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“Se calhar pensava que eu já nem estava vivo. É normal. Às vezes nem eu sei se ainda estou vivo.” Depois de uma vida dedicada à música e aos músicos com quem trabalhou, quase todas as conversas com Mário Martins, 88 anos, vão dar aos mortos. De uns, todos conhecem os nomes: Amália Rodrigues, Carlos Paião, Hermínia Silva, Max. Outros, António, o pai, Joaquina, a mãe, só permanecem na memória do antigo produtor discográfico. Ao falar neles, no pai, que reproduzia os números das revistas do Parque Mayer, na mãe, de quem lembra a beleza, os dentes perfeitos e o sorriso que herdou dela, Mário lembra-se que, afinal, ainda está vivo.
Poucas semanas antes desta conversa, fora-lhe diagnosticado um cancro. No apartamento de Lisboa onde vive com o irmão cinco anos mais novo e de quem é cuidador, aguardava uma chamada do hospital Curry Cabral para uma operação que o médico lhe disse ser urgente: “não sei se é urgente para mim ou para ele”, diz, resignado e debilitado pelas dores que não lhe dão sossego. “Uma pessoa não merece este sofrimento no fim da vida.” Mas quando começa a falar do que viveu, dos muitos artistas com quem trabalhou e de quem guarda preciosas memórias e artefactos, fotografias, livros autografados, o sofrimento suspende-se e ressuscita, para quem o escuta, todo um mundo distante e quase esquecido.
De João Simão a Marco Paulo, o romântico que só queria ser cantor (1945-2024)
Os episódios sucedem-se e são tantos que, por vezes, Mário perde o fio à meada, um fio feito de emoções e de recordações longínquas como a de ver Simone de Oliveira, imponente e indomável, a entrar nas instalações da Valentim de Carvalho, então na Rua Nova do Almada, a exigir mais músicos para trabalharem com ela: “quando saía, o edifício ainda ficava a tremer”. Ou do cantor madeirense Max, a quem fechou à chave num gabinete com o letrista Vasco de Lima Couto e a quem disse que só sairiam de lá quando tivessem duas canções prontas. Duas horas depois, o trabalho estava feito. Uma das canções era Noite.
Ou do dia em que, ainda no início da carreira, se dirigiu ao gabinete do administrador para lhe pedir que o deixasse ir embora porque não se sentia nem com energia nem com capacidade para desempenhar as funções. Rui Valentim de Carvalho recomendou-o a um psiquiatra, gesto pelo qual Mário Martins lhe ficou eternamente grato. Só muitos anos depois desse episódio encerraria o capítulo mais importante da sua vida profissional, abandonando a editora com a sensação de missão cumprida. Ele que lá entrara sem saber nada de nada, ignorante de tudo, mas com aquilo a que chama instinto e que o ajudou a descobrir e aprimorar alguns dos maiores nomes da música popular portuguesa dos últimos sessenta anos.
Da marmita nos intervalos aos artistas da rádio
Mário Martins nasceu a 26 de novembro de 1934. A família era oriunda de Celorico de Basto. O pai, que só fizera a segunda classe, viera muito novo para Lisboa trabalhar como marçano. Empreendedor, com um sentido de humor apuradíssimo, divertia a clientela feminina do seu comércio, uma pequena mercearia no Poço do Bispo, com as reproduções de números das revistas a que assistia. Não só a loja era mais modesta em comparação com os grandes armazéns que dominavam aquela zona da cidade, uma das mais pobres de Lisboa, como a personalidade de Joaquim pouco tinha que ver com a dos outros proprietários, homens orientados exclusivamente para o negócio e o lucro e pouco dados às coisas do espírito, sem sensibilidade para as artes.
À mãe de Mário, analfabeta, cabia cuidar da lida da casa, do marido, dos dois filhos e dos marçanos que trabalhavam na mercearia. Para a mulher, a vida era trabalho e pouco mais, apesar de a sua família ter algumas posses. O avô materno de Mário viera de Tábua e, graças aos rendimentos do negócio do pão, adquirira várias casas. Esse avô morreu cedo, quando a mãe de Mário tinha apenas seis anos. Da mãe, uma mulher bonita cujos dentes perfeitos o filho lembra com orgulho e vaidade, Mário herdou o sorriso. Do pai, a inclinação inexplicável para as artes e as letras. Mas a necessidade levou-o por outros caminhos. Tirou o curso comercial na escola Veiga Beirão e aos quinze anos já trabalhava na Caixa Sindical de Previdência do Comércio de Exportação e Consumo de Vinhos, um dos múltiplos organismos corporativos surgidos durante o Estado Novo.
As instalações eram na Rua Rosa Araújo, mesmo no centro de Lisboa. No início da década de 50, não havia dinheiro para almoçar fora em restaurantes. A mãe de Mário preparava-lhe a marmita, ele aquecia o almoço num fogão no escritório, comia à pressa e aproveitava o tempo livre para visitar as exposições gratuitas na Sociedade de Belas Artes. Não sabia nada de nada, insiste à distância de sete décadas, nem percebia bem o que o atraía para aquele lugar, mas era aí que passava o resto da hora de almoço antes de regressar aos afazeres burocráticos no escritório da Rosa Araújo.
Ali, era o mais novo no meio de homens de meia-idade, entediados, que se espantavam com os versos que o rapaz escrevia. Um desses colegas, uma raridade no meio de amanuenses desinteressados, ficou tão impressionado que prometeu levá-lo à tertúlia do café Monumental, frequentada por sumidades intelectuais da época como David Mourão-Ferreira ou António Manuel Couto Viana. José Andrade, assim se chamava o colega, tinha um segundo emprego, como guarda-livros da Companhia de Teatro do Gerifalto, dirigida precisamente pelo poeta Couto Viana, a única companhia regular de teatro infantil naqueles anos e que atuava aos fins de semana no Teatro Monumental, propriedade do empresário Vasco Morgado.
Tímido e intimidado pela presença de figuras tão ilustres, o jovem Mário balbuciou os seus versos e voltou a correr para a mercearia no outro lado da cidade para ajudar a mãe. Era um sábado, dia em que os estabelecimentos comerciais ficavam abertos até às nove da noite. Mário não gostava de ver a mãe a atender ao balcão. Aquele encontro com o escol dos intelectuais não teve reflexos imediatos. Mário não voltou à tertúlia e, sem o descaramento para ir incomodar alguém com os seus versos, lia o suplemento literário do Diário de Notícias às quintas-feiras para assim escapar aos limites impostos de uma vida no Poço do Bispo.
Promovido no emprego, estava bem lançado para uma vida segura e monótona sentado a uma secretária. A doença do pai veio alterar a situação. Depois de meses de queixas com um problema de pele, António foi visto por um médico que lhe mandou fazer uns exames. O paciente não chegou a saber que tinha um cancro porque o médico, como era habitual à época, só o disse ao filho. António foi operado no Hospital da CUF, tendo a família gasto uma parte das poupanças na operação e nos tratamentos. Em convalescença, uma coisa era certa, não podia continuar ao balcão da mercearia. Resolveram vender a casa em Lisboa e comprar uma moradia em Mem Martins, que tinha uma parcela de terra para o pai amanhar. Num dia em que andava pela Baixa a comprar móveis para a nova residência da família, a vida de Mário Martins mudou.
Tempo, um ouvido apurado e alguma sorte
Uma das figuras presentes naquela tarde no Café Monumental era João Belchior Viegas, empresário de Amália Rodrigues. Não se tinha esquecido do rapaz com inclinações poéticas e quando o viu passar à porta da Valentim de Carvalho, conhecendo a queda do jovem para as artes, perguntou-lhe se não estaria interessado em trabalhar no Departamento de Artistas e Repertório, cujo responsável anterior, Pozal Domingues, havia morrido meses antes. Para Mário, tudo aquilo era chinês. Embora a proposta de trabalhar para a maior companhia discográfica do país fosse tentadora, era sobre ele que recaía a responsabilidade prover o sustento da família. O pai aconselhou-o a permanecer no emprego. Mas a curiosidade falou mais alto.
De música, sabia um pouco. Anos antes convencera o pai a pagar-lhe aulas de piano que, após um período debilitado pela tuberculose, mudou para o acordeão, “que era ainda mais pesado”. Frequentara, mais tarde, o Centro de Preparação de Artistas de Rádio, onde se tinham formado nomes como Maria de Fátima Bravo e Maria Clara, e por onde passou também um homem que haveria de desempenhar um papel decisivo na carreira de Mário: António José Lampreia.
Dos tempos no centro, o produtor discográfico guardara o convívio com aquelas figuras. Hoje agradece que não tenham sobrado provas das suas prestações vocais para não passar pela vergonha de os artistas com quem depois trabalhou as ouvirem. Valia-se do gosto de ouvir música, implantado desde cedo pelo pai. A avó materna de Mário adorava fados e, numa altura em que ainda eram raros os aparelhos, o genro adquiriu uma telefonia para que a senhora ouvisse o programa transmitido às quartas-feiras pelo Rádio Clube.
De resto, Mário tinha tempo, um ouvido apurado e também alguma sorte. Pouco depois de entrar para a Valentim de Carvalho, ouviu no programa televisivo da cantora Cidália Meireles a voz que ficaria para sempre associada à sua carreira. Cidália tinha feito sucesso no Brasil como parte de um trio vocal que incluía as duas irmãs, Rosário e Milita. Convidadas para irem ao Brasil para uma digressão de três meses, acabaram por ficar lá 17 anos. Além de atuações ao vivo e na rádio, Cidália apresentava dois programas de televisão em São Paulo e quando voltou a Portugal, em meados dos anos 60, a RTP abriu-lhe as portas para um programa, Tu Cá, Tu Lá, que, segundo a cantora, pretendia defender a música portuguesa, não só convidando artistas já consagrados mas dando oportunidade a novos talentos.
Um desses talentos era um jovem nascido no Alentejo, em Mourão, e que vivia na altura com a família no Barreiro. João Simão da Silva atuou numa das emissões, interpretando um tema da autoria de Manuel Paião e Eduardo Damas, e impressionou os espetadores quer pelas qualidades vocais quer pelo aspeto de galã, muito adequado à época em que ainda triunfavam os cantores românticos. O jovem talento não passou despercebido aos olhos e aos ouvidos de Mário Martins que entrou em contacto com ele para o pôr debaixo da asa protetora da Valentim de Carvalho.
O que era necessário era arranjar repertório para aquela voz rara, “uma voz com harmónicos”, como ainda hoje lembra o produtor, mas desconhecida de todos: “ninguém sabia quem ele era e não podia chegar aos autores que estavam em voga naquela altura, como um Nóbrega e Sousa, e dizer-lhe ‘ó Nóbrega, quero uma cantiga das suas para este rapaz que eu agora descobri’. O Nóbrega e Sousa que sabia a qualidade do que fazia não ia empenhar-se numa cantiga a um desconhecido.”
A solução era encontrar canções estrangeiras para serem adaptadas. Material não faltava. Instalado na sobreloja da Valentim de Carvalho, Mário Martins passava o tempo a ouvir a música que tocava no estabelecimento, discos importados de toda a Europa. Quando alguma se lhe “pendurava nas orelhas”, pedia informações à funcionária. E houve uma canção que se lhe colou mesmo aos ouvidos. Cantada em italiano por Alain Barrière, cantor francês que havia participado no Festival da Eurovisão, Vorrei tinha sido lançada no ano anterior, em 1965. Mário Martins julgou que era uma canção à medida da voz de João Simão da Silva e, mesmo se houvesse dúvidas, o tempo urgia porque a ideia era lançar um EP, um disco que tinha habitualmente quatro trechos, antes do Natal, a época mais propícia a vendas: “Era o tipo de disco que mais se vendia. Ainda não se falava dos LP. O EP, para um mercado pobre como o nosso, era o ideal. E tinha de ter pelo menos uma cantiga que fosse suficientemente apelativa para que o público comprasse.”
“Ninguém, Ninguém”: anatomia de um prodígio em forma de canção de amor
Escolhido o tema, era preciso arranjar a pessoa certa para fazer a adaptação, escrever uma letra em português. Foi a funcionária da loja da Valentim de Carvalho quem sugeriu o nome de António José Lampreia, que já havia feito algumas adaptações no tempo do anterior responsável do departamento de A&R e que escrevera letras para alguns dos grandes compositores da época, como Nóbrega e Sousa e Ferrer Trindade. Mário diz que se encontrou com António José na Eduardo Martins, uma loja de moda na esquina da Rua Nova do Almada com a Rua Garrett onde ele trabalhava (a memória pode ser traiçoeira; António José trabalhava ao balcão da Grande Feira do Disco, na Rua do Forno do Tijolo, perto da Almirante Reis): “Fui ter com ele ao balcão e disse-lhe que gostava que ele fizesse a versão. Ele, além de ser um tipo extraordinário com umas capacidades únicas e raras, era muito acessível, mas tinha um ritmo de trabalho que era o dele, estava-se nas tintas para as minhas exigências de tempo. Eu sempre fui um ansioso, queria tudo para ontem, o que vim a perceber que estava certo para aquele tipo de trabalho. O António José disse que ia pensar.”
Num perfil publicado na revista Flama em abril de 68, dava-se a conhecer aos leitores a personalidade de António José e o porquê de levar o seu tempo a criar letras de êxitos como Nasci contra o vento, na voz de Simone, ou Procuro e não te encontro, canção composta por Nóbrega e Sousa e popularizada por Tony de Matos: “António José é um homem que fala mansamente, com humildade e com calor, e com gesto fluídos que ficam no ar, inacabados. É um caso curioso de intuição e sensibilidade”, lia-se nas páginas da revista em que se explicavam as limitações do autor: “Escreve nas horas vagas deixadas pelo emprego de balcão em casa de discos. A situação é igual, no fundo, à de muitos outros que, entre nós, se dedicam às coisas artísticas, como fuga, como salvação estrebuchada de um talento dilacerado pelas realidades.” Apesar da pressa de Mário Martins e da sensação de que o letrista se atrasara na entrega, António José não deve ter demorado muito porque o EP de estreia de João Simão da Silva, que entretanto escolhera o nome artístico de Marco Paulo, saiu antes do Natal e tinha como trecho principal Não Sei, a versão portuguesa de Vorrei.
Na capa, Marco Paulo, que nem sabia conduzir, aparecia ao lado de um Porsche vermelho, cujo proprietário era Rui Valentim de Carvalho, administrador e sobrinho do fundador da companhia. No texto da contracapa, a editora mostrava a sua aposta para vender o estreante como futuro cantor de charme: “Marco Paulo não canta por acidente. Canta cedendo ao impulso irresistível que o impele a exprimir-se através de uma voz que sabe transmitir aquilo que a inspiração dos autores criou. Porque Marco Paulo não se limita a usar a voz como simples instrumento a servir a melodia, vive intensamente o conflito que cabe dentro dos versos de cada canção. E são estes predicados, voz de timbre agradabilíssimo, extensão, ductilidade que aliados a um poder de expressão singular, o irão transformar no perfeito cantor de charme.”
Imitação ou original?
Fosse pela imagem, pelo conteúdo ou por uma mistura de ambos, o disco teve um sucesso imediato, “pegou logo”: “Foi uma coisa que mexeu com aquele marasmo dos discos lançados por desconhecidos que não tinham o apoio dos homens da rádio e das lojas de discos, era desconhecido quem cantava e quem o tinha lançado e produzido.” Com o ouvido do produtor, o talento de António José – “um tipo de pouca dimensão intelectual mas que tinha nascido, lá está, com o tal instinto da poesia, coisa que ele também não sabia o que era mas que fazia” –, a voz portentosa de Marco Paulo e a máquina de promoção da editora, o desconhecido depressa se tornou conhecido, ao ponto de, poucos meses depois, no Grande Prémio da Canção de 1967, ter tido Nóbrega e Sousa a compor para ele: “fui falar com ele, tinha um ar aristocrático, mas era acessível. Só que as coisas tinham de ser como ele queria porque era conceituado, já na altura era ele que fazia o repertório da Simone de Oliveira.”
A canção, Sou Tão Feliz, passou à final mas ficou no último lugar entre seis finalistas. No Diário de Lisboa, o crítico de televisão Mário Castrim escrevia que Marco Paulo era uma imitação de António Calvário – “na voz, nos gestos, nos arranques expressivos” – e que devia achar que já tinha valido a pena “só pela presença ali, diante de tão seleta assistência.” Anos mais tarde, numa entrevista a Carlos Castro para a TV Guia, Marco Paulo reconheceu o modelo de inspiração: “o disco despertou as pessoas para a minha voz, embora me tivessem ligado ao Calvário. Na verdade, ele era popularíssimo, um autêntico ídolo das multidões. Julgo mesmo que nos tempos mais próximos não aparece ninguém como ele em popularidade.” Mário Martins não lamentou o resultado de Marco Paulo no festival porque a vitória tinha ido para um artista da casa, Eduardo Nascimento, com a canção O Vento Mudou, da autoria de outro talento descoberto pelo produtor, Nuno Nazareth Fernandes – “um cavalheiro, artista multifacetado e o primeiro que descobri depois de chegar à Valentim”.
O triunfo valeu-lhes uma ida a Viena, onde decorreu o Festival da Eurovisão daquele ano. Na capital austríaca, Mário Martins teve oportunidade de ver ao vivo o cantor espanhol Raphael, uma das vozes mais conhecidas do país vizinho. Uma das canções do EP de estreia de Marco Paulo era outra adaptação, também feita por António José, de uma canção de Raphael, Estuve Enamorado (Estive Enamorado). Mais de vinte anos depois, Raphael estaria, sem disso suspeitar, no centro de um dos últimos capítulos da parceria de Mário Martins com Marco Paulo.
O trabalho de Mário Martins estava longe de se esgotar na invenção de Marco Paulo. Nos primeiros tempos na editora, o novato no departamento de A&R apostou num disco de teatro ligeiro com a canção Zé Cacilheiro, interpretada pelo ator José Viana. “Os outros não viam teatro de revista, eram gente fina”, diz, meio a sério, meio a brincar. Como a Valentim de Carvalho tinha o maior acervo de gravações de teatro de revista, Mário ouvia centenas de cassetes e achou que aquela podia resultar. E resultou, tornando-se no seu primeiro sucesso enquanto produtor.
O que resultou também foi o novo impulso dado à carreira discográfica da fadista Hermínia Silva. “Como é que a Hermínia com tantos sucessos ligeiros não vendia discos?”, perguntava-se Mário Martins. Com a ajuda do letrista Eduardo Damas e do compositor Manuel Paião (primo do outro Paião que entra nesta história), operou uma transformação no registo da fadista, a começar com uma versão do fado conhecido como Mariquinhas (Vou dar de beber à alegria), com letra de Eduardo Damas, e, poucos anos depois, com uma incursão paródica da fadista no novo mundo do yé-yé (A Hermínia Canta Yé-Yé).
Outro dos artistas que ajudou a relançar foi Frei Hermano da Câmara. Nascido numa família aristocrática, descendente de Pedro Álvares Cabral e do rei D. João VI, Hermano da Câmara abandonara a música no início da década de 60 com o Fado da Despedida para entrar como leigo no Mosteiro de Singeverga. Anos depois, o apelo das cantigas falou mais alto. O irmão do músico bateu à porta de Mário Martins na Valentim de Carvalho. Pediram autorização ao mosteiro para que o cantor viesse aos estúdios de Paço D’Arcos gravar as músicas, mas só tinha um dia para o fazer. Vinha às cinco da manhã e gravava tudo num único dia: “nunca vi ninguém a fazer aquilo.” A partir daí, Mário Martins acompanhou e orientou a carreira e a produção discográfica de Frei Hermano da Câmara, que conheceria um sucesso impressionante com o disco O Nazareno.
Se o início da carreira de Marco Paulo foi prometedor, os anos seguintes não confirmaram a promessa. Os EP com canções originais, escritas maioritariamente por Manuel Paião, Eduardo Damas e António José, não pegaram e, pelo meio, voltou-se à fórmula da adaptação para português de sucessos internacionais. Mário Martins continuou à procura de canções adequadas à voz do cantor que gravou S. Francisco e Tu Só Tu (versão de Something Stupid, de Frank e Nancy Sinatra) num dueto com Simone de Oliveira, ainda em 1967, e, no início dos anos 70, quando o artista cumpria o serviço militar na Guiné, versões de temas dos filmes O Padrinho e Love Story.
No entanto, o público parecia já não estar virado para os cantores de charme de músicas românticas e tristonhas, de fazer chorar as pedras da calçada, em que Marco Paulo se especializara. É verdade que tinha uma legião de seguidoras, fanáticas, como lhes chama Mário Martins, que se organizavam em clubes de fãs nos arredores dos grandes centros urbanos. O cantor alimentava o culto e apresentava-se várias vezes nesses clubes gerando ondas de histeria que não caíram muito bem num indivíduo fundamental para a sorte das carreiras de muitos artistas, o produtor de entretenimento da RTP, Melo Pereira: “um dos locais onde havia esses grupos era em Mem Martins e o Marco Paulo ia para lá para alimentar essas coisas. Houve umas cenas em Mem Martins que levaram elas a esgatanharem-se e isso foi publicado numa revista. E foi por ter lido uma notícia dessas que o senhor Melo Pereira achou que não podia levar à televisão, e achou que era uma pessoa que não se portava com decência e que andava a fazer cegadas por esses sítios limítrofes da capital.”
O espectáculo continua dentro de momentos
Sem os discos a tocar na rádio e sem aparecer na televisão, o percurso que se apresentava fácil tornou-se subitamente árduo, com o galã na prateleira das figuras secundárias num mundo em que a música de teor político e cantores com menos laca e mais conteúdo começavam a substituir a velha ordem. O 25 de Abril traria mudanças ainda mais bruscas. O próprio Mário Martins cedeu às exigências de um público politizado que pedia mais e mais música de intervenção. Era a época em que as livrarias estavam cheias de livros a explicar o marxismo em dez capítulos. Foi ele que produziu um dos maiores e mais improváveis sucessos daquela época, Somos livres (uma gaivota voava, voava), na voz de Ermelinda Duarte, que ouvira numa atuação no Teatro Vasco Santana, no recinto da antiga Feira Popular: “ninguém se lembraria de gravar aquilo, não era grande coisa, era só por ser do PCP. Eu insisti, uma, duas, três vezes, ela não queria gravar, até que lá cedeu. O single vendeu 300 mil exemplares, vieram representantes de França que queriam comprar os direitos para fazer uma adaptação.”
Para Marco Paulo, a estratégia continuava a mesma. Encontrar canções no estrangeiro, pedir a António José que escrevesse as letras e dá-las ao cantor. E em 1977, o vento mudou. Tennessee Special era uma canção composta por Peter Yellowstone para a voz do irlandês Red Hurley. Se nunca ouviu falar nem de um nem de outro é normal. E talvez tenha estado aqui o segredo do sucesso. Em vez de pegar em músicas conhecidas, baladas xaroposas, Mário Martins picava canções de autores e cantores que ninguém conhecia e que ninguém reconheceria se as ouvisse na voz de Marco Paulo com as letras de António José. O Comboio da Meia-Noite, título da versão portuguesa, single editado em 1977, marcou o início de uma nova era.
Na altura, sem concertos e com o nome vetado na RTP, Marco Paulo aproveitava as escassas oportunidades de promoção. Foi assim que atuou dentro da jaula dos leões do Circo Italia, no Porto, interpretando três canções sem tirar os olhos das feras à sua volta. Não era uma novidade. Anos antes, António Calvário também atuara no Monumental Circo Europa. Tinham todos de fazer pela vida. Menos arriscado foi o convite para atuar na inauguração de uma loja de discos na Terceira. O dono, que já era o maior vendedor de discos dos Açores, pediu ao representante da Valentim de Carvalho que lhe enviasse um artista para abrilhantar o evento e atrair público. Para a missão, Mário Martins destacou Marco Paulo. Nessa noite, segundo o cantor, teve de cantar O Comboio da Meia-Noite oito vezes (provavelmente mesmo até à meia-noite, menos uma hora nos Açores).
De “Morena, Morenita” a “Taras e Manias”: o que aprendemos com as canções de Marco Paulo
No ano seguinte, a tripla Mário Martins, António José e Marco Paulo voltou à carga, com mais duas canções do ubíquo Yellowstone e dos seus parceiros Roberto Danova e Mike Tinsley. Midnight Lover, interpretada pelo irlandês Joe Dolan, e Sentimental Kisses, que a cantora Kelly Marie levou ao Festival Yamaha, uma espécie de eurovisão asiático-ocidental, transformaram-se em Ninguém, Ninguém e Canção Proibida e quem as ouvisse jamais suspeitaria que não tinham sido compostas de raiz para a voz de Marco Paulo.
Para ajudar, a letra de Canção Proibida encaixava que nem uma luva no espírito do tempo, falando de uma canção que tinha ficado na gaveta mas que nunca mais voltaria a ser proibida. Doze anos depois de ter aparecido no programa de Cidália Meireles ainda com o nome de batismo, Marco Paulo alcançava o primeiro disco de ouro da carreira, por vendas superiores a 80 mil cópias. Nunca mais parou de bater recordes.
Mário Martins esteve sempre ao lado de Marco Paulo, nos altos e baixos de uma carreira que demorou a arrancar e que, mesmo quando o cantor estava nos píncaros, teve momentos difíceis: “eu insistia muito para falar com ele para ensaiar ou para dar uma entrevista, ou precisava de fazer a promoção, porque era assim que se fazia, eu estava a chefiar o departamento”, recorda. “E o Marco Paulo não era um disco que estava num escaparate que eu puxava e pronto, era um ser humano que comia, dormia.” Fazia tudo para o manter satisfeito: “Quando ele tinha desgostos amorosos e ia para Paris era eu que tratava das coisas. Eu era mais do que pai dele.”
Às tribulações da vida privada juntavam-se alguns desentendimentos artísticos: “ele não tinha noção da qualidade das canções”. Eu Tenho Dois Amores, adaptação de uma canção grega, suscitou enormes reservas ao cantor: “Não queria cantar os Dois Amores porque achava que lhe ia dar cabo da carreira. Ele chorou a cantar os Dois Amores. Não fiz caso do que ele disse.” Com a canção, lançada em 1980 e o maior sucesso de vendas desse ano, Marco Paulo “atingiu as culminâncias, tornou-se o maior vendedor de discos cá da terra”, diz Mário Martins: “Com arranjos feitos por mim.”
António José, que escreveu os Dois Amores, Mais e Mais Amor, Anita, na prática, quase todos os grandes sucessos de Marco Paulo, também acabaria por se afastar do cantor: “um dia qualquer, numa entrevista, o senhor Marco Paulo diz ‘não tive a sorte de nenhum grande autor ter escrito para mim’. O António José ouviu aquilo e disse ‘a partir de hoje nem mais uma linha para o Marco Paulo'”, lembra o produtor. Mas não tinha razão ao reclamar que os grandes compositores e poetas nunca escreveram para ele, que tinha uma voz extraordinária, como reconhece o próprio Mário Martins? “Queria que o Manuel Alegre fosse escrever para o Marco Paulo? Evidentemente que eu ia arranjando versões.”
E quando António José deixou de colaborar com Marco Paulo, o produtor encarregou-se das adaptações, como em Sempre que Brilha o Sol ou Maravilhoso Coração, talvez o último grande sucesso popular do cantor e a última das canções dos seus anos de ouro, entre 1977 e 1991. E uma canção que traz com ela uma história rocambolesca. Em 1989, Marco Paulo foi o representante português no Festival da OTI, realizado em Miami, com uma música escrita por Nuno Nazareth Fernandes: “eu disse-lhe ‘ó Nuno, preciso de uma canção porque vamos à OTI’ e ele disse que escrevia se eu escrevesse a letra, e assim foi.” Durante os ensaios nada correu bem: “o Marco Paulo não se deu muito bem com o Thilo Krasmann, mas ele como não era para brincadeiras meteu-o na ordem e o Marco Paulo só não desistiu porque já estava lá”, e prossegue o relato: “Nesses festivais sempre tínhamos um dia de folga. Nesse dia, decidimos todos passear pela cidade, num comboio panorâmico, e de manhã fui ter com ele ao quarto. Estava sentado em frente da televisão e nem percebia que a televisão estava avariada. Disse-lhe que íamos sair e ele não queria ir para lado nenhum, nada lhe interessava, e disse-lhe ‘mandas vir a tua refeição ou vais ao restaurante’. Estava a ouvir uma canção cantada pelo Raphael e essa canção era o Maravilhoso Coração e aquilo saiu-me espontaneamente: ‘olha que canção tão gira para tu cantares’. Resposta do Marco Paulo, sentado na cadeira: ‘o quê? Não me digas que me vais pôr a cantar uma canção daquele piroso?’ Não lhe respondi, aquilo não tinha resposta”.
Sem arrependimentos
De regresso a Portugal, Mário Martins tentou comprar os direitos da canção à Polygram. O presidente da editora, quando soube quem era o produtor, recusou vendê-la: “Se é o Mário Martins, vai ser um sucesso.” Mas a edição do original de Raphael em Portugal fracassou. “Não vendeu a ponta de um corno porque nunca teve público cá”, lembra o produtor. Apesar de ser um dos cantores espanhóis mais populares, Raphael era pouco conhecido no nosso país. Um ano depois da primeira abordagem, Mário Martins conseguiu os direitos da canção, fez a adaptação e entregou-a em bandeja de ouro para a voz de Marco Paulo. Pouco tempo depois, haveria de abandonar a Valentim de Carvalho. A relação profissional e pessoal entre os dois terminou aí.
Após a saída da Valentim de Carvalho, Mário Martins ainda trabalhou noutra editora e teve um programa na RTP, Fado Fadinho, que lhe valeu o prémio Bordalo da Casa da Imprensa, “o único prémio que recebi”. Diz que não se arrepende de nada, ao mesmo tempo que reconhece ter dado “couro e cabelo” nos quase trinta anos como funcionário da editora. Mas guarda algumas mágoas que agora, quase no final da vida, não esconde: “Na altura da renovação do contrato com o Marco Paulo, eles da administração não sabiam o que é que lhe iam oferecer. E eu disse-lhes para lhe oferecerem qualquer coisa e eles deram-lhe um piano de meia cauda, que ele tinha na sala, e em cima desse piano, numa sala forrada com os discos de ouro, tinha uma jarra com flores de plástico dentro de água.” E é verdade que Marco Paulo sempre resistiu a ser considerado uma “invenção” de Mário Martins, ou que este fosse o seu “fazedor”. Na referida entrevista à TV Guia, em fevereiro de 1986, dizia: “Pessoalmente, não concordo com as tais máquinas do artista. Tudo o que seja promovido contra o gosto das pessoas nunca pode durar eternamente, embora aconteça muita propaganda. Tentar vender um produto ao público muitas vezes não resulta. Foram duas pessoas importantes [Mário Martins e António José], continuam a sê-lo, mas penso que o chamado sucesso também se deve muito ao artista que passou longas horas lutando sozinho contra várias marés.”
Outras mágoas de Mário Martins são de saudade: “O trabalho mais a pulso que fiz foi o do Carlos Paião, que eu trabalhei mais, lutei por ele como não lutei por mais ninguém, era um ser único, com um talento extraordinário e [no início] foi só reconhecido por mim, na altura eu não tinha bem a noção da dimensão de todos estes talentos. Quando ele morreu, senti um desgosto como se fosse alguém da família.” Mário Martins vê a colaboração com o músico de Ílhavo, prematuramente desaparecido em 1988 quando tinha apenas 30 anos, como o ponto alto da carreira: “Acho que é o meu maior orgulho. Ele como ser humano tinha a mesma dimensão que artisticamente.” Todos os muitos projetos que tinha para o músico ficaram por concretizar.
Mas insiste que não se arrepende de nada. No final da conversa, pede-nos para aguardarmos enquanto vai buscar uma lista com todos os nomes com quem trabalhou: Hermínia Silva, José Cid, Frei Hermano da Câmara, António Variações (“no filme o Variações aparece como se fosse o Sylvester Stallone e eu com os meus tiques”), Lenita Gentil, Isabel Silvestre, Lara Li (“minha vizinha de Mem Martins, que apareceu na Valentim de Carvalho a cantar coisas em inglês, era meio amalucada”), o Duo Ouro Negro (“o Raul era muito talentoso, mas muito mau para trabalhar”), Isabel Silvestre, do rancho de Manhouce (“eu ia lá escolher o repertório e gravar, e era um frio, que eu saía de lá parecia o Toulouse-Lautrec, não tinha pernas abaixo do joelho”), Fafá de Belém, Nuno da Câmara Pereira, Max (“meu querido Max, não sabia nada, mal sabia escrever o nome, mas fazia umas músicas fantásticas”), Júlio Pereira, Jorge Fernando e Mísia (“não tinha boa voz, mas podia ser uma produtora musical”), entre muitos outros nomes, Toy, Ricardo Landum (“não sei como soube que eu estava doente e mandou vir cá o motorista buscar-me”). Sim, Mário Martins está vivo e, bem vistas as coisas, não tem motivos para arrependimentos.