Para a maior parte dos militantes do Bloco de Esquerda, o timing da saída de Catarina Martins foi uma novidade — revelada num e-mail que enviou, na manhã desta terça-feira, a despedir-se dos camaradas e a agradecer os dez anos à frente do partido. Para o círculo mais próximo de dirigentes, no entanto, não foi assim: foram ouvidos e consultados sobre uma decisão que partiu da própria, e envolvidos no processo de escolha de Mariana Mortágua — que agora se perfila como a provável próxima líder do Bloco de Esquerda.
A justificação de Catarina Martins passou pela abertura de um novo ciclo político, desgastada que está a atual maioria absoluta, e com ele o fim do seu próprio ciclo à frente do Bloco. E, para o partido, o que muda aqui é mesmo o “tempo” político: Mortágua é vista como uma solução que dará continuidade a uma linha política que não muda com a troca de líder.
Quanto ao que essa continuidade significa, as opiniões dividem-se: para o núcleo duro, é mais uma oportunidade para evidenciar as falhas do PS e colher, finalmente, os frutos de uma rutura com António Costa que o partido sempre considerou ter sido mal compreendida. Para os críticos internos, não passará de uma oportunidade perdida para mudar de rumo político e mudar o Bloco por dentro.
Uma coisa é certa: dentro do partido, mesmo quem ataca a linha da direção não aponta baterias especificamente a Mariana Mortágua — e até há quem veja na provável nova líder uma voz “incómoda” para os “grandes interesses”, que fará o partido “sonhar que não está assim tão domesticado” e assumirá com “dureza” a missão de voltar aos protestos de rua.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre as mudanças no Bloco de Esquerda.
https://observador.pt/programas/a-hist-ria-do-dia/saida-de-catarina-martins-muda-alguma-coisa-no-be/
O dia da despedida e o argumento político para chamar Mortágua
A novidade foi confirmada — ainda que não de forma oficial — meras horas depois de Catarina Martins se ter despedido dos aderentes, primeiro, por e-mail; e do país, depois, numa conferência de imprensa que durou poucos minutos. Ainda os dirigentes começavam o desfile de reações espalhadas pelo Twitter e pelos jornais e começava a ganhar corpo a tese — já comentada nos últimos tempos — de que Mariana Mortágua seria a líder que se segue.
Os dirigentes ainda tentaram controlar a informação, recordando que este era o dia de despedida de Catarina Martins e que haveria tempo para falar de futuro — e tentando evitar críticas semelhantes às que se ouviram na transição de liderança da Iniciativa Liberal, em que os críticos internos do partido apontaram a saída de João Cotrim Figueiredo e, minutos depois, o anúncio de que Rui Rocha avançaria para a corrida como prova de que estaria a acontecer uma espécie de sucessão dinástica e combinada.
Mas esses esforços não duraram muito: com a informação de que Mariana Mortágua estará pronta para avançar, a despedida de Catarina Martins — que só sai, efetivamente, da liderança em maio, na convenção do partido — foi encurtada. Dos minutos em que falou aos jornalistas ficaram algumas conclusões: o orgulho na construção da geringonça, primeiro, e a ideia de que sai pelo próprio pé por reconhecer que o desgaste da maioria absoluta veio abrir um novo ciclo político, por outro.
No núcleo duro da direção, aponta-se para o argumento político como o principal catalisador da saída, assim como da necessidade de trazer um rosto novo (q.b.) para liderar o Bloco nesta nova fase. A tese é simples: o tempo é de instabilidade política, não há garantias de que este Governo (apesar de ter maioria absoluta) consiga levar o mandato até ao fim e o mais avisado é começar já a preparar a “renovação” do Bloco de Esquerda, deixando Mortágua aos comandos do partido.
Na direção, deixa-se bem clara uma ideia: Catarina Martins estava consciente de que teria todo o apoio interno para continuar e até tinha recebido algumas sondagens mais animadoras para o Bloco nos últimos tempos. Ou seja, a ideia, frisada por várias fontes, é que não foi “empurrada” nem ninguém lhe “pediu” que saísse — e que ela própria entendeu que haveria “vantagem política” em passar a pasta.
No caso, passar a pasta a uma figura que o Bloco lembra ser a dirigente que goza de maior notoriedade no país além da própria Catarina Martins, com intervenção política e pública reconhecida pelo menos desde os tempos em que questionava Zeinal Bava no Parlamento e lhe apontava, numa famigerada intervenção durante a comissão de inquérito sobre o BES, algum “amadorismo”.
“Incómoda”, “dura” e transversal. Como o partido vê a escolha
A marca Mortágua agradou dentro do partido, a assertividade também, e acabou com as dúvidas que rodeavam o seu nome depois de em 2013 lhe ter sido aberto espaço no Parlamento para ocupar o lugar deixado vago por Ana Drago. Tornava-se então evidente a aposta do partido na jovem economista, uma vez que para chegar ao Parlamento foi preciso saltar nove lugares na lista de candidatos a deputados — uma decisão que foi, na altura, questionada por muitos militantes. Mortágua conseguiria entretanto, por entre intervenções nas comissões parlamentares e um protagonismo crescente nas negociações com o Governo, acumular muitos créditos no partido.
É também no seio do Bloco que se defende a figura de Mariana Mortágua como alguém que não é uma especialista demasiado conotada apenas com certos assuntos — apesar de estar muito ligada à área das finanças e às investigações sobre banca — e que goza de bastante transversalidade.
No entanto, o que no partido é uma vantagem é, para outros setores, um claro ponto fraco: o estilo aguerrido e por vezes considerado radical da deputada levou a inúmeros embates e críticas na praça pública, criando alguns anticorpos contra Mortágua. Por isso, para alguns a questão coloca-se também em termos de vantagem (ou não) eleitoral: será a pessoa certa para tentar alargar os horizontes do partido e transpor as fronteiras do Bloco, convencendo mais eleitores?
Ironicamente, para os críticos internos — os mesmos que sempre defenderam que o Bloco estava demasiado subjugado ao PS e que deveria voltar à sua base mais “radical” –, essa poderá ser até a principal vantagem de Mortágua.
Entre os que não se reveem na gestão da atual direção há quem elogie a dirigente por ser uma “voz muito incómoda” e “dura nos termos”, que faz o Bloco “sonhar que não está assim tão domesticado”, numa altura pós-geringonça em que o partido “vai voltar a usar a expressão ‘anticapitalista'”, graceja uma fonte.
Para os críticos desta gestão, o problema é mais profundo do que a cara que representa o Bloco. Mas, nessa dimensão, o que Mortágua vem representar é uma “continuidade” em relação à linha que levou o Bloco a grandes vitórias eleitorais na fase da geringonça, mas também de derrotas históricas no seu seguimento. “Quem não estiver disponível para fazer um balanço sério do ciclo de derrotas eleitorais e daí tirar consequências em relação à orientação política não poderá constituir uma boa solução“, atira um crítico.
“O foco na sucessão é um ardil semântico, uma manobra de distração”, concorda outra fonte desalinhada da atual direção. “É importante renovar as caras, mas sem renovar a política isso é muito fútil e superficial”, acrescenta, mesmo assegurando que Mortágua é “um ótimo valor político” do Bloco e consegue ter “um mínimo de empatia” na rua para chegar a mais pessoas, mesmo fora do partido.
Foco político continua na rua
O foco político, esse, não deverá mudar muito: da última reunião da Mesa Nacional (a direção alargada do Bloco) saiu uma resolução chamada “as lutas populares alteram a situação política”, que apontava para a orientação que deverá continuar a ser seguida, tendo em conta que Mortágua já faz parte desta direção e já estava envolvida na definição da linha política do Bloco.
Ou seja, em tempos de maioria absoluta, o Bloco acredita que o seu lugar é na rua e que as próximas semanas de contestação social serão “o tempo decisivo de uma alteração de fundo na situação política” e que essa alteração — “a entrada em cena da luta popular” — responsabiliza o Bloco de Esquerda.
Na resolução, recordava-se precisamente que esta “luta” popular já se “desdobra” por vários setores e até sai das mãos, em alguns casos, dos sindicatos tradicionais. Mariana Mortágua deverá ter essa missão, se conseguir conquistar os comandos do Bloco, contra uma oposição que se prevê minoritária na convenção de maio. A juntar a outras: melhorar as perspetivas eleitorais do Bloco e tirar o partido de um ciclo de derrotas que não consegue travar desde 2019.