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A novidade sobre a nova vacina que chegou este mês deixou Maria Manuel Mota “super feliz”: diretora do Instituto de Medicina Molecular (IMM) há sete anos, dedica-se há 25 ao estudo da malária. É graças a ela que se sabe como o parasita desta doença se instala no fígado para se reproduzir e é também graças a ela que se sabe que o parasita deteta o estado de saúde do hospedeiro para saber quão agressivo deve ser. Mas como tudo na vida, a infecciologista, racional por natureza, está cautelosa: a vacina com 70% de eficácia para a malária é uma boa notícia, mas o problema não fica resolvido.
Foi essa racionalidade que a moveu ao longo da pandemia e que lhe permitiu evitar pânicos. Era isso que queria transmitir quando, numa entrevista no ano passado, descreveu o SARS-CoV-2 como “relativamente bonzinho”. Admite que agora escolheria outras palavras: os vírus não são bons nem maus, mas o medo que dominava os portugueses naquela época também não era saudável, considerava ela, daí a frase. Mas não tem pudor em dar um passo atrás: os erros não são para relativizar só porque se tem uma desculpa, defende.
Em entrevista ao Observador por ocasião da conferência digital “Saúde: Construir o Futuro” do Conselho da Diáspora Portuguesa, Maria Manuel Mota faz um balanço ao modo como a Covid-19 mudou a investigação (e como vai continuar a mudar no futuro), reflete sobre o papel da mulher na ciência e, feminista como é, defende o acesso igualitário à educação como uma arma para destruir os estereótipos — os que existem na cabeça dos homens, mas na cabeça das mulheres também.
Já está farta de falar sobre Covid-19?
Trabalho há 25 anos na malária e não estou farta. Como hei de dizer? Ainda prefiro falar sobre malária do que sobre a Covid-19. As pessoas que não me levem a mal: a verdade é que a malária, ao longo destes milhares de anos que infeta o ser humano, obviamente já infetou muito mais gente que a Covid-19. Portanto, ainda é um assunto muito pertinente. Claro que a Covid-9 tomou conta de um instituto de investigação como o IMM, mas mesmo assim costumo dizer às pessoas: “Atenção, não se esqueçam do vosso amor antes da Covid-19”. Mesmo a estes imunologistas, virologistas que se dedicaram muito à Covid-19 — hoje em dia há sites para tudo, estou em chats e em grupos de WhatsApp com investigadores, todos os dias há um artigo novo. Sou muito mais observadora porque não é a minha área, mas interesso-me e acabo também por me envolver, mas aos que estão muito mais envolvidos estou sempre a lembrar-lhes: “Não se esqueçam que existe vida para além da Covid-19, vocês tinham um amor antes da Covid-19 e convém continuarem a pensar nele”.
O conhecimento não pode sofrer noutras áreas porque surgiu a Covid-19. Vai sempre sofrer porque só temos 100% da nossa energia, seja ela muita ou pouca, e se dedicarmos parte dessa energia numa área, a outra acaba por sofrer. Mas é muito importante os cientistas diversificarem o conhecimento e cada cientista manter o seu interesse. Obviamente que alguns vão saltar para a Covid-19, para o SARS-CoV-2, mas é muito importante voltarem. Ainda ontem uma das minhas alunas apresentou o trabalho dela — ela está a terminar o doutoramento — e para mim foi um orgulho ouvi-la. Fez o meu dia, em vez de andar em reuniões de testagem. Sem dúvida que estamos todos um bocadinho fartos.
Em que medida é que Covid-19 prejudicou a investigação noutras áreas?
Tirou-nos espaço mental. Houve dois meses de paragem e os alunos de doutoramento ficaram muito preocupados com isso — dois meses faz muita diferença, porque não são só dois meses. Pessoas que trabalham com modelos animais, esses modelos tiveram de ser descontinuados, para os animais não serem sacrificados para nada. Quando se recomeça em maio e junho, demora todo o ciclo de vida de um animal, que tem 21 dias de gestação, tem de crescer até à idade adulta… Foram quatro ou cinco meses ali parados.
Depois, a ciência desenvolve-se ao conversarmos uns com os outros. As ideias brotam assim. Nós temos um espaço maravilhoso, onde creio que grande parte das ideias desenvolvidas no IMM surgem, que é a cafetaria. As pessoas chegam lá para comer e têm um espaço interior e um terraço bastante razoável onde se encontram — pessoas que nem esperamos encontrar, porque nos cruzamos com gente de outras equipas. Às vezes é nessas conversas que a pessoa pensa: “Por acaso, estás a dar-me uma ideia de como fazer as coisas”. Isso desapareceu e desapareceu até hoje. Agora temos apenas uma cafetaria minúscula que vende take away e com regras muito claras sobre onde é que se pode comer. Acabaram as conversas.
Mas a Covid-19 monopolizou a investigação no IMM?
Não. Ou seja, monopolizou em março de 2020, quando o instituto deixou mesmo de fazer outras coisas. A partir daí, teve cerca de 120 a 140 voluntários — chamo-lhes voluntários, mas eles estavam obviamente a receber as suas bolsas e os salários de acordo com o trabalho que faziam antes, mas como o país estava confinado, só tinham autorização a entrar dentro do instituto para se dedicar às task forces desenvolvidas para a Covid-19. A grande massa destas pessoas dedica-se aos testes por PCR, mas também tivemos a serologia, tivemos um biobanco de amostras congeladas de doentes que estavam a passar pelo Hospital de Santa Maria… Isso aconteceu entre 13 de março e 4 de maio.
A 6 de maio, o instituto começou a abrir e até setembro só tivemos autorização para testar até 50% da população no instituto ao mesmo tempo. A partir de setembro profissionalizámos tudo o que é a testagem, mantemos uma capacidade de testagem de 3.000 testes PCR diários, mas é feito por pessoas contratadas para fazerem isso.
Falemos da malária, que é a sua área e teve desenvolvimentos há pouco: uma vacina com uma eficácia apreciável. Como é que recebeu esta notícia?
Fiquei super feliz, mas sou uma entusiasta e uma positiva. Claro que não temos o problema resolvido de todo. Em 2015, tivemos uma vacina para a malária que foi a primeira licenciada para ser usada em pessoas. Só que tem uma eficácia muito, muito pequena: cerca de 33%, está ali num limite em que muitos cientistas são contra que fosse licenciada, porque as pessoas que a oferecem aos filhos podem relaxar a achar que a vacina os deixa protegidos, quando só um em cada três é que vai estar protegido.
Agora, a minha filha, que só vive comigo metade do tempo e na semana em que isso aconteceu estava com o pai, quando foi lá para casa estávamos a conversar porque ela queria muito comprar uma peça de roupa que já me andava a pedir há um mês. Disse-lhe: “Olha, amanhã de manhã podemos ir à loja comprar isso”. Ela respondeu: “Não, mãe, acho que já não quero”. Isso não é nada dela! É muito mais de responder: “Já não queria só isso”. Estranhei e perguntei: “Mas já não queres esta e queres outra?”. Ela disse: “Não, acho que não preciso”. Fiquei espantada, ela não podia ter ficado adulta de um momento para outro, tem 11 anos. Depois disse-me: “Não, mãe, é que fiquei mesmo muito preocupada. Ouvi na rádio que vem aí uma vacina para a malária e às tantas tu vais ficar desempregada, por isso temos de começar a poupar”.
A minha reação não é de achar que, como vem aí uma vacina para a malária, o problema vai ficar resolvido: o meu entusiasmo é encurtado pelo curto que é o ensaio clínico, que só tem 450 crianças, é um número muito pequeno. Mas, por outro lado, há os 77% de proteção num dos grupos. Nunca tínhamos tido nada igual.
As vacinas mudaram o mundo no século XX. Deixámos de ter a noção de que os nossos bisavós tinham mais filhos para, no fim da vida, terem menos. Era muito natural um pai e uma mãe perderem um filho ou vários filhos. Isso deixou de existir e grande parte disso deveu-se às vacinas e aos antibióticos, que mudaram completamente a nossa forma de estar na vida. Hoje em dia, um pai ou mãe que perde um filho é uma dor irreparável. Não que não o fosse na altura, mas a vida tinha um valor diferente porque era mais normal as pessoas perderem filhos. As vacinas mudaram a nossa vida, estão a mudar as nossas vidas e vão continuar a mudar as nossas vidas. E acho que a Covid-19 veio mesmo mudar a ciência.
Que mudanças serão essas?
O Adrian Hill, um investigador que está há décadas a tentar desenvolver uma vacina para a malária, deu uma entrevista sobre uma vacina da malária que está em fase de autorização para avançar para os ensaios clínicos de fase 3. Onde diz: “Atenção, agora queremos os mesmos processos que foram rápidos a dar autorizações para a Covid-19 na malária”. A Covid-19 foi considerada uma situação de emergência, mas a malária devia ser algo também de emergência. A malária ainda mata quase meio milhão — e provavelmente este ano vai ultrapassar o meio milhão — de crianças abaixo dos cinco anos. Na Covid-19 já ultrapassámos as três milhões de mortes, mas grande parte foram pessoas que estão acima dos 80 anos. Todas as vidas são preciosas, todo o ano a mais que se vive é precioso, mas todos nós compreendemos que é diferente morrer com quatro anos a morrer com 85.
Temos de pensar que a malária também é uma emergência que temos de resolver e não é a única: o HIV é outra. Portanto, há muitos problemas para que temos de arranjar soluções que cheguem às pessoas. A base desta vacina está a ser estudada há décadas e foi a base da vacina de Oxford, que agora já foi administrada a milhões de pessoas. A segurança está mais do que assegurada e por isso esperamos que os processos possam ser intensificados e agilizados para que [a vacina da malária] possa ser testada e fiquemos mais felizes quando vierem os resultados de fase 3, com milhares de crianças envolvidos.
Mas ainda antes desta fase de testes, porque é que demorou tanto a chegarmos a uma vacina para malária e tão pouco para se desenvolver uma vacina contra a Covid-19?
A Covid-19 é um vírus, é um organismo muito simples. As doenças infecciosas são causadas por três tipos de organismos — até pode haver um quarto, que são os priões, mas nem vamos a esse. Os três organismos, em senso lato, são os vírus, as bactérias e os parasitas. Para os vírus não tem sido fácil arranjar antivirais — por exemplo, o HIV é controlado com um antiviral, mas eles são mais difíceis de encontrar. O que é certo é que não foi tão fácil encontrar um antiviral para o SARS-CoV-2 como foi encontrar vacinas. Mas os vírus têm muito poucos genes, a máquina deles é a mais simples. As bactérias já têm uma célula, são algo extremamente complexo, mas mesmo assim, de todas as células, são as mais simples. É a diferença entre um loft e um apartamento com oito assoalhadas e com piscina aquecida, que são os parasitas.
Os parasitas têm um grau de complexidade muito parecido à de uma célula do nosso corpo. Aliás, há parasitas que são multicelulares. O da malária só tem uma célula, mas tem muitas formas distintas. Desde que o parasita da malária foi descoberto, na passagem do século XIX para o século XX, demorou-se até 1945 para se perceber que tinha uma outra forma de se reproduzir no fígado antes de atingir o sangue e causar a doença. Ele tem um ciclo de vida extremamente complexo, tem dois hospedeiros distintos (o mosquito e o ser humano), no ser humano tem duas formas de reprodução distintas — uma no fígado e outra na fase sanguínea, que é quando causa a doença. No fígado, ainda hoje não temos forma de diagnosticar uma infeção: uma pessoa fica infetada durante uma a duas semanas, não há sintomas e não nos conseguimos aperceber. Quando chega ao sangue já são aos milhares e muito mais difíceis de controlar.
Além disso, para aumentar ainda mais o grau de complexidade, no mosquito ele tem uma reprodução sexuada: a gâmeta masculina fecunda a gâmeta feminina e cria diversidade. A reprodução sexuada dá diversidade porque já mistura informação genética do pai e informação genética da mãe; e o filho já não é nem o pai, nem a mãe. É um ser distinto. Isto cria uma complexidade que é complicada de combater. Dizendo isto, as críticas que mais se fazem a esta nova vacina — nem são as críticas, é onde temos de ter mais cuidado — é a que não é em nada diferente da vacina que só tem 33% de eficácia. Ainda usa a mesma proteína do parasita.
O que mudou de uma para a outra?
O que mudou foram duas características desta vacina: por um lado, o adjuvante, algo que estimula o nosso sistema imune — e este é o adjuvante que já está na vacina de Oxford contra a Covid-19. E, por outro lado, o vetor viral, que foi desenvolvido ao longo do tempo. Aliás, a Covid-19 ganhou imenso da investigação que estava a ser feita para a malária para as várias plataformas. A vacina da Covid-19 foi possível desenvolver tão rapidamente porque foi beber de conhecimento que tínhamos adquirido das últimas duas ou três décadas. Mesmo as vacinas de ARN, que são novas — a da Pfizer e da Moderna, que não apresenta a proteína, mas o ARN do vírus para a produzir —, já estão a ser investigadas há 15 ou 20 anos para chegarmos a este ponto. A ciência funciona mesmo assim: silenciosamente vai acumulando peças, conhecimento que de repente faz sentido. É como aqueles puzzles muito complicados: começamos e temos ali um canto, mas se não soubermos exatamente qual vai ser o desenho final, não fazemos a mínima ideia do que aquilo vai ser. E de repente surge uma peça que faz sentido e que nos deixa construir o puzzle todo.
Há uns tempos descreveu o coronavírus como um vírus “relativamente bonzinho”. Hoje escolheria outras palavras?
Claro que escolheria e nem devia ter dito isso daquela forma naquela altura. Estou muito à vontade e falo de uma forma muito coloquial. Um vírus não é bom nem é mau: é um vírus. Causa doenças e, portanto, é um vírus que vive às nossas custas e causa-nos danos. Sem dúvida que não o deveria ter posto dessa forma. E não foi para não ser respeitosa para as pessoas que estavam a sofrer. De todo, de todo.
A palavra que foi usada foi “relativamente bonzinho”. E “relativamente bonzinho” está num contexto numa frase que foi dita comparando com outros vírus que surgiram antes e que possivelmente surgirão depois. Não é a primeira pandemia e não será a última: na minha vida já houve outra pandemia. As pessoas lembram-se sempre da Gripe Espanhola de 1918, mas houve o HIV, que ainda existe: é uma pandemia que ainda não resolvemos. Nessa altura, esse vírus era terrível. Era uma sentença de morte. Qualquer pessoa que estivesse infetada com o HIV era uma questão de tempo para morrer até encontrarmos o cocktail antiviral. E todos os anos morrem 800 mil pessoas, apesar de termos uma solução para as manter vivas e com uma vida normal.
Quando estava a falar e disse “relativamente bonzinho”, disse-o nesse contexto. Tinha estado num programa de televisão em que havia membros do público que escreviam para lá e as pessoas estavam a dizer que estavam em pânico e não saíam de casa. Nunca mais me esqueço de uma mulher que dizia que tinha tido um bebé, era um recém-nascido, e não tinha coragem para ir à farmácia comprar leite para o bebé porque tinha medo de sair e ficar infetada. O que queria mostrar às pessoas é que se elas usassem as máscaras, respeitassem o distanciamento físico e lavassem as mãos, o risco era realmente pequeno. Além de que já tínhamos noção do que estava a acontecer, matava mais pessoas de uma faixa etária muito mais avançada do que a desta mulher.
Se pudesse escolher, agora voltava atrás e não tinha dito aquilo desta forma, tinha explicado e não tinha usado a palavra “bonzinho”, nem a palavra “terrível” para o HIV. Não é essa a definição. Só não pensei que chegasse ao título de uma revista, mas era isto que queria dizer às pessoas: não havia motivo para pânico, havia necessidade de uma certa racionalidade, mas não se podia facilitar. E não se pode facilitar agora.
Com que estado de espírito enfrentou a pandemia de Covid-19 ao início: mais entusiasmo ou mais enfado?
No início foi com um sentido de dever. Costumo dizer que o que nós fizemos aqui não foi muito diferente do que a minha vizinha fez no meu prédio. Moro num prédio no centro de Lisboa que tem 18 apartamentos e estive duas semanas fechada em casa a resolver problemas enquanto havia pessoas no laboratório. Ao fim de 15 dias saí para vir ao instituto e, quando entro no elevador, vejo um papel da minha vizinha do sétimo andar a dizer: “Eu provavelmente sou das pessoas mais novas no prédio, sei que as pessoas mais velhas não devem sair para ir às compras, por isso não se preocupem. Deixem uma lista de compras à porta de casa, eu recolho, compro e deixo as compras à porta de casa. Depois logo tratamos do pagamento”. E pensei: “Uau, estive aqui 15 dias e não me lembrei de oferecer ajuda a qualquer vizinho!”. Pensei noutro problema. Portanto, a minha vizinha Patrícia sem dúvida teve um sentido de dever ali. E eu, com as capacidades que tinha, outro sentido de dever com todos os cientistas do IMM que resolveram ajudar.
Agora, como é que que encarei isto? Não encarei com pânico, também não sou pessoa para encarar as coisas com pânico. Pensei que íamos arranjar solução. Claro que, sabendo que era uma doença infecciosa, fui super a favor do confinamento até sabermos qual era exatamente o perigo e ter a noção de que não podemos ter os hospitais sobrelotados. Reagi com cautela, com sentido de dever para ajudar com o que poderia resolver. Obviamente que aquele problema naquele momento era maior do que qualquer outro.
Mas encarei isto como encaro normalmente a minha vida. As pessoas perguntam-me muito, de uma forma completamente chauvinista, por ser mulher e ter duas filhas: “Como é que encara ter duas filhas, a escola e ao mesmo tempo a casa?”. Penso sempre: “Quando há um fogo, apago o fogo. Encaro isto com normalidade”. Quando levo as minhas filhas à escola — agora já não preciso de as levar porque já são grandes —, no momento em que as entrego confio completamente no sistema e não volto a pensar nas minhas filhas o dia todo. Estou dedicada ao meu trabalho, que é para isso que me pagam. Ao fim do dia, quando era preciso ir buscá-las à escola, estamos juntas outra vez. Aqui foi a mesma coisa, também não fiquei a pensar: “As minhas experiências vão todas ao ar”. Não.
Após todo o esforço que o IMM aplicou no combate à pandemia, como enfrenta os erros que foram sendo cometidos pelo caminho? A questão do Natal, por exemplo, há forma de os relativizar?
Nós não podemos relativizar esses erros porque esses erros levaram à morte de 8.000 pessoas num mês. Iria sempre morrer alguém, não é uma responsabilidade por 8.000 mortos, mas no máximo deveríamos ter atingido 1.000 mortos num mês. Tivemos 7.000 mortes a mais que não podem ser desvalorizadas. Mais do que isso, esses erros levaram a um impacto enorme sobre toda a estrutura do Serviço Nacional de Saúde. As coisas colapsaram, num mês desapareceram cinco serviços no Hospital de Santa Maria para aumentar o espaço para a Covid-19. Outras doenças ficaram por ser vistas e os oncologistas já começam a dar conta de casos de muitos cancros mais avançados que começaram a surgir. Isto tudo tem as suas consequências. Muitas vezes digo que o facto de nós querermos ter feito um jantar e um almoço de Natal está na base disto. Achámos que não tinha importância, mas teve importância — todas as nossas ações têm consequências.
Tenho uma filha de 18 anos que entrou para a faculdade em plena pandemia e ela diz-me: “Mãe, preciso de sair com os amigos”. E digo-lhe mesmo: “Claro que precisas e percebo, não quero ser fria, mas temos de ter noção que todas as nossas ações têm consequências”. Neste momento já temos testes muito mais acessíveis, são testes menos sensíveis mas é melhor do que nada e é muito importante que as pessoas, se vão estar num grupo, estarem com distanciamento, porem a máscara depois de comer e todos antes fazerem o teste. Se todos antes fizerem o teste, a probabilidade diminui cada vez mais. O teste pode não apanhar todos, mas se nós estivermos a comer e, em vez de estarmos sentados à mesa, estarmos nas nossas cadeiras com o prato na mão, colocarmos a máscara no final e estarmos a conversar, vai diminuir imenso a probabilidade de nos infetarmos. É nesse caminho que vamos ter de continuar, ter muito cuidado porque ainda não atingimos a imunidade de grupo. Vejo de uma forma racional, não entro em pânico, mas não desculpo os erros que se fizeram. Seria uma falta de respeito pelas vidas que sofreram nos cuidados intensivos, pelas vidas que se perderam. Temos de aprender com os nossos erros e não podemos voltar a ter o mesmo tipo de ações que tivemos antes.
É muito importante termos a noção do que fizemos errado, do que fizemos certo e mudarmos para o caminho ser mais certo da próxima vez.
Como é que avalia o modelo em que tem ocorrido o aconselhamento científico ao Governo, com as reuniões no Infarmed?
Não tenho a certeza, não sou uma cientista de saúde pública, mas é importante o Governo ter um conjunto de especialistas. São pessoas que sabem de saúde pública, de modelos matemáticos… Os cientistas em si detestam ser futurologistas, ninguém pode saber se vai correr bem ou vai correr mal, mas podem dar factos. Há uma coisa que posso dizer, porque sou infecciologista, um facto muito simples: quanto mais contactos houver, mais transmissão vai existir. Isso é uma verdade que tem décadas. É muito importante os políticos terem esses factos, ouvirem pessoas.
Mas a decisão é uma decisão política, não é apenas uma decisão científica. É aqui que as pessoas erram e dizem: “Não, mas os cientistas disseram uma coisa e os políticos deviam ter feito isso”. Mas um político vai ter de ouvir um epidemiologista, uma pessoa que explique o que o modelo matemático prevê para o futuro com base nos factos de agora, vai ter que ter uma pessoa que sabe como estão os hospitais, psicólogos que expliquem se a população vai reagir bem ou não a estas medidas, como está a economia e como é que fazemos chegar ajuda às pessoas. Tudo isto resulta numa decisão política, que não é científica.
Os chamados especialistas apenas transmitem factos e dizem que, no alto da sua cátedra de especialidade, tomavam uma determinada decisão. Mas isso é isolado: o político é que vai ter de tomar essa decisão. São decisões que imagino que sejam muito difíceis — não gostaria de estar nessa posição.
Ajudaria se tivéssemos mais cientistas em cargos governamentais? A chanceler alemã, Angela Merkel, tem sido apontada como um bom exemplo e é química de formação, por exemplo.
Ter pessoas que entendem o método científico, o método racional, sendo mais racionais, têm a tendência para entrar menos em pânico e tentar arranjar mais soluções. Não é um otimismo desmesurado porque isso é uma tontice. É dizer que há uma solução, só a temos de arranjar de uma forma racional para os problemas que nos vão surgindo. Ter políticos que percebem esse método científico — fazemos uma observação, colocamos uma hipótese ou várias e arranjamos forma de testar essa hipótese, para perceber qual é a forma melhor de resolver o problema — era ótimo. E em todos os quadrantes da sociedade.
Olhe o discurso que a Kamala Harris apresentou a comissão científica que iria estar a ajudar a nova administração norte-americana. Ela falou da mãe dela, que era oncologista cientista e que se dedicava ao cancro da mama. E explicou exatamente e em poucas palavras, de uma forma fantástica: “A minha mãe ensinou-nos que, quando temos um problema, colocamos hipóteses de possíveis soluções e depois testamos essas diferentes hipóteses e arranjamos a solução melhor”. Ter uma vice-presidente de um país ou ter pessoas líderes que compreendem isso é meio caminho andado para termos uma governação, uma liderança mais racional.
E ter mais mulheres nesses lugares de liderança, faria diferença?
Nós precisamos é de líderes diversos. Claro que uma liderança no feminino pode ser, esteriotipadamente, diferente de uma liderança no masculino, mas o mais importante é toda essa diversidade. Nós não queremos ter apenas lideranças no masculino, assim como não queremos ter apenas lideranças no feminino. Queremos é aproveitar toda a população. Queremos ter toda uma sociedade que tem, nos seus diferentes pontos de liderança e não só, pessoas com todo o tipo de características. É daí que vem a riqueza do pensamento — há pouco falava de como falta no IMM ter estes pontos de encontro e de conversa –, de formas de pensar e de estar na vida diferentes. Cada um de nós tem toda a parte genética, tudo com o que nasceu, mas tem tudo com que depois cresceu. Tem as experiências muito diferentes que levam a ideias e formas de pensar diferentes. É desta diversidade que devemos construir lideranças.
Sim, precisamos como de pão para a boca de lideranças no feminino. Mas precisamos porque elas estão muito pouco representadas, não é para substituir as lideranças masculinas pelas femininas — precisamos é de ter de tudo. Uma liderança no feminino seria diferente, falou-se muito na pandemia disso: pessoas como Obama diziam que se o mundo fosse governado por mulheres talvez estivesse muito melhor. Acho que [é melhor] um mundo governado por pessoas com um lado racional. E com diversidade.
Não é uma questão de género, mas sim de competência.
Exatamente. E de mérito e de capacidade para estar naquela posição. Uma pessoa líder para um determinado posto, noutro tipo de posto pode não ser o líder perfeito. Temos é de encontrar as vocações das diversas pessoas e aproveitar toda a gente que está no mundo. Mas para isso temos de dar educação a toda gente e toda a gente tem de encontrar o seu caminho.
O acesso à educação é uma das suas batalhas enquanto feminista. É a solução?
O acesso à educação é a única ferramenta realmente forte para termos uma sociedade muito mais livre. Uma sociedade informada, que tenha acesso a informação. Hoje, parece-nos que toda a gente tem acesso a informação, não é? Porque ela é fácil de obter. Mas o que uma escola, no aspeto conceptual do termo, tem de dar a todos os indivíduos é as ferramentas para que as pessoas desenvolvam o máximo das suas capacidades — nem todos vão ter a mesma, nem o mesmo tipo. Só uma sociedade dessas vai ser igualitária e mais feliz.
Venceu o Prémio Pessoa em 2013, este ano foi para a cientista Elvira Fortunato. O ministro Manuel Heitor comentou a atribuição do prémio dizendo que ela era “um exemplo para todas as jovens sobre o papel das mulheres na ciência”. Que papel é esse e em que medida é diferente do papel dos homens?
Acho é que as raparigas, antes de serem mulheres, devem acreditar que quando forem mulheres não vão ser mulheres apenas. São seres humanos e, tendo dois cromossomas X, têm a mesma capacidade que o seu colega que têm um cromossoma X e um cromossoma Y. A sociedade transmite-nos todos os dias que essa capacidade não está lá. Não é por acaso que as mulheres, na idade da adolescência, se tornam menos competitivas. Há muitos estudos a demonstrar que isso tem muito a ver com o exemplo que temos à nossa frente. Qual é a rapariga nos Estados Unidos que anseia ser presidente? Qual é a rapariga que anseia ser primeira-ministra de Portugal? Provavelmente muito poucas porque basta ver os exemplos: nós só tivemos uma, os Estados Unidos nunca tiveram uma presidente e só agora têm uma vice-presidente. O exemplo da Elvira Fortunato é ser uma mulher nas engenharias e nas ciências, que era coisa dos homens. Ela faz ciência tão importante e tão impactante para o mundo inteiro.
Mas o impacto dela não há de ser só para as jovens, certo? É um exemplo para todos os jovens, independentemente do género.
Para todos os jovens! Mas o facto de ela ser mulher vai fazer com que outras raparigas pensem: “Eu posso ser uma engenheira de sucesso, posso ser uma cientista de sucesso”. Ao mesmo tempo, temos de ter um bocadinho de cuidado com essa imagem que passamos. Sou convidada há muitos anos, diria que há duas décadas, para falar para grupos de estudantes mulheres, cientistas jovens, alunas de doutoramento, para que queiram ansiar chegar a group leaders, a ser diretoras. Em 2013 estava num destes workshops — na África do Sul, sobre o campo da malária, cientistas de todos o mundo. De repente, estavam a dizer que eu e mais duas colegas minhas éramos vistas pelo resto da população feminina que ali estava como super-mulheres, do tipo: “Vocês conseguem fazer tudo”.
Isso é completamente errado porque nenhum destes tipos que estavam lá e são meus colegas são super-homens, de todo! Porque é que tenho que ser super-mulher? Se acharmos que temos de ser super-mulheres, aí é normal que as líderes que cheguem ao topo sejam apenas 5% ou 10%. Até é incrível que haja tantas super-mulheres para isso. Não podemos ir por aí. Temos de ser homens e mulheres normalíssimos, que seguimos a nossa vocação e que nos esforçamos muito, trabalhamos muito. Mas não temos de ser super-mulheres ou super-homens para chegarmos a estas posições: temos de ser indivíduos com um grande grau de dedicação, que gostam do que fazem e querem trabalhar neste campo. É importante dar estes modelos, mas também ter calma com a imagem que transmitimos. A Elvira Fortunato não é uma super-mulher: é uma mulher incrível como qualquer jovem deve ambicionar ser.
Tenho uma grande amiga minha, que é professora do MIT, e que uma vez, tinha eu uns 41 ou 42 anos, me perguntou: “Maria, quando foi a primeira vez que achaste que podias mudar o mundo?”. Ao início vi esta pergunta como muito arrogante e pensei: “Como é que alguém tem a capacidade de pensar que pode mudar o mundo?”. Ela disse uma coisa, ainda agora falo e me arrepio toda quando conto esta história, e já foi há nove anos: “Para mim, foi no primeiro dia que fui para a escola primária. Não tinha ido para a escola antes. No primeiro dia, o meu pai levou-me pela mão e quando chegou à porta disse-me: ‘Olha, este é o teu primeiro dia para encontrares as ferramentas que são precisas para poderes ajudar a melhorar o mundo’”. Achei lindíssimo e é isto que tem de estar na base da educação. Nunca tivemos tão presentes na nossa vida como neste último ano que o mundo está todo ligado, que todos dependemos uns dos outros, que não vale a pena egoísmos.
Mas mesmo com ambição, as raparigas encontram mais obstáculos pelo caminho. Isso também se resolve com mais educação?
Não se resolve de um momento para o outro, mas resolve-se com o fim dos estereótipos. Os estereótipos estão na nossa cabeça — e não é só na dos homens, estão na cabeça das mulheres também. Dou sempre o exemplo da Orquestra Metropolitana de Nova Iorque que, nos anos 80 ou 90, tinha praticamente só homens como músicos. Alguns dos patrocinadores acharam que devia ter mulheres. Nem era pelas boas razões, era porque as mulheres embelezavam mais a orquestra, mas o que é certo é que se depararam com um problema.
Começaram a fazer audições. Na primeira, 90% dos músicos escolhidos foram homens. Acharam que o júri devia estar enviesado, por isso fizeram uma audição com cortina fechada. E sim, diminuíram o pouco a percentagem de homens, mas continuavam a ser 70% . Começaram a questionar-se: “Será que os homens realmente são músicos mais talentosos?”. Descobriram algo muito simples: mesmo com a cortina fechada, o palco era de madeira e o músico ao caminhar para o centro ouviam-se os sapatos. Quase inadvertidamente, sabiam logo se era um homem ou uma mulher.
Portanto, há todo um lado que temos de combater. Não sei se tem a noção, mas de todos os cenários de filmes de Hollywood filmados na América, só 22% [dos figurantes] são mulheres. E nem nos apercebemos: imaginemos uma rua de Nova Iorque, achamos que ali há homens e mulheres, há tudo. Mas a verdade é que só 22% é que são mulheres. A desculpa que dão é que os homens são mais confiáveis, vão sempre no dia seguinte. Mas isto tem de desaparecer porque isto entra-nos pela cabeça dentro. No mundo real, somos 50% de mulheres e 50% de homens. Na nossa cabeça, os homens parecem ser mais.
Mas o júri do Prémio Pessoa tem três mulheres e 10 homens. Não seria de mudar isso também?
Sem dúvida! Sem dúvida! Pertenço ao júri e não sou eu quem seleciona. É trazido muitas vezes à baila que obviamente isso tem de mudar. Mas atenção que esse enviesamento também está na cabeça das mulheres. Temos mesmo de mudar estereótipos. Atenção: as mulheres foram muito mais prejudicadas pela Covid-19, e agora já há vários estudos em vários países europeus que dizem isso. Porque o facto de os filhos não estarem na escola, levou a que fossem as mulheres a tomar conta deles. Isso teve um impacto enorme — e no lado patronal, que de repente disse: “Mas quando houver um problema, elas é que ficam em casa. Prefiro um homem”. Isto é uma pescadinha de rabo na pouca: nós temos de ter a noção que todos os estereótipos têm de ser destruídos.
A mulher tem uma diferença biológica do homem: período de gestação do feto, dar à luz e o período de amamentação. A partir daí, há um pai e uma mãe. Mas 94% a 96% das crianças que nascem no mundo inteiro são de uma parceria entre homem e mulher — uma parceria oficial. Apenas 4% ou 6% são de monoparentais ou de parcerias homem-homem e mulher-mulher. Por isso não há razão nenhuma… Mas não é esse o problema base: o problema base está na nossa cabeça.