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Miles Davis: 50 anos depois, "Bitches Brew" ainda é um cosmos a explodir

Em 1970, Miles Davis juntou jazz, fusão e rock e antecipou técnicas do hip-hop e da eletrónica. Podemos classificá-lo como o disco mais imaginativo de todos os tempos? Claro que podemos.

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Uma canção é um bem frágil, precioso e muito fácil de compor: há uma entrada, um verso, uma ponte para o refrão, o dito refrão, um segundo verso, outra ponte, de novo o refrão e uma coda. Uma canção é um bem frágil, precioso e muito fácil de compor – exceto no caso de Miles Davis em 1969, ano em gravou Bitches Brew, e cujos 50 anos se celebram esta semana.

Uma forma possível de definir Bitches Brew, um álbum que une jazz, fusão, rock e cujas técnicas de produção anteciparam o hip-hop e a eletrónica, é caracterizá-lo como o disco mais imaginativo de todos os tempos – ou, talvez, na definição de John McLaughlin, que participou nas sessões de gravação, “a versão musical de Picasso”. Houve quem lhe chamasse “um assalto aos sentidos”, quem se escandalizasse e se opusesse a que se chamasse música a coisa assim – mas é, tão simplesmente, o disco mais icónico do século XX, pelo menos em termos do progresso que trouxe à música.

Não há qualquer exagero nisto: Bitches Brew incorpora quase todas as contradições musicais de final de anos 60 – a música ao vivo e a música pós-produzida, a música clássica versus a africana, a música improvisada versus a música notada, o jazz contra o rock – e consegue sintetizar tudo isto num disco que é muito maior quer a soma das partes e transcende cada um dos seus componentes.

Durante muitos anos, Miles Davis insistiu que Bitches Brew foi um disco feito sem preparação, nem pautas, nem arranjos, apenas improviso e – por milagre – saiu este assombro de disco.

Há várias maneiras de avaliar o impacto que um objeto teve na cultura. Uma delas – a mais chata, a meu ver – é ir procurar o que aconteceu aos envolvidos na empreitada: todos os músicos envolvidos acabaram por ter carreiras admiráveis: Joe Zawinul e Wayne Shorter que, com o percussionista Airto Moreira, criaram os Weather Report; Herbie Hancock, que se tornou Herbie Hancock, John McLaughlin criou a Mahavishnu Orchestra e Chick Corea tornou-se Chick Corea.

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Também podemos aferir do impacto imediato, que foi o nascimento do rock de fusão (alguns falam em jazz de fusão), que foi praticado por bandas tão díspares e inventivas como os Blood, Sweat & Tears, os Soft Machine, os Mothers of Invention ou, em França, os magníficos Magma. Não é de excluir a influência de Bitches Brew na fornada conhecida por Krautrock (os Can, os Faust, etc).

E se olharmos para a música dos últimos anos, é bem clara a marca de Bitches Brew em Kid A e Amnesiac (os dois melhores álbuns dos Radiohead) e em Ladies and Gentleman, We’re Floating in Space (o melhor disco dos Spiritualized), e isto para não escavar no underground e olhar para projetos como os Sa-Ra Collective.

Estas são as fundações de Bitches Brew: o jazz, claro, alguma atonalidade, o funk, o rock e o psicadelismo unidos não em pauta mas sim pela liberdade de improvisação (e por um tremendo trabalho de pós-produção).

Ora, por norma este é o momento em que se aconselha o leitor a fazer play no disco no Spotify enquanto se começa a descrever o disco. Por norma, a descrição começa pela primeira faixa mas, partindo do princípio que vocês são neófitos e andam com os pés na Terra, vou para já evitar os dois temas que ocupavam o lado A do LP, “Pharaoh’s Dance” e “Bitches Brew”, não só por serem os mais longos e polémicos, mas também por serem os mais dispersos e alucinantes e vocês ainda se assustam.

De Hendrix a “Spanish key”

“Spanish key”, o primeiro tema do lado B, parece-me o local indicado para começar: tem inicialmente um travo de jam, algo de cinemático, como se fosse a BSO de um daqueles filmes de suspense ou paranóia dos anos 70, e demora escassos três minutos a desaguar numa espécie de funk alucinado, com uma grande linha de baixo, teclas insistentes a correr livremente, um solo perdido, múltiplos instrumentos a entrar e sair e no entanto aquele ritmo a manter-se. Um dos synths ameaça amotinar-se mas regressa à casa de partida, começa a surgir uma guitarra funky lá atrás, uma trompete chega-se à frente e se isto fosse a tal BSO de um filme de paranoia ali pelos 7 minutos e 49 segundos é o momento em que o protagonista descobre que há um plano para o tramar e ELES estão todos mancomunados e ele não tem escapatória.

[“Spanish key”:]

Ainda temos dez minutos de “Spanish key” pela frente (a secção imediata é um funk do demo) e já é bastante óbvio que Miles estava farto da música – suave, ordenada – que andava a fazer ao vivo com o seu quinteto. Nos últimos tempos apaixonara-se por Jimi Hendrix e deixara-se seduzir pelo funk de Sly & the Family Stone. Também ganhara imensa curiosidade pelo psicadelismo.

Estas são as fundações de Bitches Brew: o jazz, claro, alguma atonalidade, o funk, o rock e o psicadelismo unidos não em pauta mas sim pela liberdade de improvisação (e por um tremendo trabalho de pós-produção). É em “Spanish key”, “Miles runs the voodoo down” e “Sanctuary” que a ideia inicial de Miles surge mais clara e conseguida (e até concisa, mesmo que “Spanish key” tenha 17 minutos e “Miles…” tenha 14).

Prova disso é que “Pharaoh’s dance”, que é, para todos os efeitos, uma peça superlativa, nunca foi tocada ao vivo. OK, é dificílimo reproduzi-la num quinteto, mas é possível que Miles tenha tido dúvidas acerca de “Pharaoh’s dance” e “Bitches brew”, as duas primeiras faixas, que ocupam o primeiro lado do álbum, e nunca tenha ficado inteiramente satisfeito com o resultado final, por oposição ao que sentir em relação às três faixas acima mencionadas.

[“Pharaoh’s dance”:]

E isto é tudo tão mais estranho quanto Miles deliberadamente queria – e sempre afirmou posteriormente querer – um disco livre, o mais improvisado possível, em que não houve lugar a pautas e ensaios.

O mito da não existência de pautas nem ensaios

Durante muitos anos, Miles Davis insistiu que Bitches Brew foi um disco feito sem preparação, nem pautas, nem arranjos, apenas improviso e – por milagre – saiu este assombro de disco. Quando concedia que houvera um mínimo de preparação envolvida no disco era sempre de forma comezinha: “Eu trazia um ou outro sketch musical que nenhum deles tinha ouvido, tal como fizera em Kind of Blue e em In a Silent Way e a partir daí improvisávamos”. Tudo muito bonito; só há um problema: “Spanish key”, “Miles runs the voodoo down” e “Sanctuary” já andavam a ser tocadas ao vivo pelo quinteto de Miles.

Depois há ainda declarações dos músicos, que afirmam ter passado um par de dias a trabalhar nos tais sketches de Miles – aqueles que dariam origem a “Pharaoh’s dance” e “Bitches brew”. E há declarações de músicos que afirmam terem trazido, cada um, os seus próprios sketches, que acabaram por usar, de uma forma ou de outra, no disco. E houve pautas, ainda que escassas – Miles compusera alguns trechos para instrumentos específicos e queria que os respetivos músicos criassem a sua variação desses trechos.

Começavam e paravam e recomeçavam e paravam e recomeçam e paravam e a maior parte do tempo aqueles treze músicos não faziam ideia se estavam a ensaiar ou a tocar, porque nada daquilo parecia fazer sentido e era só Miles que tinha o puzzle todo na cabeça e conseguia juntar as peças.

E depois ainda há esta declaração do baterista Lenny White: “As sessões começavam muito cedo e acabavam lá pelas três ou quatro da tarde. No fim dos três dias de gravação fomos todos para casa do Miles e ouvimos as cassetes por editar e cada um de nós disse o que gostava e não gostava nas cassetes”.

É apenas natural que Miles tivesse querido um mínimo de estrutura para cinco das sete faixas – ao fim e ao cabo ele estava a embarcar num projeto de escala larguíssima para o jazz da época, em que os discos eram gravados por quintetos ou quartetos num só dia. Ele tinha 13 músicos (em que a maior parte deles nunca havia tocado uns com os outros) em três dias de gravação e a fita sempre a rolar.

Ainda assim, não se pode dizer que Bitches Brew tenha sido um disco muito programado – foi até o oposto: Miles tinha um som na cabeça e não descansou enquanto não o encontrou – mas as gravações em si foram muito fragmentadas. Um músico pegava num dos sketches, imitava-o, libertava-se dele até chegar ao som que Miles queria, juntava-se a bateria ou um dos dois contra-baixos, e isto durava dez minutos, ao fim dos quais, um dos solistas mudava de tom e todos os outros músicos andavam à procura de o acompanhar.

[“Bicthes Brew” ao vivo em 1970″:]

Miles parava os músicos porque não gostava disto ou daquilo, ou porque gostara de uma frase de teclas e o novo take teria de andar à volta dessa frase de teclas, mas depois surgia uma frase de guitarra improvisada e Miles queria que a segunda parte do tema tivesse essa frase como centro. Começavam e paravam e recomeçavam e paravam e recomeçam e paravam e a maior parte do tempo aqueles treze músicos não faziam ideia se estavam a ensaiar ou a tocar, porque nada daquilo parecia fazer sentido e era só Miles que tinha o puzzle todo na cabeça e conseguia juntar as peças.

O gigantismo de “Bitches Brew” e o nascimento da pós-produção

Há uma citação de Joe Zawinul que espelha bem o que os músicos (13, incluindo dois bateristas e dois contra-baixistas, convém sempre repetir) sentiram ao ouvir o disco pela primeira vez, comparando com o que sentiram em estúdio.

Ecoando a incompreensão que John McLaughlin sentira durante as gravações de In a Silent Way (em que Miles também só apresentou sketches aos músicos, sem lhes explicar o que queria que fosse o outcome final), o teclista contou um dia que “não gostei por aí além das gravações na altura, porque não entendia o que estava a acontecer, e porque parávamos e recomeçávamos tanto a tocar pequenos trechos muito diferentes entre si que aquilo não era muito excitante”. Mas um dia, recordou Zawinul, ele estava nos escritórios da CBS “e alguém estava a passar música incrível. Era uma coisa do outro mundo. Perguntei ‘O que raio é isto?’ e disseram-me que era o Bitches Brew.”

Na autobiografia, Miles escreveu que “algumas pessoas escreveram que "Bitches Brew" era uma ideia de Teo Macero (o produtor). É uma mentira – de novo, são os brancos a tentarem dar crédito a outros brancos por coisas que estes não merecem. Os brancos queriam reescrever a história, como sempre fizeram”.

Há duas versões acerca do que aconteceu a seguir às gravações de Bitches Brew: segundo Miles Davis, ele deixou uma série de instruções a Teo Macero, o produtor do disco, que cumpriu o que lhe foi pedido; mas Macero diz ter tido “carta branca para mexer no material e poucas indicações por parte de Miles. Podia mudar qualquer elemento musical como quisesse e o que eu fazia era gravar tudo, misturar, ouvir as cassetes e depois levar as cassetes de volta à mesa de mistura e começar a pensar ‘Este pedaço aqui é bom e cabe bem ao lado deste, etc’. E no fim adicionei os efeitos”.

Como é óbvio, a história entre Davis e Macero acabou mal: Davis pouco falou de Macero na sua autobiografia e afirmou que de 1964 a 1966 os dois nem sequer se falavam. Na autobiografia, Miles escreveu que “algumas pessoas escreveram que Bitches Brew era uma ideia de Teo Macero. É uma mentira – de novo, são os brancos a tentarem dar crédito a outros brancos por coisas que estes não merecem. Os brancos queriam reescrever a história, como sempre fizeram”.

Só há um problema com isto: é que os factos apontam para uma altíssima intervenção de Macero – não em “Spanish key”, nem em “Miles runs the voodoo down”, nem em “Sanctuary”, as canções que haviam sido ensaiadas, ao contrário do que Miles sempre afirmou (e se alguém sempre foi bom a refazer história foi Miles). Estas canções estão quase livres de edição pós-gravação.

Compara-se com Pharaoh’s dance, que tem uns espantosos 17 edits. O seu início, famoso pelo pára-arranca, foi todo construído em pós-produção – e pós-produção bastante sofisticada para a época, com loops de 15 e 31 segundos de fita, enquanto várias micro-edições ocorrem entre os 8:53 e os 9:00, onde um fragmento de um segundo é repetido cinco vezes. Isto não é Miles, que nem sequer se aproximou da mesa de misturas.

Todas as lutas de egos que envolveram o disco são agora indiferentes: “Bitches Brew” continua a ser uma obra de génio

Aparentemente a inspiração de Macero para ordenar as faixas que não haviam sido ensaiadas foi a música clássica: em “Pharaoh’s dance” e em “Bitches brew”, o produtor criou estruturas semelhantes aos de uma sonata: exposição inicial com dois temas, desenvolvimento com variações, recapitulação (que repete os dois temas da exposição) e uma coda. Macero tinha formação musical, estes não lhe eram elementos estranhos.

Isto para não falar de uma série de truques de estúdio experimentais na época, como ecos, reverbs, tape delay, por aí fora, que Macero empregou. De certa maneira pode comparar-se – e na realidade é uma comparação que tem sido feita ocasionalmente – o génio de Macero em Bitches Brew com o de George Martin na obra dos Beatles: re-organizar, arranjar, contextualizar.

Todas estas lutas de egos são agora indiferentes: Bitches Brew continua a ser uma obra de génio, e seria uma obra de génio ainda maior se tivesse sido ligeiramente mais editada no par de temas inicial.

Quando descobri Bitches Brew, aos 18 ou 19 anos, na universidade, fiquei simplesmente extasiado, de boca aberta – pouco tempo depois descobri os Soft Machine, o krautrock, toda essa música influenciada anos depois por Miles. Não corri a fazer uma banda – mas estudei Bitches Brew muitos anos para um dia escrever sobre ele e poder dizer-vos – sem pingo de erro – que o ouçam o mais depressa que puderem.

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