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"A Importância de ser Alan Turing" é a mais recente criação de Miguel Bonneville
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"A Importância de ser Alan Turing" é a mais recente criação de Miguel Bonneville

JOANA LINDA

"A Importância de ser Alan Turing" é a mais recente criação de Miguel Bonneville

JOANA LINDA

Miguel Bonneville quer Recuperar o Corpo e mais espaço para o espectador pensar

O artista propõe a partir deste fim de semana no São Luiz peças marcantes de criadores periféricos. Em entrevista, aponta o dedo à falta de tempo para o público refletir sobre a criação contemporânea.

Para o grande público, será uma coisa. Um ciclo de programação sob o título Recuperar o Corpo, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, com a reposição de sete solos de diversos artistas portugueses ao longo de quatro fins de semana. Para Miguel Bonneville, curador deste ciclo performativo, há mais do que isso. Os sete espetáculos são um arquivo pessoal de artistas e dão continuidade ao trabalho que ele tem vindo a desenvolver em nome próprio. Parece confuso?

Tem a palavra o curador: “São artistas e espetáculos que me marcaram pela sua simplicidade, fizeram parte da minha formação como pessoa e artista. Ao apresentar este ciclo, pretendo trazer ao presente as experiências que tive como espectador. Não é só uma homenagem aos artistas, é uma maneira de criar um arquivo, a possibilidade de se revisitar obras destas pessoas e de as inscrever no meu percurso e na história.”

À mesa do café, na Cinemateca Portuguesa, Miguel Bonneville pede uma água e explica ao Observador o que é Recuperar o Corpo. “Os sete solos estão ligados entre si pela minha relação com eles e por pensarem o intérprete em cena não como centro, mas como um elemento do todo. As luzes, a cenografia, o tom, o que se diz, tudo isso fala. Tudo isso é o corpo de um espetáculo, daí o título Recuperar o Corpo. Não importa apenas o corpo do intérprete ou do encenador. Foi sempre essa a minha vontade como criador: chegar a esse todo, porque tudo é igualmente importante e não se pode separar.”

Também no São Luiz, mas em 2019, o entrevistado apresentou três espetáculos. Um em estreia e duas reposições. O ciclo de programação que agora começa dá continuidade a essa lógica, liga-o a ele e aos solos de outros que o influenciaram. A ideia tem vários anos, talvez cinco. A mente arquivística do artista procurava há muito coligir nomes e propostas mais ou menos periféricas através de um site, um livro ou um conjunto de apresentações. Fez listas, pensou e repensou critérios. Ficaram de fora nomes estrangeiros, que a logística tornaria difícil trazer a Lisboa, e também portugueses como Francisco Camacho e Vera Mantero, que o público vê com alguma frequência. Sobraram sete escolhidos, de entre muitos possíveis — e não está de lado uma próxima edição deste ciclo.

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Mónica Calle é uma das artistas convidadas para Recuperar o Corpo no São Luiz

BRUNO SIMÃO

A primeira peça de Recuperar o Corpo surge este fim de semana, sábado e domingo, às 19h30. “Julieta Bebe Uma Cerveja no Inferno”, de Tiago Vieira, original de 2018, agora alterado mas com vestígios de todas as versões anteriores. Diz a folha de sala, a resumir o solo: “O amor como ato revolucionário longe da escravatura das relações medíocres.  A violência de todos os dias em que sentimos as grandes ausências monstruosas. O desejo como lugar de rutura, o encontro como possibilidade e todos os segredos que transportamos na pele como vestígios de antigas experimentações.”

Seguem-se três propostas a 6 e 7 de novembro: “A Balada de Amor e Morte do Porta Estandarte Christoph Rilke”, de Maria Duarte e João Rodrigues; “Anita Escorre Branco”, de Odete; e “notforgetnotforgive”, de Carlota Lagido. Nos dias 10 e 11 surge “Haikus”, de Sónia Baptista. E por fim, a 13 e 14, as peças “Interior”, de Rita Só e Mónica Calle; e “A Grande Sombra Loira”, de Tiago Barbosa. O mais antigo dos solos remonta a 1999, o mais recente é de 2018. O ciclo encerra a 14 de novembro com uma conversa entre artistas e público e a apresentação de um livro que fixa a iniciativa — com os criadores a responderem a sete perguntas que ajudam a entender os percursos e as peças.

“Têm a antiespetacularidade como característica. Isso atrai-me e move-me”, resume Miguel Bonneville. Adiante falará do último espetáculo que assinou, “A Importância de Ser Alan Turing”. Dirá que procura cada vez mais uma economia de meios para se apresentar em palco. Vai rematar com uma ideia-forte: nas artes predomina uma atitude paternalista para com o público, com muita explicação das obras e pouco espaço para o espectador pensar. E já lá vamos.

"Estamos numa fase em que é preciso ser-se económico e ecológico, em todos os sentidos. Apercebi-me também de que não é necessário mais do que um corpo em cena para fazer mudar alguma coisa em alguém."

Miguel Bonneville nasceu há 36 anos no Porto, é conhecido por trabalhos de desconstrução de identidades e sexualidades, ora através de performances e vídeo, ora através de desenhos ou música. Também usa outros nomes de palco, como seja BlackBambi. Estudou representação na Academia Contemporânea do Espetáculo, no Porto, e vive em Lisboa desde 2004. Ao longo dos anos fez cursos de artes visuais, autobiografias, arquivo. Fala connosco a perder-se nos pensamentos, um pensamento muito analítico, crítico.

Há dias apresentou em Lisboa, na Casa do Capitão (no Beato), “A Importância de Ser Alan Turing”, peça que integra uma série iniciada em 2013 através da qual revisita figuras históricas com quem sente afinidades biográficas e criativas: o realizador António de Macedo, as escritoras Simone de Beauvoir e Agustina Bessa-Luís, os filósofos Paul B. Preciado e Georges Bataille.

No caso de Alan Turing (1912-1954) — o matemático britânico a quem se atribui um papel fundamental na decifração das mensagens nazis e no desfecho da II Guerra, que tem vindo a ser reabilitado depois da condenação em tribunal por homossexualidade pouco antes de morrer — Miguel Bonneville faz uma performance-concerto com sons e estrondos eletrónicos. Parece um pregador de massas, à maneira de um Charlot em “O Grande Ditador”, e termina como cisne. Acompanha-o a artista sonora Clothilde, apetrechada de “sintetizadores modulares”, uma parafernália de botões e válvulas que lembram os computadores mainframe de outrora, talvez das primeiras décadas do século XX.

"Era raro sair de um espetáculo a sentir que me permitiam entrar. Já se sabe à partida que tema se está a abordar, sobre o que é a peça, o porquê, as conclusões. Com a música não sinto essa pressão"

Não é um propriamente uma versão de palco da biografia da personagem porque nunca é para o óbvio que Miguel Boneville se inclina. “Procuro neste espetáculo, como sempre, perceber o que é que se espera de mim e o que deveria ser feito. Tento perceber se esses primeiros impulsos fazem ou não sentido”, resume, referindo-se ao processo de criação.

“A Importância de Ser Alan Turing” estreou-se em setembro do ano passado no Circular Festival de Artes Performativas, em Vila do Conde. Esteve em Lisboa no âmbito do Festival Temps d’Images. E a 19 de novembro vai ao Teatro das Figuras de Faro no contexto do Festival Verão Azul. Depois desaparece. “Vai ser a última apresentação, vou-me desfazer da cenografia”, anuncia, ciente de que um artista ocupado com burocracias e logísticas não tem tempo para criar.

“É incomportável fazer espetáculos com cenografias de alguma dimensão. Para onde vai a cenografia, para onde vão os figurinos? É preciso um armazém, mas não há dinheiro nem apoios para manter e guardar as coisas. Estamos numa fase em que é preciso ser-se económico e ecológico, em todos os sentidos. Apercebi-me também de que não é necessário mais do que um corpo em cena para fazer mudar alguma coisa em alguém. Não é uma crítica, não desdenho cenógrafos nem cenografias, mas a experiência diz-me que as exigências de produção e de logística são infernais. Tenho vontade de voltar a fazer coisas mais simples”, explica. “Um espetáculo hoje é 95% candidaturas, logística, conversas com programadores, aluguer de carrinhas. A parte boa, que é a criação, fica em último plano e depois fazemos montagens e ensaios em dois dias.”

Miguel Bonneville tem 36 anos, é conhecido por trabalhos de desconstrução de identidades e sexualidades

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Miguel Bonneville quer concentrar-se mais na investigação e no ato criativo. É isso que o entusiasma. Mais uma vez: antiespetacularidade. Aparecer nas redes sociais, promover-se em vídeos, podcasts e jornais — diz não estar apto para tanto. Nem quis ser fotografado para esta entrevista. E assim se chega ao momento mais sério da conversa, a espreitar desde o início. O criador alonga-se na dissertação sobre o estado da arte. Não está desiludido, mas cansou-se de quem explica demasiado aquilo que apresenta ao público.

Pergunta: Recuperar o Corpo é um título que deve alguma coisa à pandemia, quando as pessoas foram obrigadas a fechar-se em casa e a distanciar-se uma das outras, mais o teatro online, as videochamadas, a telescola, o Zoom? A interpretação é possível. “Há uma vontade de sair da virtualidade, de um apego à virtualidade, que a pandemia reforçou”, diz. A propósito: assistiu a muitos espetáculos pela internet durante os confinamentos? Quase nada.

"Pergunto-me porque é que o espectador tem de perceber o que está a ver? Porque é que tem de entrar com opinião formada e sair com a opinião que lhe é oferecida. É como quem faz os clássicos do teatro e depois diz que a peça está muito atual. Claro que está, sempre foi, por isso é que os clássicos são clássicos."

“Antes da pandemia já não via muitos espetáculos porque sentia que eram sempre, não uma desilusão porque não estava iludido, mas demasiado autoexplicativos e deixavam pouco espaço para me perder na obra e sentir alguma coisa. Está tudo tão explícito, é tudo tão básico. Comecei a perder vontade. Era raro sair de um espetáculo a sentir que me permitiam entrar. Já se sabe à partida que tema se está a abordar, sobre o que é a peça, o porquê, as conclusões. Com a música não sinto essa pressão. Raramente nos concertos há uma explicação da música, do tema, da mensagem. Daí a minha vontade de estar mais ligado à música. Todo o tipo: música clássica, experimental, eletrónica, jams, de tudo.”

Claro que muitos criadores preferem não explicar os trabalhos e fogem de dizer qual o tema de determinado espetáculo — por vezes até reagem com desdém a tais perguntas dos jornalistas. Como ainda há dias explicaram ao Observador os responsáveis pelo Alkantara Festival, a explicitação que induz o público não substitui a experiência estética, mas é necessária quando se pretende divulgar os espetáculos junto do grande público e facilitar a compreensão do respetivo conteúdo. O argumento não seduz Miguel Bonneville.

Alkantara Festival revela mais novidades para novembro: “Queremos repensar visões sobre a cidade e a sociedade”

“Há sempre maneira de subverter essas formas de comunicação”, argumenta. “Se queremos estar dentro dos teatros ou dos festivais e cumprir certos requisitos, podemos fazê-lo sem cair numa espécie de didatismo que não é útil. Não falo apenas da divulgação, falo dos trabalhos em si. Autoboicotam-se, explicando-se, talvez com medo de que as pessoas não compreendam o que estão a ver. Pergunto-me porque é que o espectador tem de perceber o que está a ver? Porque é que tem de entrar com opinião formada e sair com a opinião que lhe é oferecida. É como quem faz os clássicos do teatro e depois diz que a peça está muito atual. Claro que está, sempre foi, por isso é que os clássicos são clássicos. É preciso mudar os discursos, porque o discurso excessivamente explicativo influencia a criatividade. O processo deixa de ser criativo para quem faz e para quem vê.”

Será uma moda? Um efeito dos média? Quem programa salas e teatros precisa de captar públicos e por isso é exaustivo nas explicações? São os criadores a encaixar nas exigências de quem financia os projetos e pede temas concretos? “Pode ter que ver com a arte conceptual”, diz Miguel Bonneville. “Dizia-se que se o público não percebe é porque é burro. Agora estamos no oposto. Vamos explicar tudo, senão não há público. Pode ser isto.” Em todo o caso, o artista vê aqui “uma espécie de paternalismo”. “Como se o público não pudesse tirar as suas próprias conclusões e decidir aquilo de que gosta ou não.” Será que a discussão segue dentro de momentos?

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