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Há quem o ache romântico; há quem o ache foleiro; há quem o ache perturbadoramente parecido com a família Aveiro. Há quem ache muita coisa, mas, no fim, sobram os factos: Marco Paulo é um nome maior da música popular portuguesa. Qualquer residente em solo nacional com idade compreendida entre o professor Eduardo Lourenço e a filha mais nova da Carolina Patrocínio que diga que não o conhece, mente. Mente vergonhosamente.

[veja aqui uma galeria com capas de disco de Marco Paulo]

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Marco nunca foi um nome consensual, mas o tempo tem-lhe sido generoso: a era do pimba recortou-lhe uma aura de bom gosto; a ascensão do clã Carreira pôs-lhe em evidência o dom quase sobrenatural do vozeirão.

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Ele anda aqui há muito tempo e todos crescemos com ele. Eis seis canções incontornáveis de Marco Paulo e outras tantas coisas que aprendemos com elas.

“Ninguém, Ninguém” (1978)

Ensinamento: O mundo é o que é e não és tu quem vai fazer alguma coisa em relação a isso

Muitos não saberão, mas, antes de mergulhar no romantismo puro e duro, Marco andou perto da canção de intervenção. Em 1978, no lado B do single de “Canção Proibida” (outro exemplar muito estimável), estava “Ninguém, Ninguém”. Além de apresentar a velocidade verdadeiramente sobre-humana a que o nosso herói é capaz de disparar – e sempre com dicção irrepreensível – mancheias de palavras por segundo, revela-nos Marco, o conservador. Atente-se no refrão:

“Ninguém ninguém
Poderá mudar o mundo
Ninguém ninguém
É mais forte que o amor
Ninguém, ninguém, ninguém”

Certo, habita já na canção certa vocação sentimental; porém, ninguém lhe pode negar o travo político. Numa época em que a poeira da revolução ainda mal tinha assentado, é preciso admirar a coragem do posicionamento filosófico: escusam de se pôr com coisas, ninguém vai mudar o mundo. Mais o solipsismo destemido, em tempos em que tudo era cooperativa e colectividade:

“De quem fui, de quem sou, onde vou
Só eu sei mais ninguém sabe”

Pessimista, relativista, pragmático, conservador, reaccionário, chamem-lhe o que quiserem – Marco era já um homem de barba rija.

“Eu Tenho Dois Amores” (1980)

Ensinamento: Não há nada de errado com o poliamor

O hino incontornável. Já foi cantada pelos karaokes do Minho ao Algarve por mecânicos e consultores jurídicos. É difícil voltar a ouvi-la com a pureza da primeira vez, mas tentemos: que nos diz Marco nesta canção? Marco, em 1980, bota a boca no trombone para se confessar amancebado, desmascarar a sua traição, tirar do armário a vida dupla. Num país onde paira – ainda hoje – uma omertá sobre uma rede de teúdos e manteúdos, Marco Paulo assume, mais uma vez, a ruptura com o espírito do tempo. Conta tudo: a bigamia, a divisão sincera do seu coração, as duas mulheres a quem nega a verdade. Uma é loura, amor e loucura; a outra, morena, “embora mais pequena”, “muito mais mulher”. Sabes bem, Marco… E aqui começava o artista a vestir a pele de porta-voz de todo o género masculino: “tal qual um homem quer”. Ele não fala só de si, dos seus gostos particulares, de almas gémeas, coisa nenhuma; fala em nome do homem português, senão universal. Hoje, quando a poligamia continua a ser ilegal entre nós, “Eu Tenho Dois Amores” mantém toda a actualidade. O Bloco que pense nisto quando se lhe tiverem a acabar os temas fracturantes.

“Morena, Morenita” (1984)

Ensinamento: É pedir logo o B.I.

Em 1984, ano orwelliano do controlo, Marco trazia-nos este grito, uma vez mais de certo aroma conservador, para recolocar uma geração sem norte no caminho do que realmente importa na vida: o encanto primaveril duma gaiata. “Morena, Morenita”, que poderia, à primeira vista, soar a spin-off do sucesso de quatro anos antes e significar que o artista tomara, enfim, uma decisão, surpreende logo no final da primeira estrofe:

“Namorados não tem
Ninguém acredita”

Sim, a questão adensa-se: esta morena não é a mesma de “Eu Tenho Dois Amores”, a menos que seja ela antes de Marco a ter conhecido e enganado com a loura. É uma moça que anda de “flores nos cabelos / lábios de romã”, cantando “por entre os trigais / com cigarras / e pardais” – toda a evocação de um Portugal bucólico que se perdeu, num estilo que Júlio Dinis não desdenharia. Musicalmente, há teclados de feira popular galopando à rédea solta, travessos e malandrecos, sopros confundindo-se com buzinas, palminhas a compasso, enfim, todo um inebriante conjunto de arranjos. Mas é a estrofe final que mais retemos:

“Não se dá conta
do mal que já fez
namoriscando
com uns dois ou três

Se lhe perguntam
de qual gosta mais
só responde
‘Dos meus pais!'”

Ah, pois é, caro leitor. O atrevimento, a subtil evocação nabokoviana (a rima do “morenita” com “Lolita” não pode ser inocente), o “namoriscar” tão português, tão anterior à importação do flirt. Isto, senhores, é o “Garota de Ipanema” das beiras.

“Maravilhoso Coração Maravilhoso” (1991)

Ensinamento: Um homem não é os seus sentimentos

Assinalando 25 anos de carreira, Marco lança a colectânea “Maravilhoso Coração” com outros tantos temas: 24 grandes sucessos e um original que dava título ao álbum. “Maravilhoso Coração” vendeu 175 mil cópias, foi duas vezes disco de prata, três de ouro e duas de platina, um sucesso estrondoso que ditaria que, de então até hoje, todo o “Natal dos Hospitais” passasse a terminar com a visita de Marco e o playback do tema-título. A verdade é que “Maravilhoso Coração” era, com efeito, uma canção maior na obra do artista. Afastando-se da temática romântico-sensual que o celebrizara, Marco dirige-se aqui, de forma porventura inédita a nível mundial, ao seu próprio coração. Exacto. Não sei se já repararam. Não canta para uma rapariga nem para os seus camaradas de armas homens; canta para dentro dele. Para aquele órgão notável que bombeia o sangue para todo o corpo. Fala com o seu coração como quem fala com os seus botões. Recordemos as primeiras estrofes:

“Maravilhoso coração, maravilhoso
meu companheiro nos caminhos desta vida
ambos sofremos muitas horas de tristeza
mas partilhámos os momentos de alegria

Maravilhoso coração, maravilhoso
eu te agradeço a amizade e a companhia
tu és a amigo quando há dor
és confidente no amor
quero dizer-te que sem ti não existia”

Marco assume a separação corpo e mente de forma nunca antes vista, mas a filosofia que aqui lateja é, claramente, racionalista de matriz cartesiana. Eu não sou o meu corpo, eu sou a minha mente e, por isso, posso, se assim o entender, dirigir-me ao meu corpo – neste caso concreto, ao coração – como algo que me é exterior. Penso, logo existo; logo, posso agradecer ao meu coração tudo o que tem feito por mim:

“Sou tão feliz quando te sinto a palpitar
bendita a vida que me dás
e quando eu te peço mais
ficas comigo, tu não sabes recusar”

Na verdade, o coração é tratado como uma entidade tão separada do eu poético que talvez se trate de um pacemaker, mas quem sabe? No fim do dia, o que importa é que Marco continuava a romper com tudo o que até então se tinha ouvido em Portugal. “Maravilhoso Coração” é, no fundo, a serenata que um cérebro faz a um coração. Podia dado uma curta-metragem de animação linda do Tim Burton. Talvez não seja tarde de mais. É uma questão de sentar os dois artistas à mesa e pô-los a falar.

“Taras E Manias” (1991)

Ensinamento: Todo um novo arquétipo de mulher de sonho

“Maravilhoso Coração” era, musicalmente, uma grande canção. Porém, do ponto de vista da temática, fazia-nos temer o pior: estaria Marco a envelhecer? A fraquejar? A entrar já numa onda de balanço, deixando o campo da sedução para a rapaziada nova? Não. O artista, este artista pelo menos, não brinca em serviço. Aquele 1991 ainda tinha mais para dar. Sim, era novo ano vintage de Marco, como o velhinho 78. Na forja, estava preparado o single com que partiria tudo: “Taras e Manias”. Pois é. Você sabe do que estou a falar. Aquele começo delicodoce enganador, mostrando, pela enésima vez, como Marco a sabia toda:

“Quando
você vem com essa cara
de menina levada
para a brincadeira…

Dá-me
um arrepio na pele
sinto água na boca
para ficar com você”

Para depois revelar a sua verdadeira face como tema mais erótico do nacional-cançonetismo, “Nove Semanas e Meia” da rádio FM, kama sutra áudio para a cintura industrial.

“E mexe, remexe, se encosta, se enrosca
Se abre, se mostra pra mim
Me agarra, me morde, me arranha,
Não mude que eu quero você sempre assim”

Sim, foi com “Taras e Manias” que Marco Paulo atingiu o indisputado estatuto de cantor da classe masculina nacional em idade viril. Fez-se Tom Jones do Alto Alentejo, Barry White branco da Europa do Sul.

“Você não tem um pingo de vergonha
e todo homem sonha
Ter alguém assim

(…)

Uma lady na mesa
Uma louca na cama”

Nunca mais a nossa ideia de mulher de sonho foi a mesma. E nunca – leiam os meus lábios: nunca – apareceu escritor, de maior ou menor gabarito, que explicasse melhor esta síntese.

“Amante, Irmão, Amigo” (1993)

Ensinamento: Mim Tarzan, tu Jane, e não há cá friendly zones para ninguém

Está tudo por fazer na exegese marcopauliana. Um estudo sério da obra do artista de Mourão não se compadece com as contingências de tempo e de espaço deste artigo, que nos obrigam a mutilar os poemas, apresentando somente os excertos mais simbólicos, e a deixar de fora longos períodos da carreira. A fase mais religiosa, por exemplo, de que “Nossa Senhora” (2001) é emblema maior e que marcou todo o Marco Paulo do século XXI. Mas falta também o tempo para analisar, em detalhe, a possível intertextualidade das canções. Lá está: pode a “Morena, Morenita” ser a morena, embora mais pequena, muito mais mulher, de “Eu Tenho Dois Amores”? Ou será a “Anita” (1982) da canção homónima? Note-se que a primeira usa…

“Blusa de linho
Para se enfeitar”

E que a segunda era, como sabe de cor muito cidadão dos seus 35 anos para cima…

“Linda de blue jeans
E blusão de cetim”

Vestiam, pois, de forma diversa. Porém, tinham uma semelhança perturbadora. A morena, como já vimos…

“Namorados não tem
Ninguém acredita”

E a Anita…

“Não, namoros não tem
Perde o tempo a estudar”

Já agora, uma ressalva para este último reverso, revelando um Marco ainda mais subversivo do que o habitual, desaconselhando abertamente o caminho da instrução e assim roçando, dir-se-á, a anarquia. E há ainda “Joana” (1988), a cujo casamento Marco assiste num poema particularmente visual:

Um véu de brancura se arrastou
Junto do altar ali ficou
Tu nem sabes bem quando eu te quis
Com outro vais ser mais feliz
Aqui fiquei a recordar
A-ar… A-ar…”

Nada sabemos, porém, do seu aspecto físico. Tão só que, em tempos, fora “menina e tão mulher”, aqui fazendo ressoar quer a morena “morenita”, quer a de “Eu Tenho Dois Amores”, quiçá elas próprias uma só e mesma morena.

Mas fechemos esta nossa breve reflexão. E que canção trazemos à liça para o último ensinamento? “Amante, Irmão Amigo”, single extraído do LP “Amor Total”, de 1993. Se não falha a memória a este vosso servo, foi censurada na Rádio Renascença, atestado final, dúvidas houvesse, do pendor agitador de Marco. Rezava assim (“no pun intended”) o refrão:

“É o teu corpo que eu procuro
Na minha cama
Estás a fugir de quem te ama
O destino está traçado
Será cumprido
Serei teu amante, irmão, amigo”

Ah, soubéssemos nós disto no 5º ano e a história com a Arlete teria sido diferente… Marco, o viril, Marco e aquela cabeleira de Hércules, Marco, o tribuno com quem aprendemos o lugar do homem no mundo, acabava de cruzar a fronteira final. Sim, um homem e uma mulher amigos podiam envolver-se romanticamente. Nada obstava. Não era proibido. Não era pecado. Não havia cá friendly zones para ninguém, não senhor. “O destino está traçado”, diz, claramente. E “será” – sintam a firmeza do futuro perfeito – “será cumprido”. E não há cá mais conversa. E não me falem na insinuação de incesto que é, claramente, uma metáfora. Sim, porque nós, machos, também temos sensibilidade para usar metáforas, OK? Uma, duas metáforas. Máximo.

E por aqui ficamos. Marco Paulo – para as senhoras, o eterno romântico; para os homens, o mestre a quem nunca agradecemos devidamente. Fica aqui dito, Marco: obrigado. Venham muito mais aniversários (e bailaricos e karaokes).

[Marco Paulo actua este sábado, 12 de março, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e a 24 na Arena de Portimão]

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida”, “O Capitão Desconhecido”, integrou as equipas responsáveis por “Equador” ou “5 para a Meia-noite”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal) e de “Histórias Secretas de Reis Portugueses” e “As Vitórias Impossíveis na História de Portugal” (Casa das Letras).