O boneco mais famoso da atriz nasceu no bairro da Graça, quando ela era criança e observava os tipos lisboetas mais genuínos. Há duas décadas, de repente, o boneco despontou num programa de Herman José e agora está de volta aos palcos através do musical “Zé Manel Taxista, Uma Comédia com Brilhantina”, no Casino Lisboa (até 14 de outubro), com textos de Maria João Cruz, Filipe Homem Fonseca, Mário Botequilha e Rui Cardoso Martins. Ponto de partida para uma entrevista sobre machismo, feminismo, racismo, travestismo. E humor, claro.
Maria Rueff nasceu há 46 anos na Beira, Moçambique, estreou-se como atriz profissional aos 19 e é uma figura muito presente no pequeno ecrã desde 1994, primeiro em programas de Ana Bola e Herman José, depois em nome próprio e na trupe “Estado de Graça”.
É tímida e fala depressa, como quem incorporou o ritmo da linguagem televisiva. Dona de uma história de vida marcada pela descolonização e o retorno a Portugal depois de Abril de 1974, assume-se conservadora, à sua maneira, e afirma que a liberdade de expressão já conheceu melhores dias.
[vídeo de promoção do musical “Zé Manel Taxista, Uma Comédia Com Brilhantina”:]
Como nasceu o Zé Manel Taxista?
Foi num “talk show” do Herman na RTP, o “Herman 98”, que era transmitido em direto a partir do Teatro São Luiz [em Lisboa]. Fomos depois também para o Rivoli [no Porto]. Eu fazia os momentos de humor, uns pré-gravados, ao lado do Herman, outros em direto, sozinha, com uma rábula cómica sobre cada convidado principal do programa. Passou por lá tanta gente: Maria João Pires, Eusébio, João Soares, Otelo Saraiva de Carvalho… O Herman propôs-me fazer um taxista, para termos um pretexto cómico para eu entrar em palco. Na altura, achei piada ser um travesti, porque em termos técnicos não é fácil uma mulher travestir-se e ser credível. É um código que não é muito usado. O contrário, sim, um ator travestido.
Por ser uma personagem cómica, essa parte do travestismo é mais fácil?
Não necessariamente. Tivemos grandes comediantes portuguesas a fazê-lo. A Irene Isidro ou a Mirita Casimiro, que foi mulher do Vasco Santana. A Mirita fazia um toureiro notável. Mas não é muito comum. Portanto, o Herman desafiou-me e agarrei a ideia de fazer um homem. Havia uma personagem que fazia em casa, a brincar, um trolha que ia a casa dos meus pais, um lisboeta, marialva, bom malandro, como diz o livro do Mário Zambujal, a “Crónica dos Bons Malandros”. Têm uns pequenos engenhos de sobrevivência, mas se for preciso dão a camisa. Desde miúda, imitava a maneira de falar desse senhor e quando o Herman me propôs fazer um taxista, imediatamente veio-me à cabeça essa figura.
Ou seja, o Zé Manel Taxista já existia de aparecer.
Existia. A minha família pedia-me inúmeras vezes para o imitar, fui fazendo laboratório ao longo dos anos, sem saber. Mas depois havia que transfigurar-me. Os óculos, para tapar as maçãs do rosto, o bigode, evidentemente, e aquele blusão que se usava muito na altura, um blusão castanho da Força Aérea. No início, mesmo, não encontrei um, porque não era muito fácil.
O blusão ainda é o mesmo dessa altura?
É sempre aquele há não sei quantos anos. E depois faltava compor o cabelo. Uma cabeleira de homem nunca resulta muito bem, aquele truque que se usa muito na revista de apanhar o cabelo e esconder o rabo-de-cavalo por baixo da boina… Mas eu não acreditava, quando me via ao espelho. Houve a feliz coincidência de estar na sala de maquilhagem do programa um convidado, o professor Herrero, que usava aquela coisa, que não sei se é só portuguesa, de ter três ou quatro “bandoletes” de cabelo puxadas de um lado da cabeça, para disfarçar a careca. Como tenho sorte de ter uma testa enorme, pedi à cabeleireira do programa para me fazer isso. E pegou.
As suas personagens tendem a ser criadas no momento? Já tem dito que a dupla Nélio e Idália, que fez com o Herman José, também apareceu de repente.
O meu trabalho é observar. Os atores são observadores por excelência e temos um repositório de tiques, de almas, de formas de pensar, de sotaques, de “gags”. Muitas vezes, estão ali em pousio e, quando é necessário, sai essa cartada. Outras vezes, temos de ir à procura a partir do nada. No caso do Nelo e Idália, foi uma coisa que eu e o Herman observávamos havia muito tempo: as bichas casadas. Espero que agora deixe de haver essa necessidade, com as mudanças que houve na lei portuguesa, para bem do homossexual e da mulher com quem ele se casa, porque, no fundo, ela é mal-amada e aquele casamento não faz bem a nenhum dos dois.
[Nelo e Idália:]
O texto do Zé Manel Taxista tem intervenção sua?
O boneco foi criado no pátio das Produções Fictícias. Todos nós, há 20 anos, éramos putativos qualquer coisa, estávamos todos em pleno crescimento. No início, o Zé Manel acabou por ser mais agarrado pelo Ricardo Araújo Pereira e pelo Miguel Góis, que escreviam para a personagem emprestando-lhe o benfiquismo ferrenho que eles têm. Nesse aspeto, o Zé Manel é um alter-ego do Ricardo e do Miguel. Depois, foi sendo escrito ao longo destas duas décadas por muita gente, uns com experiência de televisão, outros mais do teatro. A minha participação sempre foi a mesma. Custa-me receber o texto em casa, de forma muito seca e fria. Sempre gostei de estar no início, antes de a escrita acontecer, para trocarmos ideias, eles com ideias de texto, eu com ideias de tiques. E desta vez também assim foi. Acredito mais no cara a cara, no estarmos todos juntos. Carpinteirámos todos, o próprio encenador, António Pires, deu imensos “inputs” e depois os autores iam para casa, traziam textos e voltavam.
O que é que o Zé Manel tem de si?
Tem muito. Cresci na Graça e no Castelo. Aliás, devo a esses bairros todas as figuras que fui imitando e criando ao longo da carreira.
Incluindo a Rosete?
A Rosete era a minha vizinha da frente, chamada Liberdade. Devo muito a essa observação na vida, de um bairro típico de Lisboa. E mesmo a ideia de fazer esta peça, que é uma forma de agradecer ao público os 20 anos do Zé Manel, talvez o boneco mais consensual que fiz, é também uma forma de repensar a cidade, porque me considero lisboeta. Repensar esta nova cidade gentrificada, de turistas, de despejos.
O que é que torna uma personagem popular?
Não faço ideia. É por isso é que sofremos tanto antes de entrarmos em cena ou de apresentarmos um projeto. Este boneco tem 20 anos, mas não supõe o estado de nervos com que eu estava antes de estrear a peça.
Com receio de quê?
Receio de que as pessoas não aderissem, que já estivesse datado, que eu não conseguisse injetar-lhe ideias novas. Tenho um profundo respeito pelo público, a profunda humildade de saber que nada é garantido e que não sabemos o que se torna ou não um êxito, por mais que nos rodeemos dos melhores e trabalhemos com seriedade. Há sempre qualquer coisa que não está nas nossas mãos. Nunca sabemos o que se vai tornar popular. O caso do Zé Manel foi um bilhete de lotaria. Nunca achei que eu, travestida, com um ronco, a falar de forma nasalada, com um humor mais popular, pudesse transformar esta personagem no meu Tintim, sem que eu seja o Hergé.
Já tem dito que se considera uma feminista militante e, no entanto, o Zé Manel Taxista tem traços machistas. Como é que isto se conjuga?
Tive uma professora que me marcou muito e um dia perguntei-lhe de que partido era ela. Respondeu: “Eu lá sou de coisas partidas.” Achei muita graça e adotei isto. Também não sou de coisas partidas. Sou humanista, luto, através da minha arte, e isso honra-me, para eventualmente inspirar algumas mulheres. Nunca me importei se estou bonita ou feia, sirvo apenas a minha arte. Isso dá-me orgulho. Da mesma maneira, quando retrato um fascista, ou uma rainha Victoria, sou um veículo. Aqui, com o Zé Manel, também sou um veículo. À parte tudo o que está hoje em cima da mesa, dos piropos que são completamente humilhantes para a maior parte das mulheres, do assédio sexual, do facto de as mulheres ganharem menos que os homens, por serem mulheres… Sei que tudo isso existe, estou absolutamente ao lado dessa luta por igualdade, mas há aqui uma confusão. É como dizer-se que o Quim Barreiros diz asneiras. Ele não diz asneiras, ele é o retrato do Minho, da Beira Alta, que têm no seu folclore uma essência jocosa. Eu sei, porque a minha mãe era da Beira Alta. Há uma zona enorme da música tradicional portuguesa que tem este tipo de trocadilhos. E há um tipo de piropo, cavalheiresco, que não é insultuoso.
Que é o tipo de piropos do Zé Manel?
Sim, porque observei isso no Largo da Graça, quando era miúda. Nós, uma família retornada, com muita dificuldade de inserção nessa Lisboa, fomos por exemplo disso mesmo. Éramos cinco meninas, elas adolescentes e eu bebé, e nunca por nunca fomos desrespeitadas por homens como o Zé Manel. É o que se chama ter os alqueires bem medidos. Claro que havia esta coisa portuguesa, “ai que gira que você está hoje”, mas havia também um grande respeito. E aqui chegamos aos valores, que hoje se estão a perder. A minha mãe nunca teve medo que eu brincasse na rua, porque sabia que a vizinha e o senhor da taberna me deitariam olho, ninguém me molestaria. Claro que a mulher tinha um papel e o homem tinha outro, claro que ele dizia “a minha patroa”, e dava bejinho e “cuidado que pica”, e tentava ser galanteador, mas também conheci mulheres fortíssimas e muito respeitadas. Vivi em matriarcado. Na minha casa, o meu pai era uma figura apagada perante a minha mãe e tinha a sua importância. A norte de Portugal, é o matriarcado que conta. Essa grande inteligência de fazerem parecer que o homem manda, mas quem dirige o barco são elas.
Costuma falar da perda de valores. Isso faz de si uma pessoa conservadora?
Uma coisa é ser conservadora, fascistoide, “bolsonara”. Outra coisa, é mantermos a nossa essência e a nossa identidade. As feministas não têm de deixar de ser mulheres femininas. A minha vida inteira foi isso, ainda por cima no humor, que é por excelência um meio masculino, de poder masculino. Tive uma caminhada muito difícil enquanto mulher e ainda tenho. Mas não sou conservadora, sou militante de valores que são conquistas fundamentais e temo que se percam.
Como por exemplo?
A igualdade, a solidariedade, o respeito pelos direitos da criança. Podemos dizer hoje que o excesso de atividades afasta as crianças do recreio, do divertimento, da festa. Nisso, os africanos são mestres de sabedoria. A sexta-feira é dia de festa, de família, isso é que nos enche e nos recarrega para a luta que é a vida. Por exemplo, o apelido Rueff é da minha mãe e o meu pai dizia que era conhecido pelo senhor Rueff. Ora, só há pouco tempo é que o homem pode querer ter o apelido da mulher. Sou conservadora de conquistas que são certas e espero que haja outras, até para a minha filha não sofrer algumas amolgadelas que tive de sofrer. Não sou conservadora no sentido de direita ou extrema-direita, antes pelo contrário, não me inscrevo nada nesse lado.
Disse agora que o humor é um meio masculino…
O humor está nas mãos dos homens, não só em Portugal. Tive a sorte de estar rodeada de pessoas como o Herman e Ana Bola, que me abriram as primeiras portas, e que não representam esse meio. De facto, há muito poucas mulheres a fazer comédia, já vão sendo algumas, mas o humor é uma coisa muito recente para elas. Nos livros do Eça vem que a mulher não ri dilatadamente. Não é uma coisa que, à partida, seja tida como muito séria. Não é pedido a uma mulher que se desfigure, ela não deve dar gargalhões ou a aparecer em trajes galhofeiros. São conquistas muitos recentes da igualdade. Se calhar, é mais fácil alguns homens fazerem vingar os seus projetos de humor.
Sempre foi cómica?
Nasci numa família castigada. Tinha uma distância dos meus irmãos, que eram mais velhos, e dos meus pais, que eram quase meus avós. Havia uma necessidade de divertir aqueles adultos ensombrados pela descolonização. Acho que é um dom. Não consigo explicar porque é que certas pessoas têm necessidade de fazer uma cambalhota com as situações, distanciar-se delas, porque o humor é distância dos acontecimentos. Por isso é que temos vontade de rir quando vemos alguém que escorrega na rua. Estamos longe, não estamos na situação de poder partir a perna. É um dom que depois implica um trabalho de que as pessoas não têm noção. A comédia é técnica pura. Tem muito de matemático. Uma graça resulta em palco porque respirei três segundos antes. Se respirasse a seguir, a graça já não seria tirada da mesma forma e não resultaria. É muito diferente ter piada na mesa do café e depois fazer disso profissão, muito diferente. Por norma, todos os comediantes têm um lado muito sério, alguns até macambúzio.
Um lado sombrio?
Não diria sombrio. Mas a comédia é muito exuberante, muito exaltada, a caricatura é muito garrida. A seguir, temos necessidade de recolher a um cantinho de silêncio.
Como é que é entre amigos?
Sou alegre, divertida. Mas tenho muita necessidade, cada vez mais, não sei se é da idade, de silêncio. Por norma, estou em silêncio em casa ou a conversar, o que adoro. Acho que as pessoas hoje conversam mais pelos dedos, no telemóvel, o que não é bem conversa. Tenho muito o culto da mesa e dos amigos.
Isso vem das origens africanas?
Sim, herdei isso, essa partilha. Cresci numa família em que isso existe e tenho-me rodeado de amigos com o mesmo gosto. A minha mãe, já disse, era da Beira Alta e isso também acontece muito por lá. O meu pai era do centro, de Cantanhede. Sobretudo no norte há essa coisa de mais um chouriço, mais um pão e conversa. Há sempre qualquer coisa que serve para juntar as pessoas.
Veio para Lisboa com dois anos, não terá memórias vivas de Moçambique.
Não tenho, não. Já lá voltei, em 1998, com o Herman. Fomos fazer um espetáculo em Maputo e foi muito bonito, porque pude juntar cenário à história que me tinha sido contada pelos meus pais.
Onde vivia nos primeiros anos em Lisboa?
Precisamente na Graça. Já não vivo, mas ainda lá vou muitas vezes, à noite, ao miradouro, espreitar os meus cantinhos. Brinquei no jardim do miradouro da Graça, foi o meu primeiro palco. Lembro-me do [bar] Botequim, de ver entrar a Natália Correia, lembro-me da Sophia de Mello Breyner, vivíamos na mesma rua, a Travessa das Mónicas. É a minha aldeia, vou lá muitas vezes. Não é que seja nostálgica, mas, como já tive tantas perdas na família, vou lá fingir que ainda sou pequenina.
Disse numa entrevista: “Eu, o Herman, a Ana Bola e o Joaquim Monchique somos crianças grandes”.
E o Manuel Marques também. Quase todos os comediantes são. Antes de fazermos comédia, um “sketch” em televisão, por exemplo, provocamos uma espécie de recreio. Obviamente, há ali muito trabalho, mas há muito de crianças grandes a brincarem num mundo faz-de-conta. Acho que isso é transmitido ao público. O mesmo acontece com os Gato Fedorento, que tive oportunidade de ver trabalhar e crescer, ou com o César Mourão, nas suas comédias de improviso. Esse lado infantil é essencial, esse olhar para o que é risível, coisa que muitos adultos perdem.
[Maria Rueff e Joaquim Monchique:]
Olha para a história da sua família com humor? Ou sobressaem os dramas da descolonização?
Com humor, desde pequena. Fazemos todos isso. A minha família tem sentido de humor e tem alegria. Há pessoas não alegres, que são muito cómicas. Os ingleses são assim. O meu pai era assim. A minha mãe era mais alegre, mais trocista. Quase todos temos esse lado. Sobretudo, sempre senti na minha família a grande sabedoria que vemos, por exemplo, no Brasil, nas pessoas das favelas. Quando não se tem quase nada, mais alegre se é. Senti isso no corpo e é verdade. Quando não se tem nada, qualquer groselha, qualquer Nescafé com água, porque não há dinheiro para comprar Coca-Cola, qualquer ida em passeio a pé, por Alfama ou pela Graça, é uma diversão. Uma capacidade de nos alegrarmos com quase nada. Às vezes, o dinheiro ou as posições com muito destaque tiram-nos essa capacidade.
Antes de ir estudar teatro, candidatou-se à Faculdade de Direito. Queria ser advogada?
Nos anos 80 havia aquela coisa do canudo e do curso, mas não entrei por uma décima. Ir para teatro era quase “kamikaze”, os teatros estavam às moscas, não havia a ficção que há hoje em televisão. Quando me inscrevi no Conservatório, não ia com convicção nenhuma, fui porque toda a gente em casa achava que eu tinha jeito. Uma das minhas irmãs até vaticinou: “Se o Herman um dia te encontra, nunca mais te larga”. Eu achava que nunca tal coisa me aconteceria. Quando entrei para o Conservatório, a minha mãe disse-me “segue o teu sonho”. Lá está, a tal sabedoria de quem teve tudo e depois perdeu tudo.
Foi estudar teatro para ser comediante?
Não, fui para teatro porque achava que tinha jeito. Mas a comédia foi logo um apelo. Aliás, se falar com o Diogo Infante, que nessa altura estava a acabar o terceiro ano, ele e muita gente, todos têm memórias minhas a fazer rir nos corredores. A maior parte dos professores, e por isso estou-lhes agradecida, deram-me exercícios finais de drama ou de tragédia. Deram-me oportunidade de fazer ginásio nessa outra vertente.
Em 1991, ainda estudante, fez a primeira peça: “Quem Muda a Fralda à Menina?”, no Teatro Villaret.
Sim, porque houve necessidade de substituir uma colega nessa peça do Armando Cortez. Foi a melhor coisa que me aconteceu, porque tive ali dois mestres: a Manuela Maria, que é minha madrinha de cena, e o Armando, que é dos nossos enormes comediantes. Acho que os portugueses não têm noção do quanto ele era excecional, talvez haja mais a memória dele nas novelas. Ele dizia-me que eu era comediante de raiz. Tive o privilégio de aprender com estes grandes atores, grandes comediantes, que por sua vez aprenderam com os nossos grandes cómicos: Laura Alves, Vasco Santana, Maria Matos, António Silva e Ribeirinho, que foi mestre deles todos.
E o Herman?
Outra grande mestre, aí no humor de televisão. É um homem que está na história, revolucionou-nos a todos. “O Tal Canal” foi o 25 de Abril da nossa televisão. Era espectadora dele desde pequenina. Tinha uma obsessão, tinha e tenho. Curiosamente, não me ria, ficava em estado de adoração. Quando ele me foi ver pela primeira vez – eu fazia um café-teatro num bar do Joel Branco, na Costa da Caparica, ao lado do João Baião, que conheci na peça do Armando Cortez – fiquei em estado de nervos. Tinha 19 anos, tentava fugir do olhar dele. E ele disse-me que me chamaria no momento em que tivesse um programa de humor. Assim foi, passado um ano.
[Maria Rueff no programa Herman 99:]
https://www.youtube.com/watch?v=I8_AF9wb8sQ
Como é que conjuga a timidez com o facto de ser atriz?
Porque, justamente, não sou eu. Não sou eu. Ainda sou muito tímida, o público tem sido muito carinhoso comigo. Mas é isso: não sou eu que vou para palco. Sou o veículo, mas tento esconder-me ou desaparecer completamente. Sigo o ensinamento do Armando Cortez, que muito atores esquecem: representar quer dizer estar em vez de. Não somos nós que estamos, é a personagem.
Considera-se atriz ou comediante?
Se tivesse de me registar, seria como comediante. Tenho muito, muito orgulho nisso. Sei que sou atriz e consigo fazer outros registos, mas a minha estrelinha, a minha essência, é a comédia. O comediante é um ator com um “plus”, a capacidade de fazer rir, que, “in extremis”, não se explica. É uma química, como quando nos apaixonamos. Porque é que eu consigo fazer rir e se calhar a senhora ao lado não consegue. Temos essa noção e o respetivo temor. Os cantores têm medo de perder a voz, nós temos medo de perder a graça.
Tem medo de perder a graça?
Tenho, tenho. Tenho medo de um dia não merecer a atenção das pessoas, de perder capacidades. A comédia implica um raciocínio rapidíssimo, uma espécie de superlucidez, uma memória estrondosa, porque para fazer um improviso tenho de ter à minha frente, como se fosse um computador, todas as pastas abertas, para ir buscar ideias. Sei que há atores comediantes aos 90 anos, mas tenho muito medo de que o corpo me traia, a cabeça, a memória, o cérebro.
Numa entrevista recente sublinhou esta ideia: “Há rábulas minhas e do Herman que passaram sem ‘pis’ há 20 anos e agora na RTP Memória têm ‘pis’.” Estava a falar do politicamente correto?
Aqui não me pode chamar conservadora, porque estou a pôr em cima da mesa as conquistas de Abril, a liberdade, incluindo a liberdade de expressão. Recentemente, o Eduardo Madeira imitou a Serena Williams [no programa “5 Para a Meia-Noite”, na RTP1] e começou-se a falar de “black face” [interpretação de personagens negras por atores brancos, muitas vezes como caricatura]. Isto é absolutamente disparatado. É o 8 ou 80. As pessoas, por serem #MeToo ou anti-racistas não podem depois embarcar em falácias. Uma coisa é contestar a qualidade da rábula, se foi melhor ou pior, outra coisa é achar que o Eduardo Madeira, por imitar a Serena Williams, está a ser racista. Já fiz centenas de personagens assim, já fiz de mulata e de preta. Ele incorporou a Serena Williams e amanhã incorpora o Luís Filipe Vieira. Sinto que já tivemos mais liberdade de expressão.
Os comediantes ou os portugueses em geral?
Os portugueses e provavelmente a nível mundial. Há aqui um perigoso moralismo outra vez, que não nos ajuda. Ainda por cima, é a partir dessa falácia de se estar a lutar por liberdade. Ao estarem a arrumar as coisas em pastinhas, estão a fazer perigar a liberdade.
Sente-se condicionada emquanto comediante?
O comediante é o primeiro a ser censurado. É o primeiro. Já passei, ao longo da minha carreira, por variadíssimas censuras, que não foram as censuras do Vasco Santana ou do António Silva. Não é um senhor da PIDE que vem riscar o texto, mas é qualquer coisa mais perversa e sem rosto. Quando me apresento num evento, por exemplo, e alguém vem dizer: “O sotor pede que a Maria Rueff, se não se importar, não fale daquela parte sobre Angola ou sobre o Sporting”. E depois há esta coisa hoje de confundir humor negro com socar o outro só por socar. O humor tem de ter uma cambalhota de inteligência. Se isso não existe, é só pancada e é muito feio. Também nos sentimos muitas vezes condicionados por grupos financeiros. “Ah, se a rábula é essa, afinal não queremos.” Ou então esvaziam-nos, como aconteceu antes da crise [de 2011]. Se reparou, não havia programa nenhum de humor nas televisões. O condicionamento está hoje muito presente. Chamemos-lhe condicionamento, para sermos simpáticos.