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Marko Rupnik, o padre-celebridade acusado de abusar de mais de 20 mulheres — e que o Papa quer investigar

Artista plástico com obras em Fátima, Lourdes e Vaticano é uma celebridade eclesiástica. Terá abusado de mais de 20 mulheres. Agora o Papa interveio para suspender a prescrição e permitir o inquérito.

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Anna tinha 21 anos quando conheceu Marko Rupnik. Em 1985, o padre esloveno era já uma estrela em ascensão na Igreja Católica europeia. Teólogo e artista plástico, o jovem padre Rupnik, de 31 anos, era admirado por muitos jovens pelo seu “carisma ao explicar o evangelho”, como recordaria vários anos mais tarde Anna — uma das primeiras vítimas do padre-celebridade esloveno que agora está no centro de um escândalo no qual o Papa Francisco interveio pessoalmente para levantar o prazo de prescrição dos crimes e permitir uma investigação —, entrevistada sob aquele nome fictício pelo jornal italiano Domani.

Naquele ano, Anna frequentava o curso de medicina e acalentava o sonho de se tornar missionária: foi, aliás, esse sonho que levou a jovem italiana a procurar aprofundar a fé católica. “Eu era também uma apaixonada pela arte e uma freira que eu conhecia apresentou-me este pintor jesuíta que tinha um pequeno estúdio na Piazza del Gesù, em Roma”, contou Anna ao Domani. “Rupnik tinha mais dez anos do que eu e estava no seu primeiro ano de sacerdócio. Senti-me à vontade com ele e rapidamente tornou-se o meu diretor espiritual.”

Fascinada pela pintura, Anna começou a frequentar o estúdio de Rupnik, tal como vários outros jovens que gradualmente foram constituindo o grupo de influência que gravitava em torno do artista esloveno. “Sentia-me importante para ele. Gostava das pinturas dele e conversávamos frequentemente enquanto ele pintava”, lembrou Anna. “Até que ele começou a colocar ênfase no contacto entre nós, a dizer-me que cada gesto tinha um significado preciso: um simples aperto de mão ou toque no braço era uma oportunidade para sublinhar a minha feminilidade. Não era capaz de imaginar que isto já era uma estratégia para vir a ter um tipo de relação física muito diferente comigo, tal como não conseguia perceber que o abraço depois de cada confissão era um convite a ir mais longe.”

Gradualmente, a sexualidade tornou-se um tema comum nas conversas entre Rupnik e Anna. O padre falava-lhe de como “os corpos desenhados nos quadros do ‘Kama Sutra’ são uma forma de arte”, mas Anna relativizou sempre as conversas do sacerdote. “Às vezes, parecia-me estranho, mas assumia que era por ele ser artista.”

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"Ele beijou-me levemente na boca e disse-me que era assim que beijava o altar quando celebrava a eucaristia."
Anna (nome fictício), que relata ter sido vítima de Rupnik

Até que, certo dia, a relação mudou de contornos. “Ele queria que eu fosse modelo dele e uma vez pediu-me para posar para uma das suas pinturas, porque queria desenhar a clavícula de Jesus e não estava à procura de raparigas ‘mundanas’, que na opinião dele só expressavam sexualidade, mas procurava alguém como eu”, recordou Anna. “Não foi difícil aceitar e desapertar alguns botões da minha blusa. Para mim, que era ingénua e inexperiente, significava apenas ajudar um amigo. Nessa ocasião, ele beijou-me levemente na boca e disse-me que era assim que beijava o altar quando celebrava a eucaristia.”

Anna ficou confusa, quis fugir. Foi Rupnik quem a encorajou a ficar e a entregar-se. “Dizia-me que eu podia experienciar aquela realidade porque era especial e era um dom que o Senhor nos tinha dado apenas a nós. Que só comigo ele conseguia experienciar, mesmo fisicamente, a pertença a Deus sem possessão, em liberdade, à imagem do amor trinitário.”

“Se falares, vou fazer-te parecer uma lunática”

A jovem cedeu. Segundo a prática jesuíta, é-se chamado a uma “disponibilidade e abertura total” ao diretor espiritual, que guia o crente “no entendimento do que é bom e do que é mau”. Desobedecer ao orientador espiritual é desobedecer a Deus — e Rupnik usaria esse ascendente para abusar não só de Anna como de dezenas de outras jovens. “Eu tinha medo de cometer erros, de perder a aprovação dele”, contou Anna. “Sentia-me extremamente dependente do julgamento dele.” Se Anna recusasse algum avanço, a resposta era a humilhação espiritual, frequentemente em frente a outros membros do grupo de jovens que se reunia em torno do artista.

Em algumas ocasiões, perante uma recusa de Anna, Rupnik enfureceu-se, levando a jovem ao desespero. “Eu estava totalmente dependente da aprovação dele”, contou, explicando que, a dada altura, passou a sentir-se completamente controlada por Rupnik. “Era um total abuso de consciência. A obsessão sexual dele não era extemporânea, mas profundamente enraizada na sua conceção de arte e no seu pensamento teológico.” Segundo Anna, o padre esloveno usava frequentemente textos bíblicos para enquadrar “jogos eróticos” — que ocorriam habitualmente enquanto o sacerdote pintava, depois da missa ou depois da confissão.

Foi sob a influência do padre Marko Rupnik que, em 1987, “num momento tão delicado e frágil quando estava a escolher um caminho para a vida”, Anna entrou numa comunidade religiosa em Mengeš, na Eslovénia. Rupnik era o patrono daquela comunidade religiosa das irmãs de Loyola, uma espécie de representante do arcebispo de Ljubljana, Alojzij Šuštar, junto do convento — que era terreno fértil para os atos sexuais do padre artista. “O padre Marko pediu-me para deixar os estudos de medicina e para ir para a Eslovénia com a superiora, Ivanka Hosta, e outras seis irmãs”, lembrou Anna. “Isolada da minha família e dos meus amigos, foi mais fácil para Marko manipular-me à sua vontade.”

Anna aceitou. No dia 1 de janeiro de 1988 fez os primeiros votos na comunidade — e desde que se tornou freira os abusos por parte de Rupnik aumentaram de intensidade. “Ele tornou-se mais agressivo”, contou. “Lembro-me de uma masturbação muito violenta, que fui incapaz de parar e durante a qual perdi a virgindade. Foi um episódio que deu início aos pedidos insistentes para sexo oral. A dinâmica era sempre a mesma: se eu tivesse dúvidas ou recusasse, Rupnik desacreditava-me em frente da comunidade, dizendo que eu não estava a crescer espiritualmente. Não tinha limites, usava todos os meios para atingir o objetivo, incluindo confidências ouvidas em confissão. Foi aí que começou o meu colapso psicológico.”

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Marko Rupnik é um dos artistas plásticos mais reputados do universo católico

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Os abusos ocorriam não apenas no convento de Mengeš, mas também em Roma, no Centro Aletti, um instituto de arte, teologia e cultura que Rupnik fundou em Roma na década de 1990, sob o patrocínio do Vaticano. “O padre Marko pedia-me fazer fazer sexo a três com outra freira da comunidade, porque a sexualidade tinha de ser, na opinião dele, livre do sentimento de posse, à imagem da Trindade, em que, dizia ele, ‘a terceira pessoa acolhe a relação entre as duas’”, lembrou Anna. “Nessas ocasiões, ele pedia-me para viver a minha feminilidade de modo agressivo e dominante e, como eu não o conseguia fazer, humilhava-me profundamente, com frases que não consigo repetir.”

“O passo final nesta descida aos infernos foi o avanço das justificações teológicas para o sexo para uma relação exclusivamente pornográfica”, relatou Anna, hoje com 58 anos. “Em 1992, quando estava no quarto ano de Filosofia na Universidade Gregoriana [em Roma], levou-me duas vezes a ver filmes pornográficos em Roma, na Via Tuscolana e perto da estação de Termini. Nessa altura, eu sentia-me terrivelmente.”

Anna não terá sido a única vítima. Só no convento de Mengeš, onde no início da década de 1990 viviam 41 irmãs, Rupnik terá abusado de perto de 20, diz Anna, que a certa altura chegou a ameaçar o padre com uma queixa à hierarquia eclesiástica. “Mas ele respondeu: ‘Quem iria acreditar em ti? É a tua palavra contra a minha. Se falares, vou fazer-te parecer uma lunática.’” Em desespero, Anna tentou matar-se: “Fugi da comunidade para me deixar morrer na floresta. Esperava que este ato extremo levasse o padre Marko à razão.” Anna sobreviveu — mas, entretanto, outra irmã apresentou queixa de Rupnik, o que levou a um afastamento temporário do sacerdote do convento durante um verão.

"O padre Marko era protegido por toda a gente e eu não era mais do que um bode expiatório de uma situação embaraçosa, o elo mais fraco de uma cadeia que podia ser sacrificado por um bem maior."
Anna (nome fictício), que relata ter sido vítima de Rupnik

Na sequência desse afastamento temporário, Anna ganhou coragem para denunciar o caso. Tentou denunciá-lo à superiora do convento, Ivanka Hosta, e ao diretor espiritual de Rupnik, o padre Tomáš Špidlík (que viria, mais tarde, a ser elevado a cardeal), mas não só não recebeu qualquer apoio como foi incentivada a abandonar a vida religiosa. “O padre Marko era protegido por toda a gente e eu não era mais do que um bode expiatório de uma situação embaraçosa, o elo mais fraco de uma cadeia que podia ser sacrificado por um bem maior”, lembrou Anna, que a partir de 1993 começou a sentir um “clima de hostilidade” dentro do convento — até que outra irmã lhe confidenciou, em lágrimas, que também tinha sofrido abusos.

A hierarquia procurou resolver o escândalo que começava a formar-se no convento de modo discreto, através de uma reunião entre Rupnik, Hosta e o arcebispo de Ljubljana para “lidar com o assunto”. Como consequência, Rupnik foi discretamente “distanciado da comunidade e regressou a Roma”, onde continuou tranquilamente a sua carreira artística. Anna, por seu turno, foi colocada na cozinha do convento — até decidir abandonar a vida eclesiástica definitivamente. Durante anos, sofreu de uma depressão profunda, que a impossibilitou de “ter uma relação emocional e construir uma família”.

“Um ‘padrão’ de abuso sexual, psicológico, espiritual e de consciência”

Durante cerca de 30 anos, todas estas histórias foram mantidas em segredo pela hierarquia eclesiástica. Nesse período, Marko Rupnik consolidou a sua reputação como artista plástico e como teólogo, concebendo inúmeras obras de arte para importantes igrejas e santuários de todo o mundo. Além de ter várias obras no Vaticano, Marko Rupnik é também o autor de célebres painéis existentes, por exemplo, no Santuário de Lourdes — e foi ele quem produziu o enorme painel dourado que ornamenta a Basílica da Santíssima Trindade no Santuário de Fátima, na qual os bispos portugueses celebraram recentemente uma missa de homenagem às vítimas dos abusos sexuais na Igreja. Além disso, Rupnik foi convidado a pregar o retiro quaresmal da Cúria Romana em 2020, destinado aos padres que trabalham no Vaticano, aos oficiais da Cúria e ao próprio Papa Francisco.

Questão dos abusos não afetou "significativamente" procura dos seminários — Comissão Episcopal

O enorme painel dourado que ornamenta a basílica da Santíssima Trindade, em Fátima, é da autoria de Marko Rupnik

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O castelo de cartas de Rupnik começou a ruir em dezembro de 2022, quando vários blogues italianos começaram a divulgar que o padre esloveno estava a ser alvo de investigações internas da Igreja por ter abusado sexualmente, psicologicamente e espiritualmente de várias freiras da comunidade de Loyola. Devido ao estatuto de celebridade de Marko Rupnik, o caso abalou a Igreja Católica, colocou em causa a liderança da Companhia de Jesus — a ordem religiosa de que o próprio Papa Francisco faz parte — e precipitou comunicados, conferências de imprensa e investigações jornalísticas que, ao longo dos últimos meses, têm vindo a revelar gradualmente a complexa teia de abusos em que Rupnik terá estado envolvido durante décadas.

Um dia depois de a primeira informação sobre os abusos de Rupnik ter surgido nos blogues italianos, a Companhia de Jesus divulgou um comunicado no qual reconheceu a existência de uma queixa contra o sacerdote em 2021. No entanto, quando os dados sobre a denúncia foram enviados para o Vaticano, o Dicastério para a Doutrina da Fé tinha dito que seria impossível avançar com a investigação, já que os crimes em questão se encontravam prescritos.

Quando o escândalo em torno do padre-celebridade eclodiu, o superior geral dos jesuítas, o venezuelano Arturo Sosa, preparava-se para uma viagem a Portugal, para visitar as obras da Companhia de Jesus no país. Foi em Lisboa que Arturo Sosa se pronunciou pela primeira vez em público sobre o caso, numa breve entrevista conjunta à Rádio Renascença e ao jornal 7Margens. Nessa entrevista, Arturo Sosa defendeu que os jesuítas não tinham ocultado nada: “Uma das coisas a que todos temos direito como pessoas é uma certa privacidade: há que fazer declarações públicas quando é público; quando não é público, não há nada para o fazer e isso não significa ocultar. Nós não ocultámos nada.”

O superior geral dos jesuítas sublinhou, por outro lado, que não havia “menores envolvidos”, tratando-se apenas “de questões entre adultos”.

Arturo Sosa deu, nessa ocasião, os primeiros detalhes sobre a investigação que estava em causa. Segundo o superior geral dos jesuítas, a denúncia tinha chegado diretamente ao Vaticano, que pediu à Companhia de Jesus que elaborasse uma investigação mais aprofundada. Para a fazer “do modo mais transparente possível”, os jesuítas procuraram “investigadores que não fossem da Companhia de Jesus”, que elaboraram um relatório final, entregue ao Vaticano. “Esperámos bastante tempo até que recebemos a notícia da Congregação de que tinha estudado o caso e a investigação e que tratava do que tinha sucedido há 30 anos e que, segundo o direito, estava prescrito. Essa é a parte canónica.”

Ao mesmo tempo, assim que recebeu do Vaticano a indicação para investigar o padre Rupnik, a Companhia de Jesus implementou um conjunto de medidas. Segundo Arturo Sosa, o sacerdote “foi proibido de confessar, dirigir exercícios espirituais, fazer direção espiritual e fazer alguma declaração pública, ensino e qualquer atividade desse tipo que tinha que ser autorizada pelo seu superior local”. Essas medidas foram mantidas mesmo depois de o Vaticano ter declarado o caso prescrito, explicou Sosa, argumentando que a Companhia de Jesus pretendia “ir mais além no assunto”, para “ver como se ajuda todos os que estão envolvidos”.

Poucos dias depois das primeiras notícias, voltaram a surgir novos dados na imprensa italiana, que adensaram ainda mais a história: além das denúncias relativas aos alegados abusos cometidos na década de 1990, Marko Rupnik também teria sido excomungado em 2019 depois de ter sido acusado de absolver em confissão uma mulher com quem tinha tido relações sexuais, um delito grave que a Igreja Católica pune com a excomunhão automática. A excomunhão tinha, depois, sido levantada devido a Rupnik ter mostrado arrependimento pelo ato.

"Esperámos bastante tempo até que recebemos a notícia da Congregação de que tinha estudado o caso e a investigação e que tratava do que tinha sucedido há 30 anos e que, segundo o direito, estava prescrito. Essa é a parte canónica."
Arturo Sosa, superior geral da Companhia de Jesus

Só quando já tinham passado duas semanas desde a primeira notícia pública sobre os crimes de Rupnik é que o superior dos jesuítas admitiu, numa conferência de imprensa, a excomunhão de Rupnik, em 2019 — e posterior levantamento devido ao arrependimento.

Naqueles intensos dias de dezembro de 2022, o Vaticano foi também pressionado pelos meios de comunicação a explicar porque não iria investigar o sacerdote, um nome célebre nos meios eclesiásticos, por vezes considerado o “artista oficial do Vaticano” devido à quantidade de obras de arte da sua autoria em catedrais e igrejas de todo o mundo, incluindo no Palácio Apostólico. Inicialmente, o Vaticano limitou-se a encaminhar as perguntas dos jornalistas para a Companhia de Jesus, que já havia explicado que tinha sido o próprio Vaticano a determinar que os crimes descritos nas denúncias já se encontravam prescritos.

Perante o intensificar do caso na opinião pública, em dezembro de 2022, a Companhia de Jesus decidiu abrir uma nova investigação sobre o passado de Marko Rupnik e fazer um apelo público a qualquer vítima para que partilhasse a sua história. Em resposta, a investigação dos jesuítas recebeu 15 testemunhos — 14 mulheres e um homem. Eram já várias as antigas freiras da comunidade de Loyola que alegavam ter sido vítimas de Rupnik.

Ao mesmo tempo, em janeiro de 2023, a diocese de Roma abriu uma investigação paralela sobre os alegados crimes de Rupnik em Roma, já que havia várias denúncias que apontavam para abusos praticados no Centro Aletti. Tudo enquanto os bispos da Eslovénia se posicionavam do lado das vítimas, apelando a qualquer pessoa com conhecimento sobre os crimes de Rupnik que testemunhasse: “Acreditamos na sinceridade das irmãs e outras vítimas que falaram sobre o seu sofrimento e outras circunstâncias de abuso emocional, sexual e espiritual pelo nosso irmão. Pedimos, com sinceridade, perdão a todos.”

Na sequência das novas denúncias, a Companhia de Jesus aplicou novas medidas restritivas a Rupnik. Além da proibição do exercício público do ministério sacerdotal, a que já estava obrigado desde que o Vaticano tinha pedido aos jesuítas a primeira investigação, Rupnik foi também proibido de fazer comunicações públicas, de se deslocar para fora da região de Roma e de levar a cabo a sua atividade artística em público. Contudo, além de não cooperar com a investigação, Rupnik também não cumpriu as novas restrições, viajando para realizar trabalhos artísticos em pelo menos duas ocasiões, para a Bósnia e para a Croácia.

Em junho de 2022, no contexto da investigação interna dos jesuítas, que dizem ter encontrado indícios credíveis dos crimes cometidos pelo padre esloveno, Marko Rupnik foi formalmente expulso da Companhia de Jesus devido à sua “teimosia em recusar cumprir o voto de obediência” — uma decisão de que Rupnik não recorreu. Segundo a Companhia de Jesus, os relatos das vítimas “eram credíveis e confirmaram um ‘padrão’ de abuso sexual, psicológico, espiritual e de consciência”. Apesar de ter saído da Companhia de Jesus, Marko Rupnik continuou a ser um padre — embora não tenha ficado imediatamente claro se alguma diocese poderia recebê-lo ou se haveria algum processo canónico em curso contra ele.

O “Me Too” da Igreja Católica

A expulsão de Rupnik da Companhia de Jesus abriu, contudo, uma nova guerra nas fileiras da Igreja Católica. São muitas as questões que ainda não têm resposta em relação ao modo como a hierarquia da Igreja, no passado, lidou com as queixas contra o esloveno. Na entrevista ao jornal Domani, a antiga freira italiana Anna garantiu que “não é possível” que a hierarquia eclesiástica não soubesse dos crimes de Rupnik. “A Igreja e a Companhia de Jesus sabem dos factos desde 1994, quando eu levei pessoalmente o meu pedido de dispensa dos votos ao arcebispo de Ljubljana, na qual denunciei o abuso do padre Rupnik”, disse. “Outra irmã, que deixou a comunidade de Loyola em 1996, não diretamente envolvida na relação com o padre Marko mas informada dos factos, falou em 1998 com o padre Francisco J. Egaña, que na altura era o delegado das casas internacionais da Companhia de Jesus em Roma. Ele ouviu-a, mas não fez nada.”

Ao longo dos meses que se seguiram, o caso Rupnik — frequentemente descrito como o “Me Too” da Igreja Católica — ganhou contornos globais. No final de março, por exemplo, o bispo francês Jean-Marc Micas, responsável pelo Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, um dos mais famosos santuários marianos do mundo, disse estar a ponderar a remoção dos painéis de mosaico da autoria de Marko Rupnik da fachada da basílica principal do santuário. Em Portugal, os bispos portugueses celebraram em abril uma missa de perdão pelos abusos sexuais de menores — e a celebração, inicialmente aplaudida, acabou por atrair alguma polémica por ter sido realizada na basílica da Santíssima Trindade, em Fátima, cujo presbitério é adornado por um enorme painel de mosaicos dourados da autoria de Rupnik.

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Marko Rupnik com os seus assistentes durante a produção de um conjunto de painéis de mosaico para a basílica de Nossa Senhora do Rosário, em Lourdes

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A somar-se a toda a controvérsia, veio também a público que entre as novas denúncias chegadas à Companhia de Jesus haveria, pelo menos, um caso que envolvia uma relação iniciada quando a vítima ainda seria menor de idade — algo que não chegou a ser confirmado.

Em sentido contrário, os responsáveis do Centro Aletti apoiaram Rupnik. Maria Campatelli, teóloga italiana que é uma das principais figuras do centro de teologia e cultura fundado por Rupnik, veio a público logo em junho deste ano para dizer que a Companhia de Jesus tinha embarcado numa “campanha mediática baseada em acusações difamatórias e não comprovadas” contra o sacerdote esloveno. Mais tarde, já em meados de setembro, o Papa Francisco recebeu Maria Campatelli em audiência privada no Vaticano — o que causou grande desconforto entre as vítimas de Rupnik.

Três dias depois dessa audiência privada, a 18 de setembro, o Vaticano lançou ainda mais gasolina para a fogueira, quando a diocese de Roma publicou um comunicado com as conclusões da investigação paralela que lançara no início do ano devido às suspeitas de abusos no Centro Aletti. Nesse comunicado, altamente elogioso do centro fundado por Rupnik, a diocese de Roma diz que a sua investigação interna revelou que, “dentro do Centro Aletti, está presente uma vida comunitária saudável, livre de quaisquer assuntos críticos particulares”.

A diocese diz ainda que o padre Giacomo Incitti, que conduziu o inquérito, “pôde constatar que os membros do Centro Aletti, embora entristecidos pelas denúncias e pelo modo como foram tratadas, optaram por manter o silêncio — apesar da veemência dos media — para guardarem os seus corações e não reivindicarem qualquer superioridade para atuar como juízes dos outros”. Segundo o comunicado da diocese de Roma, o desenrolar do caso Rupnik “ajudou as pessoas que vivem a experiência do Centro Aletti a reforçar a sua fé no Senhor, na consciência de que o dom da vida em Deus abre espaço para se desenvolver também nos momentos de provação”.

O inquérito levado a cabo pela diocese de Roma também se centrou nas próprias acusações contra Rupnik, “especialmente na que levou ao pedido de excomunhão”. De acordo com o comunicado, a investigação encontrou “procedimentos gravemente anómalos cujo exame gerou dúvidas fundamentadas sobre o próprio pedido de excomunhão”.

O comunicado da diocese de Roma foi amplamente interpretado como uma forma de branquear os crimes de Rupnik, especialmente por se ter centrado nos elogios ao Centro Aletti e nas dúvidas sobre a legitimidade do pedido de excomunhão — e deixado de fora os relatos dos abusos. A nota emitida por Roma foi também lida à luz do que já tinha sido dito em janeiro de 2023 pelo cardeal italiano Angelo De Donatis, vigário-geral do Papa Francisco para a diocese de Roma (no fundo, o bispo que lidera efetivamente a diocese de Roma, cujo titular é o próprio Papa), quando lançou o inquérito ao Centro Aletti: “Nós, os ministros de Cristo, não podemos estar menos comprometidos com o devido processo legal, nem ser menos caridosos, do que um estado secular, transformando automaticamente uma acusação num crime.”

O modo como o cardeal Angelo De Donatis desvalorizou o caso Rupnik foi interpretado como um dos motivos pelos quais, em janeiro de 2023, o Papa Francisco retirou uma boa parte dos poderes ao cargo de vigário-geral para a diocese de Roma, centralizando em si próprio esses poderes, tornando o vigário num “auxiliar” e determinando que nenhuma decisão importante sobre a diocese de Roma poderia ser tomada sem o aval papal. Antes, Francisco e De Donatis já se tinham desentendido em público sobre o fecho de igrejas em Roma durante a pandemia da Covid-19.

No final de setembro, a tensão em torno do caso Rupnik aumentou consideravelmente devido à audiência papal de Maria Campatelli e ao comunicado da diocese de Roma. Em reação ao que foi interpretado como um branqueamento dos crimes de Rupnik, um conjunto de cinco alegadas vítimas escreveu uma carta aberta a acusar o Vaticano de não levar a sério a sua promessa de tolerância zero em relação aos crimes sexuais. A promessa, disseram as signatárias, é uma mera “campanha de relações públicas, seguida apenas por ações frequentemente discretas, que acabam por apoiar e encobrir os autores dos abusos”.

A audiência papal e o comunicado da diocese de Roma deixaram as signatárias “sem palavras” e demonstraram que “a Igreja não está, de todo, interessada nas vítimas nem naqueles que pedem justiça”. Segundo as cinco mulheres que assinaram a carta, a declaração da diocese de Roma “ridiculariza não apenas a dor das vítimas, mas também de toda a Igreja, que está mortalmente ferida por uma arrogância tão obstinada”. As vítimas, diz a carta, foram novamente deixadas sem voz.

Durante vários meses, reinou a incerteza sobre o caso Rupnik. Sobre os casos de abuso sexual alegadamente cometidos contra as freiras da comunidade de Loyola na Eslovénia, mantinha-se apenas o pronunciamento do Vaticano de 2021, segundo o qual os crimes estavam prescritos e, por isso, não podiam ser investigados. Relativamente à excomunhão decretada em 2019 e posteriormente levantada, havia informações contraditórias: a Companhia de Jesus tinha confirmado a situação, mas a diocese de Roma falava em “procedimentos gravemente anómalos”. E, mais confuso ainda, o sacerdote tinha sido expulso da Companhia de Jesus, mas continuava a ser padre — só não se sabia bem a quem respondia agora.

No final de outubro, porém, soube-se que, afinal, Rupnik tinha sido integrado no clero da diocese eslovena de Koper, onde fica a cidade de Zadlog, onde nasceu.

"O Santo Padre pediu ao Dicastério para a Doutrina da Fé que revisse o caso e decidiu levantar a prescrição para permitir que seja levado a cabo um processo."
Comunicado da Santa Sé

Segundo um comunicado enviado pela diocese à Agência de Informação Católica, Rupnik foi formalmente incardinado em agosto, na sequência de um pedido enviado pelo próprio após a desvinculação da Companhia de Jesus. O pedido foi aceite com base no facto de “nenhuma sentença judicial ter sido aplicada a Rupnik”, lê-se na nota, na qual é também citada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em que é garantido “o direito a ser presumido inocente até prova em contrário”. Até lá, diz a diocese de Koper, “ele tem todos os direitos e deveres dos padres diocesanos”.

Como nota a mesma agência, o tratamento dado a Rupnik contrasta significativamente com o que foi dado à irmã Ivanka Hosta, a cofundadora e antiga superiora da comunidade de Loyola, onde uma grande parte dos abusos terão ocorrido. Em junho deste ano, Hosta foi retirada da liderança da comunidade religiosa, proibida de contactar com as atuais e antigas freiras durante três anos e obrigada a fazer peregrinações mensais para rezar pelas vítimas de Rupnik. Segundo o 7Margens, Hosta foi colocada num mosteiro em Braga enquanto espera pela conclusão das investigações.

A intervenção do Papa: prescrição suspensa para permitir processo

Mais recentemente, o caso Rupnik conheceu uma nova reviravolta: uma intervenção direta do Papa Francisco, que decidiu no final de outubro levantar o prazo de prescrição para permitir que seja feita uma investigação canónica em relação às denúncias apresentadas pelas cerca de duas dezenas de mulheres que acusam Rupnik de abuso sexual.

“Em setembro, a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores informou o Papa de que havia graves problemas no modo como se lidou com o caso do padre Marko Rupnik e na falta de proximidade às vítimas”, lê-se num comunicado divulgado pela Santa Sé no dia 27 de outubro. “Como consequência, o Santo Padre pediu ao Dicastério para a Doutrina da Fé que revisse o caso e decidiu levantar a prescrição para permitir que seja levado a cabo um processo.”

“O Papa está firmemente convencido de que se a Igreja deve aprender algo com o sínodo é a escutar com atenção e compaixão quem está a sofrer, especialmente aqueles que se sentem marginalizados pela Igreja”, acrescenta o comunicado.

O Papa Francisco, também ele um jesuíta, já tinha falado publicamente sobre o caso Rupnik uma vez, durante uma entrevista à Associated Press em janeiro deste ano. “Para mim, foi uma surpresa, realmente. Uma pessoa, um artista deste nível. Para mim, foi uma grande surpresa e uma mágoa”, disse o Papa Francisco, que na mesma entrevista assegurou que não tinha tido qualquer intervenção direta no caso Rupnik — apesar da especulação em torno da rapidez com que a excomunhão do esloveno, em 2019, tinha sido revertida.

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A basílica de Nossa Senhora do Rosário, em Lourdes, inclui uma das obras mais emblemáticas de Rupnik

AFP via Getty Images

À Associated Press, o Papa Francisco garantiu que a única intervenção que teve no caso foi apenas para garantir que as denúncias apresentadas numa segunda fase seriam analisadas pelo mesmo tribunal que as apresentadas na primeira fase, para evitar uma duplicação do processo. Quanto à excomunhão e subsequente reversão, o Papa garantiu: “Não tive nada a ver com isso.”

O Papa foi também questionado sobre porque é que o Vaticano não tinha levantado o prazo de prescrição, algo que está sempre nas mãos do Dicastério para a Doutrina da Fé quando estão em causa crimes contra menores ou os crimes mais graves, reservados ao julgamento pela Santa Sé. Francisco reconheceu que no caso dos crimes contra menores ou adultos vulneráveis a regra é derrogar o prazo de prescrição, mas nos restantes casos são seguidos os prazos habituais. Dez meses depois desta entrevista, porém, Francisco decidiu intervir diretamente no caso para derrogar o prazo de prescrição, levantando dúvidas: o que aconteceu para que não o tenha feito antes?

Em Itália, por exemplo, o coletivo “Italy Church Too”, que reúne várias organizações que combatem o abuso sexual de menores no contexto da Igreja, demorou poucos dias a reagir à decisão do Papa para sublinhar que o levantamento do prazo de prescrição era a “condição sine qua non para esclarecer as responsabilidades de Rupnik e fazer justiça às vítimas”. Contudo, apesar de reconhecerem na intervenção do Papa uma “luz de esperança”, as organizações lembraram que “as palavras não são suficientes”.

No entender do “Italy Church Too”, em declarações citadas pelo 7Margens, a decisão de levantamento do prazo de prescrição deve ser “rapidamente transformada na realidade de um processo canónico”, durante o qual devem ser feitas comunicações claras às vítimas e ao público, “em nome de uma transparência real e efetiva que permita o apuramento da verdade”. Para o movimento, “o processo canónico de Rupnik, a cuja instrução o Papa se comprometeu, não se pode transformar num processo das vítimas”, devendo a sua “credibilidade como mulheres adultas” ser “respeitada e protegida”. As vítimas, diz o grupo, “devem poder recorrer a advogados da sua escolha; devem ser devidamente informadas sobre os procedimentos e diretamente envolvidas; caso contrário, apenas reviverão um novo abuso”.

“Só se estes requisitos mínimos forem cumpridos é que se poderá pensar que a Igreja institucional está verdadeiramente no limiar de uma nova e mais concreta forma de lidar com os abusos, prestando verdade e justiça às vítimas e processando os responsáveis, sem mais proteções e encobrimentos”, diz ainda o movimento.

E agora?

Nos meios eclesiásticos, a grande pergunta é: e agora? Marko Rupnik, que durante anos consolidou a sua reputação de padre-celebridade como artista plástico, teólogo e pregador, continua a ter um lugar como sacerdote na diocese eslovena de Koper, mas a proteção de que terá beneficiado ao longo dos últimos meses devido à sua grande influência na cúpula eclesiástica chegou ao fim.

Recentemente, o portal católico americano The Pillar procurou responder à questão, assinalando que há várias perguntas em aberto. Em primeiro lugar, quais as acusações que Rupnik vai enfrentar? E depois: quem as vai investigar? O Vaticano? A Companhia de Jesus? Ou a diocese de Koper?

Segundo o The Pillar, a teoria dita que o primeiro passo de qualquer investigação canónica seria um inquérito preliminar “para estabelecer se existe uma verosimilhança mínima nas alegações para que se justifique um processo jurídico completo”. Neste caso, porém, a investigação seria “redundante”, já que a Companhia de Jesus já terá feito uma investigação interna aprofundada ao caso, recolhendo testemunhos e elementos que podem ser usados para dar início à investigação judicial canónica. Por outro lado, esses dados já tinham sido enviados uma vez para o Vaticano, para o Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), que tinha recusado abrir uma investigação devido à prescrição dos crimes.

Com a prescrição dos casos agora levantada, há a forte probabilidade de os elementos recolhidos pela Companhia de Jesus regressarem ao Dicastério para a Doutrina da Fé, para que seja iniciada uma investigação.

O Papa Francisco interveio no caso para levantar a prescrição dos crimes de Rupnik e permitir a sua investigação

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Porém, coloca-se aí outra questão: em teoria, cabe ao DDF instruir a congregação religiosa ou a diocese em causa a abrir um inquérito judicial. Mas, no caso de Rupnik, o sacerdote já deixou a Companhia de Jesus — e só recentemente entrou na diocese de Koper, que dificilmente teria jurisdição para investigar os crimes do esloveno noutros locais. Por outro lado, a investigação poderia ser diretamente realizada pelo Vaticano, mas isso só acontece quando estão em causa os crimes mais graves, considerados “reservados” à Santa Sé, como é o caso dos abusos sexuais de menores e dos crimes contra os sacramentos. Os crimes sexuais contra adultos, por seu turno, não são crimes reservados ao DDF.

Todavia, os crimes contra os sacramentos são — e é aí que entra o processo que, em 2019, deu origem à excomunhão temporária de Rupnik, isto é, a absolvição de uma mulher com quem tinha tido relações sexuais. Trata-se, na lei da Igreja Católica, de um crime contra o sacramento da reconciliação.

Segundo o The Pillar, “uma vez que o DDF já estabeleceu a sua competência no caso devido a um crime reservado, também é a entidade competente para a investigação de todos os crimes relacionados, o que significa que se Rupnik enfrentar uma acusação de um crime contra um sacramento, o departamento doutrinal também poderá investigá-lo pelas acusações de coação sexual e abuso”. Este é, diz o portal católico, o cenário “mais provável”, tendo em conta a complexa teia de acusações que existem contra Rupnik e que, mesmo hoje, continua a ser difícil de reconstituir com exatidão.

A principal fonte de informação para tentar reconstituir a controvérsia em torno de Rupnik é uma cronologia elaborada pela Companhia de Jesus na sequência da investigação interna ao padre.

Nessa cronologia, os jesuítas lembram as origens da comunidade de Loyola, na Eslovénia, em 1987. Fundada dentro da arquidiocese de Ljubljana pela irmã Ivanka Hosta, a comunidade religiosa respondia diretamente ao arcebispo — e o padre Rupnik terá estado envolvido na instituição desde o início, ajudando Hosta a fundá-la, embora com um papel não oficial. Era Rupnik, que vivia num centro da Comunidade de Jesus a uma hora de Ljubljana, quem presidia às missas no convento — e era também ele o confessor e diretor espiritual das irmãs.

Ainda de acordo com a mesma cronologia, Rupnik deixou de estar diretamente envolvido na vida quotidiana da comunidade de Loyola em 1991, depois de “tensões dentro da comunidade, especialmente entre a fundadora e os seus membros” — o que parece coincidir com o afastamento de Rupnik relatado por Anna na sua entrevista ao jornal Domani. Depois de se afastar da comunidade, Rupnik mudou-se definitivamente para Roma, cidade onde já passava uma boa parte do seu tempo devido aos estudos de doutoramento (e onde teria conhecido Anna em 1985), onde fundou o Centro Aletti, oficialmente inaugurado pelo Papa João Paulo II em 1993. Os abusos terão continuado em Roma, não sendo clara qual a relação que Rupnik manteve com o convento esloveno depois da mudança para a capital italiana.

A cronologia dos jesuítas diz, depois, que durante quase duas décadas, entre 1999 e 2015, Marko Rupnik se manteve discretamente a trabalhar no Centro Aletti e nas suas obras artísticas. Foi durante este período que Rupnik fez uma grande parte das mais conhecidas instalações artísticas que o tornaram célebre em todo o mundo.

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Marko Rupnik é acusado de ter abusado sexualmente de mais de duas dezenas de mulheres

Gamma-Rapho via Getty Images

É só em 2018, segundo a Companhia de Jesus, que surgem as primeiras alegações contra Rupnik (algo que não coincide com o testemunho de Anna, que garante ter informado a hierarquia eclesiástica sobre as práticas abusivas do esloveno ainda na década de 1990). De acordo com os jesuítas, foi em 2018 que a Companhia de Jesus soube pela primeira vez de uma acusação contra Rupnik que dava conta de que o sacerdote teria ouvido a confissão de uma mulher com quem tinha tido relações sexuais, o que configuraria um dos crimes mais graves na lei eclesiástica.

Em outubro de 2018, a Companhia de Jesus deu início a uma investigação preliminar ao assunto, que ficaria concluída em junho de 2019. Esse inquérito concluiu que a acusação em causa era credível — e os resultados da investigação foram enviados para Roma. Ao mesmo tempo, a Companhia de Jesus implementou um conjunto de restrições a Marko Rupnik, embora não se saiba que restrições foram essas. Ainda no verão de 2019, a Congregação para a Doutrina da Fé, depois de receber os resultados do inquérito preliminar, deu ordens à Companhia de Jesus para que avançasse com o processo penal contra Rupnik. Durante esse processo, os jesuítas aplicam novas restrições contra Rupnik, incluindo a proibição de orientar espiritualmente outras pessoas e a proibição de ouvir a confissão de mulheres.

Em janeiro de 2020, os jesuítas concluem a investigação e determinam que Rupnik é culpado daquele crime canónico, o que confirmou a excomunhão automática do padre esloveno. Em maio do mesmo ano, a Congregação para a Doutrina da Fé publica uma declaração formal de excomunhão latae sententia contra Rupnik, que é levantada no mesmo mês depois de Rupnik manifestar arrependimento pelo crime canónico.

Fica, porém, uma pergunta por responder: tendo em conta que em janeiro de 2020 Rupnik já tinha sido considerado culpado de um crime punido com a excomunhão automática, como foi possível que, em março de 2020, o sacerdote esloveno tenha sido escolhido para substituir o pregador papal na orientação do retiro de Quaresma do Vaticano — algo que é, como explica a revista jesuíta America, a maior dignidade que um pregador pode receber (em 2018, por exemplo, tinha sido Tolentino Mendonça o escolhido).

[Pode ver aqui a transmissão da pregação de Rupnik no Vaticano em março de 2020:] 

Depois do levantamento da excomunhão, Rupnik foi sujeito a três anos de “restrições administrativas”, embora não seja claro se ele alguma vez as cumpriu efetivamente.

No início de 2021, chegam à hierarquia eclesiástica alegações de práticas abusivas de Marko Rupnik contra mulheres e um dos bispos auxiliares de Roma é nomeado para conduzir um inquérito sobre a comunidade de Loyola, na Eslovénia, onde começavam a registar-se tensões internas. Nessa investigação, o bispo Daniele Libanori ouviu o relato de várias mulheres que acusaram Rupnik de abuso sexual, espiritual e psicológico e concluiu que o trauma provocado pelos abusos de Rupnik era “a verdadeira razão para as divisões” na comunidade. Entretanto, por indicação de Roma, a Companhia de Jesus pediu a um frade dominicano que conduzisse uma investigação independente às alegações sobre Rupnik — e colocou o padre esloveno sob fortes medidas restritivas, embora também não seja claro se o sacerdote as cumpriu.

A investigação dos jesuítas ficou concluída em janeiro de 2022 e os resultados foram enviados para Roma. Segundo a Companhia de Jesus, o inquérito determinou que havia matéria suficiente para impor um processo a Rupnik. Contudo, em outubro de 2022, o Dicastério para a Doutrina da Fé decidiu que o processo não poderia ocorrer, devido ao facto de os crimes se encontrarem prescritos. Foi na sequência dessa decisão que, em dezembro de 2022, um conjunto de blogues italianos divulgou as primeiras informações sobre as acusações contra Rupnik, acendendo a polémica.

Neste momento, mais de 20 mulheres acusam Marko Rupnik de abusos sexuais, psicológicos e espirituais — e o caso poderá finalmente chegar à justiça eclesiástica na sequência da decisão do Papa Francisco. Ainda assim, como nota a revista jesuíta America, há ainda mais perguntas do que respostas. Porque é que o Vaticano decidiu não investigar Rupnik pelas suspeitas de abusos quando já tinha, no passado, investigado crimes sexuais do mesmo sacerdote? E qual o nível de conhecimento que a Companhia de Jesus tinha do envolvimento informal de Rupnik com a comunidade de Loyola?

A busca de respostas parece já estar em curso. No início de outubro, a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores enviou um email a todas as vítimas de Marko Rupnik cujos nomes são conhecidos, dando conta de que está a levar a cabo uma revisão completa do processo e de todas as ações que foram realizadas pela hierarquia da Igreja Católica e convidando-as a dar o seu testemunho detalhado. Para já, o padre-artista caído em desgraça continua em funções na diocese de Koper.

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