A solidariedade para com as vítimas de Pedrógão Grande já recolheu mais de 13 milhões de euros. A maior parte do dinheiro (cerca de 8,6 milhões) foi doada pelos portugueses e por algumas instituições privadas em poucos dias logo a seguir ao incêndio e foi entregue pelos maiores bancos a quatro instituições: à União das Misericórdias, à Cruz Vermelha Portuguesa, à Cáritas de Coimbra e ao fundo público de apoio aos três concelhos afetados, o Revita. Mas depois passaram semanas sem que esse dinheiro chegasse ao terreno, e essa demora no apoio às populações transformou o discurso solidário em críticas ao poder político.
A última foi de Passos Coelho. Esta quarta-feira o líder do PSD falou sobre a “lei da rolha” imposta pela Protecção Civil aos Bombeiros dizendo “é essencial que não haja notícias. E depois espera-se que aquelas que são captadas pela realidade não sejam tão más como aquelas que já nos apareceram para se poder dizer que as coisas estão a normalizar e a melhorar”, e depois atacou: “Mesmo que ainda ninguém tenha visto um tostão do apoio solidário que os portugueses carregaram para as vítimas de Pedrógão, mesmo que o Estado ainda não tenha realmente, do ponto de vista da Segurança Social, criado qualquer mecanismo célere para ajudar as pessoas que perderam os seus bens e o seu sustento, mesmo que o Estado não tenha conseguido sequer organizar uma pequena operação logística para fazer chegar a quem de direito os bens, já não falo do dinheiro, os bens que foram solidariamente colocados à disposição daqueles que poderiam precisar deles”.
As palavras de Passos Coelho refletem as muitas críticas que se têm ouvido nos últimos dias. Questiona-se a capacidade do Estado para fazer chegar os apoios a quem precisa de ajuda e crescem as dúvidas sobre como o dinheiro chegará ao terreno.
O Revita concentra toda a informação sobre as carências das populações afetadas, mas há entidades que recusam colocar os milhões de euros nas mãos do Estado. Os cheques para a reconstrução de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos vão, por isso, ser assinados por este organismo e pelas próprias instituições sociais de forma independente. A recuperação da tragédia dá os primeiros passos. Mas como é que o dinheiro chega ao terreno? O que é preciso para receber dinheiro? Como é feita a seleção? Quem centraliza os pedidos e avalia as necessidades?
Apoios só depois de preenchidos os requerimentos
Antes de mais, é preciso que as próprias famílias com casas afetadas pelo incêndio manifestem a intenção de ver as suas habitações reconstruidas ou recuperadas. O regulamento do Revita — o fundo criado pelo Governo para coordenar a intervenção nos três concelhos — revela a burocracia a que as vítimas estão obrigadas para receber ajuda: “Os pedidos de apoio” são formalizados “mediante apresentação de requerimento” num formulário que tem de ser “devidamente preenchido e assinado pelo proprietário, ou pelo usufrutuário, mediante autorização expressa do primeiro”.
Os responsáveis políticos têm repetido a ideia de que o levantamento das casas atingidas pelas chamas está feito e que agora é hora de pôr mãos à obra, mas a verdade é que, sem o requerimento preenchido, nada feito.
Juntamente com o requerimento, e em função do valor de cada obra (até cinco mil euros, entre cinco mil e 25 mil euros ou acima desse montante), ainda é preciso juntar mais documentos: comprovativos de titularidade da casa, estimativas de custos, prazos de execução e alvarás de licença.
Além desta papelada, recai também sobre as famílias afetadas ou os proprietários diretamente (na sua maioria idosos) a tarefa de recolher propostas de orçamentos para as reabilitações (apenas um, para obras abaixo dos cinco mil euros, três para obras acima desse valor), que terão de apresentar junto das respetivas câmaras municipais. Cabe, depois, à comissão técnica do conselho de gestão (um organismo que junta um autarca dos concelhos afetados e três técnicos da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro) avaliar esses documentos e respetivos pedidos de ajuda, antes de as autarquias os submeterem à validação do conselho de gestão do Revita.
Nas intervenções de reabilitação de valor mais baixo (até cinco mil euros), a validação da obra é imediata e a intervenção não requer aprovação prévia do conselho de gestão do Revita para avançar. No segundo caso — obras de reabilitação que também não precisam de licença, até 25 mil euros –, a comissão técnica avalia os três orçamentos recolhidos pelas famílias e vence o mais barato, que é depois validado pelo conselho de gestão do fundo público, ainda que a obra possa avançar sem parecer prévio do mesmo.
O terceiro caso diz respeito a obras de reabilitação superiores a 25 mil euros: o princípio é o mesmo que nos casos anteriores, mas, aqui, o regulamento admite que, “em situações excecionais e devidamente fundamentadas, poderão as obras a que se refere esta alínea ter início sem autorização prévia do conselho de gestão”. No último caso, para todas as obras de reconstrução, é necessário o parecer prévio do conselho de gestão. Mas, mais uma vez, é preciso apresentar três orçamentos e vence o mais barato.
Os cheques do Fundo Revita
Há um mês, as chamas deixaram um rasto de destruição que se alastraria a três concelhos da região centro. Nas últimas semanas, foram fotografadas centenas de habitações, foi recolhida e cruzada a informação sobre cada uma das famílias afetadas e foi concluído todo o levantamento dos danos materiais. A contabilização oficial faz-se em cerca de 200 casas de primeira habitação completamente destruídas ou que precisam, no mínimo, de uma intervenção para voltar a servir de teto.
Se a esse conjunto se somarem as casas de férias, anexos de habitações e casas devolutas, o número dispara para mais do dobro (cerca de 500, segundo o presidente da câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Marques).
“Já fizemos a primeira distribuição, entregámos as primeiras 13 casas à União das Misericórdias para que se avance com as recuperações e vamos entregar outras 13 casas à Cáritas de Coimbra”, diz ao Observador Fernando Lopes, num tom que denuncia o entusiasmo de quem vê o trabalho dos últimos 30 dias dar finalmente os primeiros resultados palpáveis. A máquina demorou a ganhar ritmo mas, agora, a esperança do presidente de Castanheira de Pera é a de que as famílias dos três concelhos afetados pelas chamas possam finalmente avançar com o processo de reconstrução.
Na última quinta-feira foi aprovado o regulamento que vai permitir ao Revita começar a distribuir os cheques das obras de reabilitação ou reconstrução de raiz das 190 casas de primeira habitação afetadas pelo incêndio. Esse é um caminho. O outro passa pela partilha de informação do Revita ou das próprias autarquias com as instituições às quais foi entregue a responsabilidade de gerir o dinheiro recolhido. E essa pode vir a ser a parte mais complicada.
Aprovados os orçamentos, o conselho de gestão do Revita ou as próprias instituições de solidariedade social entregam diretamente o dinheiro correspondente ao valor total da obra aos “beneficiários finais”, as construtoras. É esse o modelo que está consagrado no regulamento para as obras de reabilitação, seja qual for o seu valor. Nos casos em que seja preciso fazer uma reconstrução das casas destruídas, aquilo que está previsto é que o pagamento possa ser feito “de forma faseada, de acordo com a apresentação de autos de medição e registos fotográficos dos trabalhos realizados, na respetiva câmara municipal”. Mas o mesmo modelo pode ser aplicado nas reabilitações acima de cinco mil euros, “mediante um plano de pagamentos proposto pela câmara municipal ao conselho de gestão e mediante aprovação pelo mesmo”.
As ajudas em dinheiro vivo que saírem do Revita podem ser aplicadas em trabalhos de reconstrução ou reabilitação, compra de mobiliário e eletrodomésticos ou a “outras necessidades devidamente identificadas”. O grosso dos apoios vai ter aplicado em obras de reabilitação ou reconstrução. Mas também está prevista a possibilidade de o fundo público apoiar diretamente as vítimas com “bens móveis não sujeitos a registo” (entenda-se, mobiliário e eletrodomésticos). Nestas situações, as famílias devem identificar os equipamentos de que precisem, baseando-se na lista anexada ao regulamento e onde se exemplifica que mobiliário e equipamentos domésticos podem ser atribuídos.
Para a cozinha, por exemplo, admite-se a aquisição de mesas e cadeiras, máquina de lavar loiça, torradeira, batedeira e até varinhas mágicas. Para a sala podem ser oferecidos sofás, móveis de apoio ou aquecedores. Na casa de banho, a lista prevê apenas um secador de cabelo e uma máquina de barbear. Está tudo discriminado no regulamento. Também está previsto que os apoios possam surgir sob a forma de “prestação de serviços”, mas o documento não especifica que tipo de serviços estão previstos. Apenas se refere que essa lista “é gerida em função das necessidades previamente identificadas pelas autarquias”.
Quem tem prioridade para receber apoios?
Nos últimos dias multiplicaram-se as denúncias de que o apoio não estava a chegar ao terreno. O líder do PSD repetiu agora o que já dissera, na semana passada, que era “incompreensível que o Estado, nem mesmo quando lhe oferecem o dinheiro para acudir às pessoas, tem competência para lhes acudir de facto”. Mas o Governo garante que a ajuda está a chegar às vítimas.
Em entrevista à RTP, o ministro do Planeamento e das Infraestruturas, Pedro Marques, garantiu que, “quer através do apoio das misericórdias quer através da Fundação Calouste Gulbenkian quer da Cáritas Coimbra, esses apoios chegarão ao terreno e chegarão para recuperar as casas das pessoas”. Noutro tom, o presidente da câmara de Pedrógão Grande diz ao Observador que “os boateiros aparecem sempre nestas alturas”. Valdemar Marques, eleito pelo PS, garante que “as coisas estão a andar” e que “as pessoas têm tido acesso a assistência na saúde, a parte psicológica está no terreno, alimentação não falta”.
E é aí que entram o fundo Revita e as instituições de cariz social. A atribuição de apoios “tem como prioridade a reconstrução ou reabilitação de habitação permanente e respetivo apetrechamento“, esclarece o regulamento do fundo, que discrimina os critérios de seleção dos beneficiários com casas de habitação permanente afetada pelo incêndio.
O artigo 21º do regulamento apresenta os critérios para escolha prioritária de beneficiários:
- “Agregados em situação de carência económica, fundamentada mediante parecer da segurança social”;
- “Agregados familiares que integram crianças, pessoas com deficiência ou doença crónica ou agregados compostos maioritariamente por pessoas idosas”;
- “Agregados monoparentais”;
- “Pessoas isoladas” (com um elemento no agregado familiar);
- “Famílias com mais de cinco elementos”;
- “Agregados com encargos com o realojamento temporário, cujas habitações foram afetadas pelos incêndios”.
A lista não é numerada e não fica claro que os critérios sejam seguidos pela ordem em que são apresentados. Mas esses critérios vão ser cruzados com os dados sobre todos os prejuízos e necessidades recolhidos nas últimas semanas por elementos da Segurança Social, do Turismo, do ministério da Economia e outros organismos, sob coordenação da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC).
As informações servem de base à atribuição de apoios no âmbito do Revita e vão permitir à própria Comissão Europeia determinar os apoios comunitários a atribuir a Portugal no âmbito dos incêndios. “Em semana e meia fizemos o levantamento total, com muito trabalho, muito esforço”, sublinha Valdemar Marques, salientando o trabalho de Ana Abrunhosa, responsável da CCDRC que coordenou todo o levantamento. “Temos de saber a quem estamos a dar e porquê”, ressalva ao Observador Margarida Carvalho, técnica da Cáritas Coimbra que tem dado resposta aos pedidos de ajuda que chegam à instituição. Ao mesmo tempo, “está a definir-se quem fica com quê para garantir que a ajuda não vai todo para os mesmos beneficiários”, refere ainda.
Doadores não querem dinheiro nas mãos do Estado
Seis dos maiores bancos a operar em Portugal recolheram mais de 5,6 milhões de euros para ajudar as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande, entre contribuições de clientes, dos funcionários e das próprias instituições. Só o concerto solidário no Meo Arena — que juntou as três estações de televisão e as principais rádios nacionais numa emissão única — reuniu mais cerca de 1,1 milhões de euros, e à Fundação Calouste Gulbenkian juntaram-se a Altri e a Navigator para, em conjunto, doarem outro milhão de euros à mesma causa. Os cerca de oito milhões de euros vão servir para a reabilitação dos três concelhos — Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, além de Pedógão Grande — afetados pelas chamas.
Para a intervenção de fundo nos concelhos afetados é preciso dinheiro imediato — e ele existe. Mas até que ele chegasse às mãos das entidades que estão no terreno e conhecem as necessidades das vítimas deram-se passos muito curtos e cautelosos, porque a simples ideia de colocar tudo no mesmo bolo deu lugar a um levantamento popular junto de algumas das instituições que recolheram donativos.
491 casas e 48 empresas afetadas pelos incêndios. Ministro reúne com autarcas segunda-feira
Quando, na semana passada, começou a circular a mensagem de que o fundo Revita ia absorver os muitos milhões recolhidos, chegaram à União das Misericórdias (mas não só) protestos veementes: os doadores lembravam que tinham feito uma doação à instituição e não ao Estado. Apesar de o regulamento do Revita estabelecer que “as entidades doadoras podem solicitar a consignação do seu donativo a um beneficiário final específico a designar pelas mesmas”, os doadores não aceitavam que o seu dinheiro fosse gerido por entidades públicas. Resultado: além do fundo público, há hoje três entidades diferentes com acesso às verbas depositadas em contas solidárias abertas pelos sete principais bancos a operar em Portugal: União das Misericórdias, Cruz Vermelha Portuguesa, Cáritas de Coimbra.
Os mais de 418 mil euros reunidos pelo Millennium BCP foram colocados à disposição do fundo Revita, tal como o Santander fez com os 500 mil euros doados pelo próprio banco (os mais de 73 mil euros angariados na conta solidária foram divididos entre a União das Misericórdias Portuguesas e a Cruz Vermelha Portuguesa). O Montepio também entregou 467 mil euros à União das Misericórdias. O Novo Banco optou por disponibilizar os mais de 191 mil euros à Cáritas de Coimbra e o BPI confiou a uma “autarquia local” os 1,1 milhões de euros recolhidos. A Caixa Geral de Depósitos e a Fundação Calouste Gulbenkian (com mais de três milhões angariados ou diretamente doados) decidiram que a melhor forma de fazer com que o dinheiro “chegue rapidamente às pessoas” passava pela assinatura de um protocolo com a União das Misericórdias. Até esta segunda-feira, o Crédito Agrícola ainda estava a “ponderar qual a entidade a quem irá entregar a referida quantia por forma a melhor auxiliar as vítimas desta calamidade”.
Pagar a fatura: Estado e instituições assinam os cheques
O dinheiro que vai ser usado para reabilitar Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos está assim nas mãos do Revita e de três instituições sociais: União das Misericórdias, Cruz Vermelha e Cáritas de Coimbra. Com as primeiras casas entregues aos empreiteiros, é preciso começar a assinar cheques, e essa responsabilidade é repartida entre o Fundo público e os restantes organismos sociais.
Como? “As pessoas que têm de obras de reabilitação até cinco mil euros, basta apresentarem um orçamento, mandam fazer a intervenção, pedem a fatura, apresentam-na ao Revita e ela é paga”, concretiza Valdemar Lemos. Estas obras não requerem autorização prévia do conselho de gestão do fundo, que transfere a verba para as autarquias, às quais cabe pagar diretamente às empresas que realizarem as obras. Nas casas a precisar de obras de reabilitação mais profundas, com um custo superior a cinco mil euros e até ao limite máximo de 25 mil euros, as câmaras municipais entregam os tais três orçamentos ao conselho de gestão, que atribui a obra à empresa que tiver apresentado o orçamento de obra mais baixo, também sem parecer prévio.
Por fim, nos casos em que estiverem em causa obras de reconstrução — em que é obrigatória uma licença ou uma comunicação prévia às autarquias, independentemente do custo –, são também apresentados três orçamentos ao conselho de gestão do Revita, que valida a intervenção. Mas essas situações “vão demorar mais tempo”, admite ao Observador Fernando Lopes, presidente da câmara de Castanheira de Pera e o elemento escolhido para representar as autarquias no Fundo Revita. “Mas para mais de 100 casas — aliás para cerca de 120 casas –, não há projeto, não há licenciamento de obra porque é a reconstrução do que estava e assim acordámos com as câmaras”, destacou o ministro Pedro Marques na mesma entrevista à RTP.
Essa é uma parte da história. A outra parte cabe às instituições sociais, que recebem informação das câmaras municipais sobre as famílias que precisam de ajuda para reabilitar as suas casas. No caso das verbas disponibilizadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, CGD e empresas privadas à União das Misericórdias, esse apoio vai ser usado de forma muito concreta. A instituição presidida por Manuel Lemos vai avaliar que áreas ficam fora do apoio do fundo público e decidir onde pretende aplicar o dinheiro disponível. O protocolo assinado entre a Fundação Gulbenkian e o Instituto de Segurança Social deixa caminho livre para que o investimento seja feito “de forma livre, mas concertada”.
De qualquer das formas, “cabe aos municípios a verificação da completa execução dos apoios concedidos pelo fundo a cada agregado familiar”, prevê o regulamento do Revita. “Cabe igualmente às câmaras municipais verificar o cumprimento do pagamento das faturas emitidas que tenham decisão favorável do conselho de gestão do Fundo, através da instrução final de cada processo com os respetivos recibos”, refere o mesmo documento.