Foi uma das surpresas de um verão de Campeonato do Mundo: Megan Rapinoe, aos 38 anos e com dois Mundiais no palmarés, vai terminar a carreira no fim da temporada de clubes dos EUA. Ou seja, vai despedir-se da seleção norte-americana, das grandes competições e da legião de fãs que conquistou ao longo do tempo na Austrália e na Nova Zelândia, no Mundial que começa já na próxima quinta-feira.
Para trás fica o joelho no chão durante o hino nacional em 2016, os bate boca públicos com Donald Trump em 2019 e a igualdade salarial no futebol norte-americano alcançada em 2022. Para a frente fica a promessa de que nunca irá parar de lutar por tudo aquilo em que acredita. Megan Rapinoe é a figura maior de uma seleção dos EUA que está em pleno processo de renovação, tal como ela – e que vai defrontar Portugal na última jornada da fase de grupos do Mundial, no dia 1 de agosto (8h).
Uma nota de rodapé até 2016, um joelho no chão que a tornou protagonista
Ma Barker foi uma poderosa matriarca do crime da primeira metade do século XX nos EUA, conhecida por controlar e organizar todos os planos executados pelos quatro filhos. Ma Barker foi também a alcunha que o avô de Megan Rapinoe lhe atribuiu, quando esta era criança, e que a jogadora norte-americana decidiu eternizar com uma tatuagem na mão direita.
“Quando estávamos a crescer, o meu avô tinha alcunhas para mim e para a minha irmã gémea, a Rachael. Somos exatamente iguais, mas as nossas personalidades não podiam ser mais diferentes. E o meu avô tinha esses nomes especiais para nós: a Rach era a Muffin, eu era a Ma Barker. Um dia perguntei-lhe o que queria dizer, achei que era uma astronauta, uma grande advogada, algo do género. Ele respondeu que era uma conhecida gangster dos anos 20. Por isso, pronto, Muffin e Ma Barker. Acho que isso chega para perceber o cenário”, contou a avançada ao site The Players’ Tribune, em junho de 2019, na antecâmara do último Campeonato do Mundo feminino.
Um Mundial que não tem a melhor do mundo e é o mais importante de sempre. Mas porquê?
Megan Rapinoe tem razão. A alcunha, embora seja um aparente pormenor, é uma pista que nos ajuda a perceber o que a norte-americana sempre foi: uma rebelde. Ainda assim, o mundo demorou a entender que a rapariga que impressionava dentro de campo, entre os penteados mais ou menos coloridos e os dribles mais ou menos intrincados, podia ser uma verdadeira protagonista. Ou melhor, Megan Rapinoe demorou a mostrar ao mundo que podia ser uma verdadeira protagonista.
As diferentes gerações da seleção norte-americana que se sucederam desde 1999, ano do terceiro Mundial feminino de sempre – organizado e conquistado pelos EUA nos penáltis contra a China e o primeiro a ter um verdadeiro impacto global –, assumiram o papel de proa que está intrinsecamente associado ao facto de se fazer parte da equipa do país. Mia Hamm e Kristine Lilly nesse final do século XX, depois Abby Wambach, Hope Solo, Carli Lloyd e Alex Morgan. Pelo meio, foi aparecendo Megan Rapinoe.
A jogadora da Califórnia, atualmente com 38 anos, nunca foi propriamente protagonista nem cabeça de série dentro do fenómeno mediático que se tornou a seleção norte-americana – foi sempre parte das equipas vencedoras, sempre fulcral para as conquistas, sempre braço direito de todas as que faziam manchetes mas nunca era manchete. E tudo isso mudou em setembro de 2016.
Antes de um jogo particular, junto ao banco de suplentes porque não era titular, Rapinoe ajoelhou-se durante o hino nacional dos EUA. A atitude foi uma manifestação de apoio a Colin Kaepernick, o jogador de futebol americano que semanas antes tinha começado a ajoelhar-se durante o hino, antes do início dos jogos da NFL, em protesto contra a brutalidade policial no país que estava então na ordem do dia. Na altura, Kaepernick foi duramente criticado por Donald Trump, então ainda apenas candidato pelo Partido Republicano à presidência dos EUA – e o apoio demonstrado pela jogadora trouxe-lhe críticas e até ondas de choque no interior da US Soccer, segundo o que contou também ao The Players’ Tribune.
Depois de se ajoelhar durante o hino nacional, Colin Kaepernick é a cara da nova campanha da Nike
“A Federação não me apoiou muito, nem publicamente nem de forma privada. Comecei a ficar de fora das convocatórias. Disseram-me sempre que não estava diretamente relacionado com o facto de me ter ajoelhado. Disseram: ‘Não estás no nível em que precisas de estar’. O que era verdade! Estava a voltar de uma lesão grave, não estava no meu melhor, mas a temporada de clubes tinha acabado. A única maneira de ficar em forma era jogar com a seleção. Não fui convocada durante cinco meses e andei um bocado perdida. Diziam-me que tinha de jogar para ficar em forma, mas não tinha sítio para jogar. Boa coincidência! Por isso, sim, senti que estava quase a ser banida. Talvez seja duro, mas foi o que senti. Nunca foi explícito, mas como é que posso explicar? Parecia que tinha partido em direção ao pôr do sol e que estava tudo bem”, explicou a jogadora, que representa os norte-americanos do OL Reign há uma década.
A demonstração de apoio a Colin Kaepernick trouxe uma inédita vaga de publicidade – nem sempre positiva – a Megan Rapinoe. De repente, tornou-se uma das figuras do Mundial de 2015 que os EUA tinham conquistado antes de Rapinoe se ter ajoelhado, tornou-se uma das figuras do Mundial DE 2011 que os EUA perderam na final antes de Rapinoe se ter ajoelhado e tornou-se uma das figuras da geração pós-Mia Hamm e Kristine Lilly que recuperou a mística de 1999 antes de Rapinoe se ter ajoelhado. De um momento para o outro, a jogadora começou a ser reconhecida por tudo aquilo para que tinha contribuído nos anos anteriores. De parte do grupo, passou a ser uma individualidade. E não se sentiu minimamente inibida na hora de aceitar o papel de responsabilidade que até aí tinha sido de Wambach, Solo, Lloyd e Morgan.
Depois de se tornar uma das caras da Nike e protagonizar um anúncio da marca desportiva ao lado de Cristiano Ronaldo, assumiu a relação com Sue Bird, uma das melhores jogadoras de sempre do basquetebol norte-americano e campeã da WNBA em quatro ocasiões. Seis anos depois de revelar que era homossexual, em 2018, Rapinoe aceitou posar com Bird para a capa do Body Issue da ESPN – juntas, tornaram-se o primeiro casal homossexual a aparecer na capa da revista e abriram caminho para o convite da Sports Illustrated, a conhecida revista desportiva, que tornou a jogadora de futebol a primeira mulher homossexual a aparecer na edição de fatos de banho da publicação.
Em março de 2019, a três meses do início do Campeonato do Mundo que decorreu em França, Megan Rapinoe voltou a assumir o protagonismo e a responsabilidade, sendo uma das jogadoras da seleção norte-americana que encabeçaram o processo colocado pela equipa à própria Federação. No processo, as 28 jogadoras acusavam a US Soccer – o organismo que regula todo o futebol, masculino e feminino, nos EUA – de anos daquilo a que chamavam “discriminação de género institucionalizada”.
As queixas da seleção, de acordo com o que o The New York Times contou na altura, não diziam respeito somente aos salários, mas também ao facto de a Federação norte-americana controlar os sítios onde as jogadoras jogavam e com que frequência, a forma como treinavam, os tratamentos médicos que recebiam e até a maneira como viajavam até aos locais dos jogos. E foi nesse contexto – e em plena administração Trump – que Megan Rapinoe viajou para França para disputar o Campeonato do Mundo de 2019.
O Mundial 2019 e a maior vitória da carreira
Logo à partida, prolongando a tomada de posição que tinha deixado clara no momento em que se ajoelhou, a jogadora garantiu que não iria cantar o hino nacional durante a competição – muito menos colocar a mão no lado esquerdo do peito. A decisão, além de continuar a ser um protesto contra a brutalidade policial, a discriminação e a desigualdade social, alargava-se para um formato de crítica a Donald Trump, que Megan Rapinoe já tinha atacado publicamente em diversas entrevistas. Em pleno Campeonato do Mundo, a avançada chegou mesmo a garantir que não iria à “m**** da Casa Branca” se fosse campeã mundial, algo que levou o então presidente norte-americano a recomendar-lhe que “ganhasse antes de falar”.
Ela respondeu dentro de campo. Depois de já ter marcado um golo à Tailândia na fase de grupos e outros dois à Espanha nos oitavos de final, abriu o marcador dos quartos de final contra França com um livre direto aos cinco minutos de jogo: correu para junto da bandeirola de canto, abriu os braços e assumiu um sorriso irónico de tão aberto, estreando ali uma pose que se tornou uma autêntica identidade. Ainda teve tempo para bisar, atirando os EUA para as meias-finais, e foi eleita a melhor em campo.
Megan Rapinoe repete: seleção campeã mundial de futebol feminino não irá à Casa Branca
“Não é possível parar o progresso. Não importa o facto de tentares muito. Do nada, vai aparecer esta lésbica louca, de cabelo roxo, e dizer-te: ‘Vai à m****’”, disse Megan Rapinoe numa entrevista recente à revista Time, onde acrescentou que tem a certeza de que Donald Trump a adorava secretamente. “É óbvio que ele estava a ver aquele jogo. Tinha o McDonald’s todo pronto. E de certeza que pensou ‘Adoro isto’. Sempre senti que o Trump me adorava. Sou exatamente aquilo que os norte-americanos acham que é familiar e confortável, só que com um pacote diferente. Mas sou exatamente a atleta arrojada e arrogante que os norte-americanos adoram”, atirou, garantindo que a Casa Branca convidou mesmo a equipa para uma visita depois da conquista, mas a seleção recusou.
Os EUA venceram Inglaterra nas meias-finais e derrotaram os Países Baixos na final de Paris, com a avançada a marcar mais um golo no jogo decisivo e a terminar a competição com seis, arrecadando tanto o prémio de melhor marcadora como a distinção de melhor jogadora. A seleção norte-americana era bicampeã mundial. E Megan Rapinoe era a mulher mais famosa dos EUA.
Uma popularidade que ajudou a conquistar uma das maiores vitórias da carreira: em fevereiro do ano passado, a seleção norte-americana e a Federação anunciaram que tinham finalmente chegado a um acordo relativamente à igualdade salarial em relação à equipa masculina. Seis anos depois do início da batalha judicial, a US Soccer aceitou pagar cerca de 24 milhões de dólares à seleção feminina – o mesmo que paga à seleção masculina.
22 desses 24 milhões serão divididos pelas jogadoras, sendo que os dois milhões que sobram serão alocados a um fundo que reverte para o pós-carreira das atletas e para associações que promovem e desenvolvem o desporto feminino. A quantia é um terço daquilo que as jogadoras exigiam no processo judicial, que também envolvia um pagamento por danos morais, e tornou-se também uma vitória pessoal de Cindy Parlow Cone, uma antiga atleta que chegou à liderança da US Soccer em março de 2020 na sequência da demissão do luso-descendente Carlos Cordeiro.
“Ela exigiu que o desporto feminino não continuasse a ser tratado como um espetáculo de abertura para o desporto masculino. E isso tem ecos em todo o lado. Quando a Megan subiu ao pedestal e expôs tudo o que se estava a passar no futebol feminino em relação à desigualdade salarial, disse a todas as miúdas de 13 anos do mundo que não tinham de aceitar ser tratadas como cidadãs de segunda categoria”, explicou Elizabeth Warren, candidata à nomeação democrata nas últimas eleições norte-americanas que foi publicamente apoiada por Megan Rapinoe, à Time.
Os EUA vão fechar um capítulo e começar outro. E ela também
No início de julho, pouco mais de um mês antes do Mundial da Austrália e da Nova Zelândia, Megan Rapinoe anunciou que vai terminar a carreira no final da temporada de clubes dos EUA. Ou seja, anunciou que este será o último Campeonato do Mundo em que vai marcar presença – e onde a seleção norte-americana vai procurar chegar ao terceiro título consecutivo, algo que nenhuma equipa masculina ou feminina alguma vez alcançou.
“Tive a possibilidade de ter uma carreira incrível, este desporto levou-me ao mundo inteiro e permitiu-me conhecer tantas pessoas fantásticas. Sinto-me incrivelmente grata por ter jogado durante tanto tempo, por ter tido tanto sucesso, por ter feito parte de uma geração de jogadoras que indubitavelmente deixaram o jogo melhor do que aquilo que encontraram. Ter a possibilidade de jogar um último Mundial e uma última temporada de clubes e sair nos meus próprios termos é incrivelmente especial”, explicou a jogadora, que para além dos dois Mundiais conquistados em 2015 e 2019 também foi campeã nacional em França em 2013, durante a breve passagem pelo Lyon.
Apesar de estar convocada e de provavelmente até ter mais minutos do que o inicialmente expectável – devido à inesperada lesão grave de Mallory Swanson, que vai ficar de fora do Mundial –, não é previsível que Megan Rapinoe tenha na Austrália e na Nova Zelândia o impacto que teve no Canadá e em França. Os 38 anos de idade, associados a muitas temporadas consecutivas ao mais alto nível e uma clara mudança de prioridades nos últimos tempos, fazem com que a avançada não seja um dos nomes mais temidos na seleção norte-americana. E isso também é a maior prova de que os EUA estão a atravessar um processo de completa transição.
Se excluirmos Tobin Heath e Christen Press, que não estão na convocatória devido a lesões, são muitos os nomes capitais das conquistas de 2015 e 2019 que terminaram as carreiras recentemente, estão prestes a fazê-lo ou estão em claro declínio competitivo: Hope Solo, Carli Lloyd, Kelley O’Hara, Ali Krieger, Ashlyn Harris, Julie Ertz e até Alex Morgan, que também deve despedir-se dos Campeonatos do Mundo no próximo mês. Ao mesmo tempo, e tal como acontece sempre, surgem as estrelas do futuro – com destaque para Sophia Smith, Lynn Williams e Trinity Rodman, a filha de Dennis Rodman.
Tal como a seleção norte-americana está a deixar uma geração para olhar para outra, também Megan Rapinoe está a largar um objetivo para se lançar para outro. Depois de conquistada a igualdade salarial, algo que assumiu como uma das principais missões da carreira, a jogadora quer agora lutar pela inclusão de atletas transexuais no futebol feminino.
“Nós todos, enquanto país, estamos a tentar legislar o afastamento da humanidade total das pessoas. É particularmente frustrante quando o desporto feminino é usado como arma de arremesso. Ah, agora preocupam-se com a igualdade? Agora preocupam-se com o desporto feminino? É uma palhaçada. Mostrem-me todas as pessoas trans que estão a aproveitar-se do facto de serem trans para serem bem sucedidas desportivamente. Não está a acontecer”, defendeu Rapinoe, que em 2022 recebeu de Joe Biden a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior honra civil que um norte-americano pode receber.
Dentro ou fora de campo, algo é certo: Megan Rapinoe não vai ficar calada. Afinal, a rapariga que tatuou o nome de uma gangster na mão direita ainda tem muito para dizer e nunca escondeu que é no meio do barulho ensurdecedor que se sente confortável.