Texto publicado inicialmente a 11 de março e atualizado após ser conhecido o 3.º lugar do trabalho de Mário Cruz na categoria ambiente do World Press Photo 2019.
“Living Among What’s Left Behind” é o título da imagem captada por Mário Cruz, vencedora na categoria ambiente do World Press Photo, o mais prestigiado prémio de fotojornalismo do mundo, que distingue e reconhece fotógrafos profissionais desde 1995. A fotografia do repórter da Agência Lusa mostra uma criança que recolhe materiais recicláveis deitada num colchão rodeado por lixo que flutua no rio Pasig, em Manila, nas Filipinas, declarado biologicamente morto na década de 1990. O trabalho resulta de um projeto pessoal que desenvolveu durante um mês na comunidade de Manila, motivado “pela passividade com que se discutem as situações ambientais”.
“Muitas vezes vemos pessoas a fotografar lixo no areal, a questionarem como aquilo foi lá parar, e caímos no erro de nos preocupar com a microescala que nos afeta, mas o que encontramos é o resultado de algo que se encontra completamente descontrolado na outra ponta do planeta”, diz em entrevista ao Observador.
Após alguma pesquisa, o fotógrafo descobriu que o rio Pasig é um dos 20 rios mais poluídos do mundo, pois durante várias décadas as comunidades que vivem junto dele foram crescendo sem nunca terem saneamento. “Milhões de famílias nunca tiveram uma sanita na vida e não sabem o que é um esgoto”, explica Mário Cruz, acrescentando que as pessoas que fotografou “não têm outra coisa se não lixo à sua volta 365 dias por ano”. No que diz respeito às necessidades básicas humanas e à preservação do meio ambiente, este é, segundo o fotojornalista, “um problema gravíssimo que atravessa várias gerações”, “um reflexo de uma sociedade desigual e esquecida”, “um exemplo extremo e real”, um cenário “que não é o futuro, mas sim o presente”.
Mário espera que o seu trabalho seja um “grito de alerta e um apelo à ação” para a consciencialização destes temas e como forma de ganhar visibilidade concorreu com uma série de 10 imagens ao concurso internacional World Press Photo 2019, num ano em que a fundação contou com mais de quatro mil fotógrafos de 129 países que enviaram quase 79 mil imagens. No dia 11 de abril vai à cerimónia em Amesterdão saber se ficou em primeiro, segundo ou em terceiro lugar, mas independentemente do lugar alcançado, o profissional acredita ser possível que o rio Pasig “tenha um ponto de viragem rapidamente” e que o seu trabalho possa ajudar nessa mudança.
No dia 6 de abril, pelas 16h, no Palácio dos Anjos, em Oeiras, o fotógrafo irá propagar ainda mais este trabalho ao apresentar “Living Among What’s Left Behind” numa exposição com 40 fotografias, que podem ser vistas no local até 26 de maio, mas também em formato livro, com 70 fotografias, 500 exemplares e cujas capas foram produzidas através de 160 quilos de lixo plástico, sendo por isso todas diferentes. O livro foi totalmente financiado pela Nomad, que terá exclusividade na venda dos exemplares em Portugal, tendo já garantida a distribuição internacional. A exposição poderá passar por outras cidades, como Nova Iorque, e já tem presença marcada nas Filipinas no final do ano. “Espero poder voltar lá daqui a uns anos e poder fotografar o rio e em vez de plástico voltar a ver água. Essa seria a grande recompensa deste trabalho.”
A narrativa dos temas esquecidos
O culto da fotografia conquistou Mário Cruz desde cedo. O pai fotógrafo, a infância rodeada de máquinas e o interesse pela narrativa, ou seja, o desejo de “contar alguma coisa através de um conjunto de imagens e não apenas uma”, fizeram-no não ter muitas dúvidas do caminho a seguir. Depois de um curso no Cenjor — Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas e de um estágio na Agência Lusa, onde permanece até hoje, o profissional de 31 anos sentiu necessidade de fazer os seus próprios projetos, com mais reportagem e fotografia documental sobre temas “ignorados, escondidos ou esquecidos na sociedade” e que, por isso, exigissem tempo.
Aos 25 anos assinou “Cegueira Recente”, onde aborda a vida e a reaprendizagem de competências básicas num centro de reabilitação, com o qual ganhou o prémio Estação Imagem em 2014, entregue pelas mãos de Paolo Pellegrin, uma das maiores referências. “Este prémio foi importante porque me deu aquele empurrão para continuar a seguir a ideia de fazer os meus próprios projetos. Graças a ele publiquei o meu trabalho no The New York Times e isso deu-me muita projeção e contactos”, recorda Mário.
Seguiu “Roof”, um ensaio fotográfico realizado durante o período da Troika em Portugal, que surgiu “de uma indignação pessoal muito forte” e também acabou por ser publicado na revista americana. “Senti que a nossa crise não estava a ser levada muito a sério, havia muita foto-reportagem sobre a Grécia, talvez porque as manifestações lá foram mais agressivas e violentas. A verdade é que a crise em Portugal era severa e teve resultados devastadores, senti que tinha de fazer alguma coisa.” A premissa era simples: fotografar a vida das pessoas que perderam as suas casas e foram obrigadas a viver em sítios abandonados em Lisboa. Durante um ano Mário desenhou um mapa da capital, traçou os locais a explorar e depois pegou na máquina, mas o trabalho que mais o marcou e transformou foi “Talibes, Modern Day Slaves”, onde documentou a escravatura das crianças, conhecidas por talibés, no Senegal e na Guiné-Bissau.
Mário conheceu o problema em 2009, quando foi à Guiné fotografar as eleições presidenciais, em 2015 resolveu explorar as histórias que tinha ouvido e durante seis meses investigou e criou uma rede de contactos com organizações locais e internacionais, até que descobriu uma realidade dura e que nunca mais esqueceu. “As crianças talibés deveriam estudar, mas milhares delas são escravas de falsos professores, são chicoteadas, acorrentadas e sofrem imensos abusos.” Era necessária uma prova que documentasse esta realidade e a fotografia podia ser uma ferramenta preciosa. Mário arriscou e visitou sozinho os dois países.
“Foi a experiência mais difícil que tive a nível profissional, nunca pensei ao longo da vida testemunhar as coisas que vi, não é uma coisa fácil de gerir.” De regresso a Portugal, com as provas que faltavam, o fotojornalista teve dificuldades em publicar o resultado final. “A fotografia está refém de grupos e elites”, afirma, questionando os critérios editoriais de algumas publicações. O trabalho acabou por ser publicado na Newsweek e distinguido em 2016 pelo World Press Photo, na categoria Assuntos Contemporâneos, e “depois disso as coisas mudaram”.
“O meu trabalho não acaba quando eu acabo de fotografar”
“Eu vejo o World Press Photo apenas e só como um concurso”, diz admitindo que este, tal como outras publicações, tem “um enorme poder” no toca a partilhar informação e atrair atenção. “Quando me candidato estou consciente que se conseguir ganhar uma distinção dessa organização o meu trabalho automaticamente ganha uma visibilidade muito própria e quase única. É sempre isso que eu procuro para os meus trabalhos, não os prémios ou as distinções em si, mas sim a visibilidade que isso possa trazer”. Depois de receber o galardão em 2016, a iniciativa de Mário atraiu muita curiosidade mundial, recebendo dezenas de e-mails de pessoas de todo o mundo a quererem saber mais sobre o tema e como poderiam ajudar aquelas crianças. “Isso fez-me sentir bastante bem, percebi que o que me tinha levado ao fotojornalismo, o poder da narrativa, existia mesmo. Durante muitos anos tinha-me esquecido que isso era possível.” Os efeitos práticos não se ficaram por aqui, contra todas as expectativas, o governo senegalês acabou por o contactar e querer usar as suas imagens para um programa de sensibilização destas escolas falsas.
Com este boom, Mário Cruz decidiu lançar um livro onde coubesse “toda a plenitude deste trabalho”, que alem de ser distribuído em Portugal, tinha como principal objetivo estar presente em escolas, bibliotecas e organizações locais no Senegal e na Guiné-Bissau. Em plena campanha de crowdfunding, o fotojornalista regressou à Guiné, fez uma exposição itinerante e conseguiu estar com crianças que já tinham sido resgatadas. “Tenho consciência que o meu trabalho ajudou e felizmente muita coisa mudou, mas também sei que o problema ainda está lá.”
Após o reconhecimento internacional, o fotógrafo sentiu na pele a curiosidade, a pressão e a expectativa de editores, amigos e até familiares que perguntavam: o que se segue? Mário manteve-se livre, independente e à margem de qualquer obrigação moral. “Não faço trabalhos com pressa nem à pressa. Tudo isto é um processo de muito maturação, porque são trabalhos exigentes. Eu passo muito tempo na pesquisa e na investigação, é a base do meu trabalho, é que me vai permitir ou não fotografar.” Para Mário o seu trabalho não acaba quando acaba de fotografar, por vezes demora mais tempo na preparação e na divulgação do que propriamente a captar a realidade. “A fotografia, apesar de ser algo efémero, tem um poder especial e nós temos que aproveitá-lo o melhor que podemos”. Seguiu-se então um ano e meio de divulgação, onde foi até ao Parlamento Europeu apresentar o projeto, e o momento em que decidiu ser pai. “Os talibés tiveram um impacto enorme em mim que ainda hoje não consigo determinar por completo.”
A crítica e a esperança de fotografias melhores
Numa altura em que tirar fotografias faz parte da nossa rotina e o trabalho dos fotógrafos vive entre a banalidade e espectacularização, Mário Cruz mostra-se bastante crítico “dos nossos tempos”. “Hoje em dia vemos e produzimos imensas fotografias, mas na maioria é uma fotografia medíocre. A maioria dos fotógrafos procura visibilidade para eles e o que os motiva é a popularidade, os likes e aceitação do meio. A forma de terem essa visibilidade é através de prémios. Não conheço um fotógrafo que não tenha recebido um prémio na vida e também não conheço nenhuma área que tenha tantos prémios e tantos concursos”.
O facto de alguns trabalhos, onde “o conteúdo é mal documentado”, chegarem facilmente à imprensa é, para o fotojornalista, “o resultado natural das coisas”. “A própria imprensa está refém de um jornalismo que é pouco pensado e pouco trabalhado. Achamos estranho que jornais e revistas continuem a vender pouco, mas não paramos para perceber porquê. Isto acontece em todo o lado, embora em Portugal se manifeste de uma forma preocupante.” Mário diz “não fazer sentido” que a imprensa portuguesa não publique trabalhos como o “Talibes, Modern Day Slaves”. Sabe, no entanto, que tudo se prende com questões editoriais, mas rejeita a “desculpa da questão económica”. “Eu sou um fotógrafo português, que vive em Portugal, trabalha em Portugal e nunca publiquei um trabalho em Portugal, e não foi por não querer.”
A forma como consumimos hoje fotografia preocupa o fotógrafo, que considera o Instagram uma plataforma não criteriosa, que mistura o bom e o mau apenas num passar o dedo. “De repente vemos a fotografia de um gato, a seguir um prato de comida e depois uma criança talibé acorrentada. Isto torna a fotografia mais pobre, torna-a vítima de um populismo que agora vivemos.” No entanto, Mário acredita que esta tendência “pode mudar no futuro” e não perde o otimismo nem a esperança.
“A fotografia nunca teve uma montra tão grande e uma oportunidade tão grande de ser partilhada e visualizada e discutida, mas ao mesmo acho que nunca se produziu tanta porcaria como agora.” “Nunca fotografámos tanto como hoje e até parece que toda gente é fotógrafo”, mas não. Apesar da fotografia “ser uma língua universal, nem toda a gente a consegue falar”.