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“Perdemos um sapador por dia, seja ferido ou morto. É um trabalho perigoso.” Volodymyr, de 47 anos, é um dos soldados engenheiros do exército ucraniano, conhecidos como sapadores — aqueles que vão à frente para fazer o trabalho de desminagem antes de uma brigada poder avançar por um campo minado. No início do mês, Volodymyr estava a trabalhar na região de Zaporíjia, como parte do esforço da contraofensiva ucraniana, quando mostrou à agência Reuters como ele e os seus colegas estão em risco.
As forças armadas ucranianas não revelam quantos soldados morrem por dia por causa das minas terrestres, mas não há dúvidas de que serão muitos. A 13 de agosto, o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, deixava um apelo numa entrevista ao jornal The Guardian: pedia aos aliados internacionais que “expandissem e enviassem” treino para lidar com desminagem, porque os atuais seis mil sapadores de que o exército ucraniano dispõe não são suficientes.
O trabalho é duro. São mais de seis horas seguidas no terreno, com 12 quilos de material às costas, muitas vezes debaixo de fogo inimigo. Tudo por pouco mais de 400 euros de salário mensal, como relatou o El Mundo.
Chris Garrett é um britânico que tem estado a ajudar os soldados ucranianos nos esforços de desminagem na linha da frente, perto de Bakhmut e Soledar, desde o início da ofensiva de larga escala. Ao Observador, explica como é feito esse trabalho: “Quando a desminagem tem fins militares, estamos sempre limitados em termos de tempo. Por isso, o objetivo não é desminar todo o território, é apenas criar um corredor seguro por onde passar.”
Se na desminagem humanitária — o termo usado para trabalhos de desminagem feitos por civis, na retaguarda — um trabalhador limpa cerca de 10 metros quadrados por dia, os militares são capazes de percorrer dois quilómetros apenas numa manhã.
Mas, para além dos constrangimentos de tempo, há mais dificuldades para os soldados ucranianos. Com experiência anterior em trabalhos de desminagem no Myanmar, Chris garante nunca ter visto uma situação como aquela que agora acontece em território ucraniano. “Eles não têm o melhor equipamento e estão sempre sob ameaça de fogo de artilharia ou de ataques de drones”, conta este britânico. “É fácil limpar um terreno de minas quando ninguém está a disparar contra ti. Caso contrário, chega a uma altura em que tens de tirar os olhos do chão. Deixas de ser um sapador e passas a ser um soldado.”
O “terrorismo de minas” que está a atrasar a contraofensiva
Chris conhece bem a situação na Ucrânia. Em 2014, partiu para o Donbass para ajudar o exército ucraniano no conflito contra os separatistas pró-russos. Rapidamente deixou o combate e passou a focar-se nos esforços de desminagem. Esteve ali até 2017. Cinco anos depois, quando começou a invasão de larga escala, regressou de imediato. E aquilo que encontrou desta vez é muito pior, assegura.
De tal forma que este britânico — que traz nas costas uma enorme tatuagem com uma caveira e o aviso “Perigo: Minas” — diz nunca ter visto nada assim. As minas terrestres, garante, são a principal causa para o atraso na contraofensiva ucraniana neste momento. “Essa é a razão, a 100%”, assegura, a partir do Colorado (EUA), onde está agora para acompanhar a mãe do seu futuro filho, que vai nascer em breve. Os dois conheceram-se na Ucrânia, onde ela trabalhava como paramédica voluntária.
“Muitos dizem que a Ucrânia é neste momento o país mais minado do mundo e eu concordo com essa avaliação. Esta é uma estimativa, mas diria que há neste momento 6 a 8 milhões de minas por todo o território”, diz.
Os relatos que chegam dos jornalistas perto da linha da frente corroboram a avaliação sobre o atraso da contraofensiva. “Até podemos avançar com dez brigadas, mas não serve de nada, porque a cada meio metro há uma mina”, relatou um comandante do 78.º regimento, na região de Zaporíjia, ao Financial Times. “Estão por todo o lado.”
Razão pela qual o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou a Rússia de estar a praticar uma forma de “terrorismo de minas”, “ainda mais cruel do que os mísseis, porque não há nenhum sistema anti-minas que possa destruir parte da ameaça, como o nosso sistema de defesa anti-aérea”. E, na passada quarta-feira, reconheceu mesmo que este é o principal motivo para o atraso da controfensiva: “É muito difícil para nós, porque o campo minado é muito denso”, disse, acrescentando que os russos colocaram “milhares” de minas.
No terreno, a situação é cada vez mais precária. “A Ucrânia está a perder muitos engenheiros de combate na desminagem e não consegue substituí-los de forma suficientemente rápida. Já para não falar que é um trabalho incrivelmente stressante”, acrescenta Chris Garrett. “Normalmente numa guerra primeiro ataca-se com a força aérea e depois é mais fácil avançar a pé e desminar. Mas a Ucrânia não tem controlo sobre o espaço aéreo neste momento e por isso é difícil para eles avançarem a pé, quando estão debaixo de fogo.”
Ucrânia, o país mais minado do mundo. “Os dois lados usam minas, não vale a pena negar”
O recurso a minas terrestres na guerra da Ucrânia tem sido usado “em massa”. É essa a avaliação que Jon Cunliffe, diretor para as operações em terreno ucraniano da ONG Mines Advisory Group (MAG), faz da situação ao longo dos últimos 18 meses. “Centenas de quilómetros no leste do país estão agora fortemente contaminados com uma série de dispositivos”, afirma ao Observador este voluntário, que tem estado no terreno a ajudar nos esforços de desminagem humanitária. “O Iraque é há muito considerado o país mais minado do mundo, mas neste momento é altamente provável que a contaminação na Ucrânia seja ainda pior.”
As autoridades ucranianas estimam que quase 180 mil quilómetros quadrados de território estejam atualmente minados, uma área equivalente a duas vezes o tamanho de Portugal continental. A organização Human Rights Watch (HRW) encontrou provas de presença de minas terrestres (tanto antipessoais como antitanques) em 11 das 27 regiões da Ucrânia e estima que a Rússia tenha usado pelo menos 13 tipos diferentes de minas antipessoais.
A distinção entre minas antipessoais (ativadas quando são pisadas por uma pessoa) e antitanques (ativadas com o peso de um veículo) é importante, por uma razão: as primeiras estão banidas pela Convenção de Otava, de 1997, e as segundas não. A Rússia, porém, não é signatária da Convenção — juntamente com países como a China e os Estados Unidos —, ao contrário da Ucrânia. E a HRW denunciou em junho que Kiev terá disparado minas antipessoais para território ocupado pela Rússia em pelo menos um local: Izyum, entretanto libertado pelas forças ucranianas. Pelo menos 11 civis terão ficado feridos ou morrido por terem pisado estas minas, garante a organização.
O governo de Zelensky garantiu que está a investigar a situação e reforçou o seu compromisso com a Convenção, mas os especialistas ouvidos pelo Observador não têm dúvidas de que ambos os lados estão a recorrer a este instrumento militar regularmente. Hansjörg Eberle, diretor da Fundação Suíça de Desminagem (FSD), é taxativo: “Não há qualquer dúvida sobre isso”, afirma, em conversa com o Observador.
“Esta é uma guerra brutal, há muito pouco respeito pelos indivíduos, pelas questões do Direito e por aquilo que está certo ou errado”, acrescenta o perito, que destaca como a investigação sobre a origem das minas é dificultada pelo facto de ambos os exércitos usarem o mesmo material do tempo soviético.
O britânico Chris Garrett, que esteve na linha da frente, concorda. “Os dois lados usam minas terrestres, não vale a pena negarem”, diz. Mas aponta diferenças na forma como os dois exércitos recorrem a este instrumento letal: “A Ucrânia é a força mais fraca, tem menos soldados e equipamento, e recorre às minas de forma estratégica para travar a ofensiva russa. É um mal necessário.”
Garrett destaca também como as forças armadas ucranianas têm feito esforços para desminar imediatamente, assim que uma zona é reconquistada. Mas admite que o trabalho tem falhas: “Quando um território é disputado durante cinco ou seis meses, é difícil manter os mapas das minas atualizados. Há minas que já ninguém se lembra de ter colocado, há minas que foram colocadas por pessoas que entretanto morreram em combate… Há muitas variantes.”
Uma só mina pode “aterrorizar toda uma aldeia”. Os efeitos na população civil
Mas a longo prazo, os efeitos das minas nunca desaparecem. Quando a região de Izyum foi reconquistada pelo exército ucraniano, Lyudmila Ivanenka saiu de casa para celebrar. No regresso, pisou uma mina antipessoal. “O meu pé desapareceu. Era só um pedaço de carne pendurado no tornozelo”, contou dias depois ao Washington Post, já no hospital.
Segundo as autoridades ucranianas, desde a invasão de grande escala da Rússia que 185 civis morreram e 404 ficaram feridos por causa de minas terrestres. O Mines Advisory Group fala em 611 incidentes no total, proporcionalmente muitos mais do que os quase dois mil registados no Donbass durante o conflito de 2014-2022.
É por isso que, para além da desminagem militar na linha da frente, várias ONG estão na retaguarda a fazer desminagem humanitária. O processo é gerido pelas autoridades ucranianas, que dão acreditações a operadores no terreno. A FSD de Hansjörg Eberle é uma delas.
Cada vez que há uma suspeita de um incidente com um civil, a equipa de Eberle parte num Land Rover para o terreno para fazer entrevistas e cruzar informação. Depois, começa o lento processo de deteção de metal. “Temos de revirar toda a terra e trazer para a superfície cada moeda, fio de metal, fragmento de dispositivo”, ilustra o suíço. “Porque cada um deles pode ser potencialmente uma mina e é preciso verificar. É por isso que este é um processo dolorosamente lento, não há uma solução rápida.”
E as equipas no terreno não são suficientes para a dimensão do problema, acrescenta o especialista. “Temos 20 equipas, devíamos ter 200. Com tão pouca capacidade, vamos demorar décadas.”
Entretanto, as minas vão deixando o seu rasto de destruição. Para além do chão, já foram encontradas minas nos cadáveres de soldados deixados para trás, em eletrodomésticos e até em brinquedos. Este último pormenor é simbólico de uma epidemia que tem tendência a ferir e matar sobretudo crianças.
“Cerca de 50% dos acidentes com civis são com crianças”, decreta Eberle, numa avaliação corroborada por Jon Cunliffe do MAG. “Porquê? Por causa da curiosidade delas. Vão para os bosques, usam um pau para mexer nalguma coisa, tentam fazer uma fogueira, vêm uma coisa a sair do chão e tocam-lhe… As crianças estão em risco e é por isso que damos formação para as alertar e diminuir o perigo.”
A organização de Cunliffe faz o mesmo, dando palestras em aldeias e nas escolas. “Mas, infelizmente, vemos repetidamente jovens a perder a vida, muitas vezes em resultado de conflitos que acabaram muitos anos antes de eles terem nascido”, aponta. E é esse o futuro que se antecipa para as crianças ucranianas, até para aquelas que ainda não nasceram. E que se agrava a cada dia, à medida que a guerra se prolonga.
Para os adultos, os efeitos também se fazem sentir de outra forma, alerta Elbert: “Um só incidente com uma mina consegue aterrorizar toda uma aldeia. Se as pessoas acham que estão em perigo, toda a sua vida é afetada.” Vários estudos apontam para a prevalência de stress pós-traumático, depressão e ansiedade nas comunidades afetadas pela presença de minas terrestres, criando um desafio adicional para o futuro de países com economias destruídas por conflitos.
Os efeitos económicos também existem logo durante o decorrer do conflito e a Ucrânia é um exemplo clássico disso. A prevalência de minas no território está a fazer com que os agricultores ucranianos deixem de plantar as culturas habituais. Segundo o governo, este ano haverá menos 45% de colheita do que em 2021, antes de o conflito de larga escala começar. As Nações Unidas estimam que 12% do território agrícola do país esteja minado, mas é impossível plantar quando não se tem a certeza dos locais.
O think tank eslovaco GLOBSEC acusa a Rússia de ter colocado minas “deliberadamente em terrenos agrícolas para os tornar impossíveis de rentabilizar economicamente”. Segundo o grupo, quase cinco milhões de hectares de terreno agrícola estão neste momento inutilizados devido à suspeita de presença de minas ou contaminação por dispositivos como rockets.
Durante o conflito no Donbass, alguns agricultores chamavam às minas “batatas”. “Está ali uma batata, não vás para ali”, relatava um deles a uma televisão ucraniana, como relembra o Washington Post. Agora, seis anos depois desse momento, há “batatas” por todo o lado, mas já ninguém arrisca cultivar.
São precisos milhares de milhões e décadas para resolver o problema
Perante o desastre provocado pelas minas terrestres na Ucrânia, o Ocidente tem-se mobilizado. A União Europeia alocou quase 40 milhões de euros para lidar com o problema, os Estados Unidos quase 100 milhões. Países como o Canadá, o Japão e o Reino Unido juntaram-se aos esforços. França e Alemanha deram as suas próprias contribuições para lá do financiamento comunitário.
Mas não é suficiente. O Banco Mundial estima que sejam necessários mais de 37 mil milhões de dólares para desminar toda a Ucrânia — em média, o custo por mina é de mil dólares.
Até na desminagem militar, para fins imediatos e mais contidos, a ajuda não tem sido suficiente, diz-se no terreno. A Ucrânia recebeu apenas 15% do material de desminagem que pediu aos parceiros ocidentais, garantiu um comandante ao Washington Post. E, como é equipamento grande e barulhento, é facilmente destruído por ataques de drones russos.
“Desde que a contraofensiva começou que os parceiros ocidentais perceberam que havia uma grande necessidade de treino e equipamento para desminagem”, reconhece Chris Garrett, que diz ter sentido a diferença no terreno. “Mas não é suficiente. Perde-se muito equipamento em ataques de artilharia ou de drones. Um drone de 200 dólares é suficiente para destruir equipamento caro e que não pode ser substituído rapidamente.”
Na retaguarda, a desminagem humanitária enfrenta outros desafios. “Há muito dinheiro a ser investido, não é como se não se estivesse a fazer nada”, aponta Hansjörg Eberle. “Mas não é só uma questão de dinheiro, é uma questão de escala. Quando recebemos fundos, não ficamos logo operacionais três dias depois. É preciso encontrar as pessoas, treiná-las e quando elas começam não têm a rapidez de alguém que faz isto há anos.”
É por isso que os especialistas contactados pelo Observador não têm dúvidas: o problema veio para ficar e continuará à espera de ser resolvido durante as próximas décadas. “Está a aumentar a cada dia, porque a cada dia há mais a serem colocadas e, a certa altura, vão ter de ser retiradas”, aponta o diretor da FSD.
“Mesmo se a guerra acabasse hoje, temos trabalho para os próximos 20 anos ou mais. A escala do problema é enorme.”
Chris Garrett, que agora acompanha os esforços de desminagem à distância e tenta reunir apoios através de uma ONG, é ainda mais dramático. “Eu sei que muitos dizem 20 ou 30 anos, mas eu acho que serão mais uns 100”, afirma, com um suspiro.
“Basta olharmos para o que aconteceu com outros países. Hoje ainda há desminagem a acontecer no Camboja e no Kosovo. E esses conflitos acabaram há anos.”