pendente, à espera do que o Venâncio Mondlane irá dizer para saber o que vai ser da sociedade moçambicana”, lamenta.

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O governo nada disse e a Frelimo, o partido que está no poder, disse alguma coisa, mas foi na véspera: “A porta-voz limitou-se a reafirmar que venceram as eleições e vão aguardar os resultados do Conselho Constitucional”, diz Adriano Nuvunga. “Apesar de as pessoas da Frelimo falarem, depois de o fazerem parece que essas mesmas pessoas vão ficar à espera do que o que a ‘live’ do Venâncio vai dizer sobre o dia seguinte, portanto neste momento o dia seguinte está assim num suspense, não se sabe muito bem o que vai acontecer”.

Se não houver reposição da verdade eleitoral, estas manifestações não vão parar. Vamos ocupar a cidade de Maputo até se devolver a vontade do povo. Caso contrário, a cidade de Maputo vai ficar ocupada de uma forma indefinida. Sem prazo.
Venâncio Mondlane

Em dia de “guerra”, polícia dispara sobre jovens ajoelhados

O dia começou cedo em Maputo, com um forte dispositivo policial e militar nas ruas, com o palácio da Ponta Vermelha, residência oficial do chefe de Estado, guardado como nunca. E depois começou a enchente humana, como vários vídeos mostram.

E a seguir os confrontos com a polícia.

“Esta manhã acordámos com a cidade muito militarizada e policiada, muitas pessoas tentaram entrar em Maputo e a polícia começou a disparar gás lacrimogéneo e depois transformou-se num cenário de guerra”, relata Rafael Machalela, jornalista que vive em Moçambique, à Rádio Observador.

Apesar do bloqueio à internet e limitações nas comunicações, as redes sociais rapidamente começam a ficar inundadas de vídeos que mostram os manifestantes a queimar pneus, caixotes do lixo, uma antena de telecomunicações, um caixão a simular o enterro de Daniel Chapo, o candidato que a Frelimo diz que venceu as eleições presidenciais, e a destruir equipamentos públicos como semáforos e painéis publicitários. A polícia, a UIR, Unidade de Intervenção Rápida, o exército e até as tropas da Casa Militar tentavam barrar a passagem dos manifestantes.

Num dos vídeos muito partilhados, vê-se um grupo de jovens que tenta sair de um bairro, ajoelhado no chão, atrás de faixas com a cara de VM7 e slogans “Este país é nosso” a falar com as forças de segurança. Estão a cinco metros e de repente os militares começam a disparar gás lacrimogéneo e balas de borracha, ferindo alguns, refere o CDD.

Depois chegam os relatos e as imagens de pilhagens. Protagonizadas por manifestantes e por polícias. VM7 diz que são infiltrados no protesto, que estão ali para destruir e pilhar. João Feijó, sociólogo moçambicano e doutorado em estudos africanos, que está em Maputo, explica à Rádio Observador que há várias unidades da polícia, e que aqueles a quem chamam os “azulinhos” são “muito mal pagos”.

Estão armados mas “não são polícia anti-motins, alguns tiveram de fugir, alguns foram linchados [depois de matar manifestantes, mas não neste protesto em Maputo], a alguns roubaram-lhes a arma”, e participaram nas pilhagens. “Carregaram esses bens e levaram para a esquadra, agora vão alegar que estavam a proteger equipamento”, criticou.

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“O que aconteceu hoje foi algo inédito”, começa por dizer o diretor do CDD. “O Estado moçambicano sabendo que estava em marcha esta manifestação, estava preparado. Já ontem começou a colocar tanques nas principais praças e artérias à espera da população, cortando a internet, limitando as comunicações precisamente para diminuir a capacidade de comunicação mas também para impedir a comunidade internacional de saber das violações que vão sendo cometidas aqui”, frisa Adriano Nuvunga.

O ativista acusa a polícia e os militares de dispararem “indiscriminadamente gás lacrimogéneo e balas de borracha, mas também balas reais em situações que estão documentadas”.

As balas reais “são muitas vezes disparadas pelos polícias à paisana, dando ideia de que são os tais esquadrões da morte, que sempre existem, que andam à paisana e recebem ordens ilegais de pessoas do Estado para cometer atrocidades”. As evidências do que aconteceu “ultrapassam o nível do abuso dos direitos humanos e entram numa esfera de criminalização do próprio Estado“, diz Adriano Nuvunga ao Observador.

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Horas antes, o líder do CDD tinha mesmo acusado as forças de segurança de “instar à violência”, de impor um “estado de terror”, na CNN Portugal. “Vimos carros blindados que nunca tinham sido vistos antes nas praças, polícias a entrar nos bairros e a atirar para matar com balas reais de armas AKM, numa caça ao homem”. Não se “trata de nenhum golpe de Estado, as pessoas estão nas avenidas a reclamar um país melhor, não controlado pelos gangues do crime organizado e da corrupção que empurraram milhares de moçambicanos para a pobreza”, insiste.

Nem o povo tomou o poder, nem houve banho de sangue

Na cartografia do protesto, o destino era o centro do poder. Os manifestantes aproximaram-se, estiveram lá perto, mas as forças de segurança não os deixaram passar.

Moçambique. “Polícia pôs a carne toda no assador”

“A polícia organizou operações de controlo à entrada das principais artérias da cidade, alguns jovens conseguiram entrar com cartazes, cantaram, gritaram mas nada de especial.  Foram reprimidos com gás lacrimogéneo. A UIR e a Casa Militar colocaram toda a carne no assador e não permitiram que se aproximassem do centro da cidade, com o medo de que pudessem chegar ao palácio da presidência”, conta João Feijó.

Não chegaram. Mas foram mais longe do que qualquer outros protesto, diz ao Observador Adriano Nuvungo. “Não há memória de alguma vez uma manifestação deste tipo ter chegado bem perto do poder. Os manifestantes, os jovens, foram barrados na avenida Eduardo Mondlane, naquela esquina junto ao Ministério da Saúde” sublinha.

Uma residente nessa zona conta ao Observador que “em geral o governo barra os manifestantes nos primeiros dez metros; desta vez não conseguiram; não eram muitos, mas conseguiram furar”. O palácio da Ponta Vermelha fica perto da avenida 24 de julho, paralela à Eduardo Mondlane e no final da Julius Nyerere, área onde estão muitos ministérios, e a presidência da República fica nesta última avenida. Ou seja, “estiveram a menos de dois quilómetros da presidência e a menos de 1,5 quilómetros do palácio presidencial”.

Estiveram “bem perto do centro do poder, a um quilómetro de chegar ao coração do poder e foi preciso mobilizar uma força militar poderosa para os impedir”, acrescenta Adriano Nuvunga.

VM7, no seu vídeo em direto a meio da tarde, disse que o povo já tinha tomado o poder. Não aconteceu. Mas também não houve o banho de sangue que muitos temiam. “Ficou a meio”, calcula Nuvunga. “Não foi nos termos em que o Mondlane disse e não houve banho de sangue” porque os soldados não quiseram.

“Sobretudo os militares e as forças da UIR apareceram em muitos momentos perto da população, com os blindados, até com os manifestantes pendurados, outros levantaram o braço de dentro do tanque em sinal de apoio, estiveram mais perto do que os polícias”, afirma.

A resposta do governo foi extremamente violenta na Eduardo Mondlane: viam-se polícias à paisana em carros à paisana que entravam a grande velocidade e disparavam para a população.
João Feijó

Os polícias são “mais reservados, são os que menos se misturam, apesar de ter aparecido uma imagem com um polícia a carregar um jovem ferido”. Há mensagens nas redes sociais que dão conta de os polícias darem água aos manifestantes mas também há de tirarem os garrafões de água que os moradores da “cidade de cimento” colocaram nos passeios para os jovens se refrescarem e limparem do gás lacrimogéneo.

“Os mais brutais são os militares e os da UIR, mas esses foram os mais próximos da população”, e isso terá evitado maior violência. “Creio que houve de uma e de outra coisa mas isto foi sem precedentes para a história do nosso país”, conclui Adriano Nivunga.

A forma como o governo agiu esta quinta-feira prova que a ideia de Mondlane, de uma revolução sem armas, não é realista, avisa João Feijó. “A resposta do governo foi extremamente violenta na Eduardo Mondlane: viam-se polícias à paisana em carros à paisana que entravam a grande velocidade e disparavam para a população”, garante o investigador.

A menos que seja algo “tipo Gandhi, uma revolução à custa de centenas e milhares de civis que leve a um desgaste do regime, da imagem internacional” e com os militares a não se envolverem. Mas “a resposta do núcleo duro da Frelimo será sempre violenta, está no ADN do partido, sempre respondeu assim à ameaça de perder o poder”, lembra.

Isto apesar de “inúmeros setores da polícia e dos militares estarem do lado do povo” salienta Feijó recordando que, durante a votação, os militares tiravam o seu distintivo ou o seu chapéu que colocavam ao lado do boletim de voto enquanto escolhiam Mondlane, faziam foto e publicavam nas redes”.

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E há outro aspeto que Venâncio Mondlane tem explorado nas suas “lives”, a falta de armas em Cabo Delgado para lutar contra os terroristas, e a sua existência agora em Maputo. “Os militares de Cabo Delgado ficaram furiosos e setores do exército ficaram muito incomodadas por verem helicópteros a atirar gás lacrimogéneo para dentro dos quintais e casas das pessoas, quando eles não têm meios aéreos”, explica Feijó.

O dia acabou com o protesto reprimido pelas forças de segurança. Mas não é o fim, assegura fonte ligada à campanha de Mondlane. É verdade que VM7 já tinha dito que este era a terceira fase de quatro. Falta uma. Esta sexta-feira, 8 de novembro, é um novo dia que Maputo não sabe como vai amanhecer.

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