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O realizador Marcelo Díaz lembra uma Maria Luiza simpática, mas algo reservada em relação ao filme: “Interessante essa ideia do filme, Marcelo, mas quem é que vai fazer o meu papel?”
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O realizador Marcelo Díaz lembra uma Maria Luiza simpática, mas algo reservada em relação ao filme: “Interessante essa ideia do filme, Marcelo, mas quem é que vai fazer o meu papel?”

O realizador Marcelo Díaz lembra uma Maria Luiza simpática, mas algo reservada em relação ao filme: “Interessante essa ideia do filme, Marcelo, mas quem é que vai fazer o meu papel?”

"Maria Luiza": a militar transexual brasileira (e o filme) que se alistou na luta contra a discriminação

O filme de Marcelo Díaz é um relato na primeira pessoa de Maria Luiza e pode ser visto este fim de semana online em Portugal. O realizador revela os detalhes, os dilemas e as conquistas que filmou.

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A história de Maria Luiza é uma “história universal”. Quem o diz é Marcelo Díaz, realizador do documentário “Maria Luiza”,  que estreou em 2019 no “É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários”, no Brasil, e que tem granjeado louvores em várias mostras nacionais e internacionais.

Não precisamos de ir longe para perceber que a afirmação do realizador de 45 anos é plena de significado: ainda em dezembro do ano passado, Daniel Prates, o primeiro menor a fazer a mudança de género em Portugal, queixou-se de discriminação por ter sido impedido de entrar no Exército. “Ai é?”, mostra-se surpreendido Marcelo, com quem o Observador falou por videochamada: “Isso traz ainda mais frescura à nossa estreia em Portugal”.

Esta estreia está marcada para as 16h de dia 6 de fevereiro, sábado, nas redes sociais do CAAA Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, de Guimarães, ficando disponível até às 16h do dia seguinte, e está integrada no ciclo expositivo “Corpos Não-Normativos” que apresenta o trabalho Princesinha do Cerrado, da artista travesti Hilda de Paulo, em diálogo com Entre a Tensão e o Delírio, de Tales Frey. Nesta exposição, a dupla residente entre o Brasil e Portugal questiona a padronização dos corpos, através de códigos normativos socialmente implícitos, e o modo como as sociedades lidam com os corpos dissidentes, em particular com a transexualidade.

[o trailer do documentário “Maria Luiza”:]

E aqui voltamos à universalidade da história de Maria Luiza, a primeira mulher a assumir a transexualidade no seio das Forças Armadas brasileiras: “Contar a minha própria história foi um desafio para mim, mas também foi uma alegria muito grande”, desabafa, do outro lado do ecrã, com a sua camisa branca de grandes padrões florais violeta e uns brincos em pétala a pender das orelhas.

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É ela a protagonista da primeira longa-metragem de Marcelo Díaz, que conheceu Maria Luiza há dez anos, no apartamento modesto onde a ex-cabo de 60 anos mora, em Brasília. Sobre esse dia, em que falaram durante mais de cinco horas, Marcelo lembra uma Maria Luiza simpática, mas algo reservada em relação ao filme: “Interessante essa ideia do filme, Marcelo, mas quem é que vai fazer o meu papel?”.

Durante a rodagem do documentário "Maria Luiza"

Trans, católica e militar

Maria Luiza lá ultrapassou a timidez inicial e a teima de que “não servia para essa coisa de cinema”, acabando por construir, de lá para cá, uma relação de confiança com Marcelo: “Ela abriu-se de uma forma muito intensa, eu fiquei em choque. Isto tinha que virar um filme!”.

E virou. Durante 1h20 é-nos apresentada a história de uma menina que nasceu no corpo de um menino, José Carlos da Silva, e que em todos os Natais ansiava por receber uma boneca como prenda. À falta delas, agarrava-se à paixão pelos aviões – talvez por ter nascido no dia de Santos Dumont, patrono da aviação brasileira – inventando aeronaves a partir de latas velhas, ou escapulia-se para junto dos milheirais para fazer tranças nas espigas de milho, nas suas bonecas imaginárias.

"A Maria Luiza teve que superar mais questões para se afirmar dentro das Forças Armadas. Tudo isto é um assunto que me interessa muito discutir. Estamos a falar de uma mulher trans, militar, católica, mas poderíamos estar a falar de outras pessoas, de outras populações", diz o realizador Marcelo Díaz.

“Nós que somos trans temos a nossa identidade escrita na mente e eu sempre tive essa consciência feminina”, confidencia com uma voz tranquila, condição que Gabriel Graça, professor e psiquiatra da Universidade de Brasília, também transexual, descreve no documentário como “pré-verbal”: “O desenvolvimento da identidade de género não é apenas uma construção cultural, tem uma componente biológica.”

“O Gabriel é uma pessoa muito católica, tal como a Maria Luiza, e muito próximo dela. Mas ao contrário da Maria Luiza, ele foi bem acolhido pelo grupo com quem trabalhava”, atira desta feita Marcelo, explicando como lhe interessou explorar o contraponto entre a “Academia de maior compreensão” e a FAB, que considerou Maria Luiza inapta e incapaz para a vida militar: “O facto de ser trans não a coloca numa situação de menor qualificação, eu diria até pelo contrário. A Maria Luiza teve que superar mais questões para se afirmar dentro das Forças Armadas. Tudo isto é um assunto que me interessa muito discutir. Estamos a falar de uma mulher trans, militar, católica, mas poderíamos estar a falar de outras pessoas, de outras populações.”

“As pressões culminaram na reforma antecipada. Foi um transtorno muito grande para mim”

Efetivamente, ao longo dos 22 anos que Maria Luiza serviu a Força Aérea Brasileira, foi sempre distinguida com medalhas e menções honrosas que ainda exibe com orgulho nas paredes de sua casa. Na sua ficha não constava nenhuma punição, “era uma militar exemplar, fazia tudo correto e certinho”, referem no documentário alguns colegas de carreira da também conhecida pela alcunha de “Trovão”, ganha por ter uma voz grossa.

"Acabei por permanecer no Rio de Janeiro por 13 dias” conta Maria Luiza visivelmente transtornada no documentário, revelando que sofreu muitas ameaças “de prisão e até pior do que isso”

Contudo, Maria Luiza não queria ser “o homem que não era” e em 1998, já com 40 anos, ganhou confiança para comunicar aos seus superiores a sua identidade de género: “Foram vários motivos que me levaram a firmar a minha decisão, um dos quais foi o de eu não querer fazer uma transição se não fosse para a fazer completamente, incluindo a questão cirúrgica e hormonal. Eu me entendia como uma mulher e foi mais ou menos nessa altura que o Conselho Federal de Medicina no Brasil saiu com a resolução de dar o direito às pessoas trans para fazer a cirurgia de resenho sexual. Confesso que foi uma decisão muito centrada e segura da minha parte, com muita propriedade.”

Maria Luiza foi casada durante seis anos e tem uma filha desse relacionamento. “A questão familiar e pessoal não teve interferência em todo o processo de transformação. Conversei com todas as pessoas próximas e foi tranquilo nesse sentido. O que não foi tranquilo foi a decisão de não só me retirarem a farda masculina como a e de não me permitirem que vestisse a farda feminina”

A esperança de Maria Luiza era a de vir a vestir a farda feminina do exército, “aquela que corresponde ao meu corpo, ao meu género, ao meu sexo”, e de que o processo fosse relativamente rápido. As primeiras avaliações médicas, no Núcleo do Hospital da Força Aérea de Brasília, mostraram-se otimistas, com relatórios que atestavam a transexualidade da cabo, reforçando a sua total aptidão para exercer as atividades militares. “Mas depois o que imperou foi uma questão de preconceito, de discriminação”, acusa Maria Luiza, que foi levada para a Junta Superior de Saúde do Hospital Central de Aeronáutica, no Rio de Janeiro, onde lhe disseram que ia permanecer apenas dois ou três dias para uma avaliação muito rápida: “Na verdade isso não aconteceu. Acabei por permanecer no Rio de Janeiro por 13 dias” conta visivelmente transtornada no documentário, revelando que sofreu muitas ameaças “de prisão e até pior do que isso”: “Foi horrível. As pressões culminaram na reforma antecipada. Foi um transtorno muito grande para mim”.

A 23 de maio de 2020, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a aposentadoria foi “totalmente discriminatória” e que Maria Luiza tinha o direito de progressão na carreira, como se tivesse exercido as suas atividades no exército até à idade limite, e que deveria receber na íntegra a sua reforma.

20 anos nos tribunais – e uma luz ao fundo do túnel

Declarada como incapaz para o serviço militar, mas apta para a vida civil, Maria Luiza sentiu-se injustamente empurrada para fora do exército, com apenas meia pensão. Foi então que iniciou uma batalha judicial de mais de 20 anos: “Tinha a pretensão de que a decisão judicial seria rápida, mas infelizmente não foi. Cada vez que eu tinha uma vitória, entrava um recurso na justiça e isso foi fazendo com que o processo se estendesse por largos anos.”

Até que chegou o dia 23 de maio de 2020, data que marca um revés nesta batalha. Nesse dia, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a aposentadoria foi “totalmente discriminatória” e que Maria Luiza tinha o direito de progressão na carreira, como se tivesse exercido as suas atividades no exército até à idade limite, e que deveria receber na íntegra a sua reforma. Para a decisão, assinada pelo ministro Herman Benjamim, contribuiu não só o trabalho do advogado Max Telesca, que é um dos testemunhos do documentário, como o próprio documentário, “que vem citado na decisão do Supremo”, refere Marcelo Díaz, mostrando-se empenhado em continuar a luta anti discriminatória fora do ecrã: “O que mais queremos é fazer um cinema que busca a transformação”.

Agarrado a essa convicção, lançou a iniciativa #SejaVocê, integrado no site oficial do filme, e que visa a inclusão das pessoas trans em todos os campos da sociedade: “Este é um documentário com um grande impacto visual e, como tal, estamos a usar estratégias de difusão da obra para chegar às pessoas por diferentes caminhos. Não só às pessoas mais ligadas aos movimentos LGBT, mas à sociedade mais ampla também.”

“Ainda há muito a fazer, mas acredito sinceramente que estas são histórias muito importantes para todos e todas” defende Marcelo

Segundo o último Relatório Anual de Mortes Violentas de LGBT no Brasil, desenvolvido pelo Grupo Gay da Bahia e apresentado em abril do ano passado, 329 pessoas, entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, tiveram uma morte violenta no Brasil em 2019 por conta da orientação sexual ou identidade de género. No total, contabilizaram-se 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%). Em Portugal, o Observatório da Discriminação contra Pessoas LGBTI+ recebeu um total de 171 denúncias durante o ano de 2019 relativas a situações de preconceito, discriminação e violência em função da orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais, reais ou presumidas, das vítimas.

Debates e apresentações online, parcerias com a Rede Nacional de Moderadores de Segurança Pública LGBT – “um grupo bem grande, com mais de 30 mil membros, que abarca principalmente pessoas LGBT tanto da Polícia, como das Forças Armadas e dos Bombeiros” – e ações de sensibilização em igrejas de diferentes religiões e empresas, “para promover oportunidades de emprego para a população transexual”, estão na agenda estratégica delineadas por Marcelo Díaz e Maria Luiza. “Ainda há muito a fazer, mas acredito sinceramente que estas são histórias muito importantes para todos e todas” defende Marcelo. E Maria Luiza, apesar de ainda considerar a sociedade “transfóbica e machista”, não deita a toalha ao chão: “Estamos a mostrar que devemos ser respeitados e que é possível ser feliz como somos. Hoje sou aquilo que realmente sempre fui: uma mulher completa”.

Desde que Maria Luiza assumiu a sua transexualidade, outros casos surgiram nas forças armadas brasileiras. Entre eles destaca-se o exemplo da Major Renata Gracin, a primeira oficial transexual a ganhar o direito de permanecer no Exército sem precisar de recorrer à justiça.

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