Para perceber a origem do problema que afetou a região envolvente da barragem de Cedillo no outono de 2019, é preciso recuar até 1998. Em novembro desse ano, na cidade de Albufeira, representantes dos dois governos assinaram um protocolo relativo à gestão dos vários rios ibéricos que atravessam os territórios dos dois países: a “Convenção sobre Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas”, que ficaria conhecida simplesmente como Convenção de Albufeira.
No preâmbulo do documento, lembra-se o “tradicional espírito de amizade e cooperação entre as duas nações” e sublinha-se a importância de “aperfeiçoar o regime jurídico relativo às bacias hidrográficas luso-espanholas”. O objetivo era conciliar “a proteção do ambiente e o aproveitamento dos recursos hídricos necessários para o desenvolvimento sustentável de ambos os países”.
Já na altura, a Convenção de Albufeira pretendia “prevenir em comum os riscos que podem afetar as águas” partilhadas e “proteger os ecossistemas aquáticos e terrestres deles dependentes”. Mas o cumprimento rigoroso desta convenção haveria de estar, vinte anos depois, na origem de uma crise ambiental que colocou em risco as mesmas águas, ecossistemas e atividades económicas que pretendia proteger.
O texto original da Convenção de Albufeira previa, entre outras questões, a quantidade de água que tem de passar todos os anos por determinados pontos de controlo nos vários rios partilhados. O objetivo é garantir que os rios, interrompidos dezenas de vezes por barragens e desvios, mantêm os seus caudais minimamente estáveis — para que possam cumprir as suas funções naturais ao mesmo tempo que têm aproveitamento económico.
No que toca ao rio Tejo, a Convenção de Albufeira determina que pela barragem de Cedillo — última barreira antes da entrada do rio em Portugal, instalada no Tejo internacional — têm de passar todos os anos, no mínimo, 2.700 hectómetros cúbicos de água. Ou seja, 2,7 biliões de litros de água, o suficiente para encher mais de um milhão de piscinas olímpicas.
A única explicação adicional a esta norma incluída na Convenção de Albufeira era relativa à possibilidade de situações de exceção: se a chuva fosse significativamente menor do que a média, os limites não teriam de ser cumpridos.
Só dez anos depois, em 2008, foi assinado um protocolo adicional à convenção que veio dar resposta a uma questão fundamental levantada pela primeira norma: quando e a que ritmo é que a água tem de ser libertada nas barragens. É que, em teoria, de acordo com a versão original do documento, os tais 2.700 hectómetros cúbicos de água podiam ser libertados por Espanha em qualquer momento do ano — e não necessariamente de forma gradual ao longo dos meses.
Assim, em 2008, ficou decidido que:
- Entre 1 de outubro e 31 de dezembro, têm de passar pela barragem de Cedillo pelo menos 295 hectómetros cúbicos de água;
- Entre 1 de janeiro e 31 de março, têm de ser libertados 350 hectómetros cúbicos;
- Entre 1 de abril e 30 de junho, Espanha tem de lançar 220 hectómetros cúbicos,
- E entre 1 de julho e 30 de setembro, têm de ser libertados 130 hectómetros cúbicos na barragem de Cedillo.
Além disso, o protocolo adicional acrescentou outra norma: todas as semanas, Espanha tinha de libertar pelo menos sete hectómetros cúbicos de água a partir da barragem de Cedillo para Portugal. Em teoria, a introdução destes limites trimestrais e semanais seria suficiente para impedir o rio Tejo de secar — ou seja, de ficar sem a água indispensável para manter os ecossistemas e as atividades económicas que dele dependem.
Porém, não é bem assim. Na verdade, apenas havendo água em abundância, muito acima dos limites mínimos estabelecidos, é que os problemas se evitam.
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Paulo Constantino, porta-voz do Movimento Pró-Tejo — que, no ano passado, liderou as denúncias relativas à falta de água no rio —, vê no protocolo adicional de 2008 “um bom princípio”, já que introduz a “distribuição ao longo do ano” da água que passa pelas barragens, mas que é insuficiente para prevenir problemas em alturas de seca.
Somando os limites mínimos trimestrais, conclui-se que apenas 995 hectómetros cúbicos de água estão distribuídos pelos trimestres do ano — o que representa 37% do total anual que deve passar na barragem de Cedillo. O envio dos restantes 63% — 1.705 hectómetros cúbicos de água — por parte de Espanha não está temporalmente limitado.
A legislação, argumenta Paulo Constantino ao Observador, “permite que 63% seja enviado, por absurdo, numa única hora, ficando ao dispor das empresas concessionárias hidroelétricas de Espanha a gestão desses 63% de caudal anual, que nos está afeto em termos de partilhas de água, para uma gestão sustentável do rio”. “Portanto, enviam quando desejam”. No caso da barragem de Cedillo, é a Iberdrola que detém a concessão para a produção de energia elétrica. Isto significa que a empresa pode decidir, com base nas suas necessidades de produção de energia, como fazer a gestão das águas que Espanha está obrigada a passar a Portugal — desde que cumpra o caudal total e os parcelares. Se o ano hidrológico estiver perto do fim e o total de água definido na Convenção de Albufeira ainda não tiver sido passado para Portugal — como aconteceu no ano passado — a decisão passa (como passou) a ser do governo espanhol.
Segundo Paulo Constantino, ao longo dos últimos dez anos, Espanha tem enviado para Portugal a partir da barragem de Cedillo uma média de 3.000 hectómetros cúbicos acima do definido no acordo — mais de o dobro dos 2.700 a que está obrigada. Por isso, nunca tem faltado água ao rio Tejo — independentemente da forma como as descargas da barragem são geridas.
No ano passado, contudo, a falta de água nas barragens espanholas — na sequência de uma época com pouca chuva — levou a que Espanha, em vez de enviar uma quantidade de água superior à determinada pela Convenção de Albufeira, se tenha, na verdade, esforçado por cumprir apenas os limites mínimos. Com efeito, em todo o ano, Espanha cumpriu os mínimos trimestrais definidos pela convenção.
Mas não chegou. Quando, perto do final do ano hidrológico [os anos hidrológicos são medidos entre 1 de outubro e 30 de setembro] de 2018/19, ainda tinha de libertar para Portugal perto de metade do total anual de água, foi necessário esvaziar quase por completo a albufeira de Cedillo — tudo para cumprir os limites da Convenção de Albufeira. A decisão causou um desastre ambiental na região envolvente da barragem, que ficou sem água.
Pescadores e operadores turísticos foram os principais afetados, uma vez que os barcos estiveram perto de três meses sem conseguir navegar no rio.
Para os ambientalistas, o desastre podia ter sido revertido caso a totalidade do caudal mínimo anual estivesse distribuído pelos quatro trimestres do ano. Isto, defende Paulo Constantino, impediria que a maioria do caudal que tem de ser libertado na barragem de fosse deixado para o final do ano hidrológico, mesmo em períodos de seca.
O responsável do Movimento Pró-Tejo lembra que nem sempre estamos em período de seca. Mas, quando a quantidade de água disponível é menor, surge o problema, porque têm de ser “geridos valores mínimos”. Ao permitir que dois terços de toda a água sejam enviados apenas no final do ano, a Convenção deixa que, em períodos de seca, falte água ao longo do ano.
“Aquela água é enviada de repente, enquanto noutras alturas faltou água para a agricultura, faltou água para empurrar a água salgada na zona da foz e não permitir a penetração de água salgada, faltou água para a prática de desportos aquáticos e para o turismo de natureza e fluvial no rio”, afirma Paulo Constantino. “Neste período, quem está afetado é quem teve o impacto do vazamento da albufeira de Cedillo.”
O ambientalista acusa o Governo português de “permissividade” na forma como tem dialogado com Espanha no âmbito da gestão do rio Tejo. Relativamente aos 2.700 hectómetros cúbicos a que Portugal tem direito por ano, diz que deveria ser Portugal a definir as regras: “Devemos ser nós a determinar a sua distribuição, aquela que nos é mais benéfica”. Para isso, o movimento defende uma revisão da Convenção de Albufeira que passe a incluir uma distribuição total dos caudais pelos trimestres do ano. “Era importante que [a convenção] fosse revista o mais rapidamente possível”, sustenta Paulo Constantino.
Pelas contas do Movimento Pró-Tejo, seria mesmo possível triplicar o caudal constante do rio apenas com a distribuição dos 2.700 hectómetros cúbicos anuais pelos trimestres — sem que seja necessário aumentar o mínimo anual.
Neste ponto, o Governo e os ambientalistas estão de acordo: seria benéfico para Portugal que a descarga do caudal anual fosse mais distribuída ao longo do ano. Porém, para o Governo português, a Convenção de Albufeira não deve ser revista: apenas o protocolo adicional de 2008 deverá ser mexido. Isto porque, segundo admite o ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, em entrevista ao Observador, “a Convenção de Albufeira foi mesmo uma convenção de oportunidade” — oportunidade que poderá não se repetir.
[Veja aqui a entrevista ao ministro do Ambiente e da Ação Climática]
“Rever a Convenção de Albufeira é querer ter mais água”, afirma Matos Fernandes. “Eu próprio já ouvi a pró-Tejo a dizer que não há maneira de ir buscar mais água a Espanha e já ouvi dois dos meus antecessores, o António Carmona Rodrigues, o Nunes Correia, a dizerem que de facto não há maneira, sequer… e é bom nem o tentar.”
Para o ministro do Ambiente, a década de 1990 foi um momento “em que Portugal e Espanha se conseguiram entender numa convenção excecionalmente robusta do ponto de vista jurídico”. Por isso, querer rever a Convenção de Albufeira “era mesmo uma grande notícia que eu podia dar a Espanha”, sublinha Matos Fernandes. O que deve ser feito, defende o ministro, é, “sem mexer na baliza grande, tentar em duas balizas mais pequenas: uma é passar do semanal para o diário; outra, que os mínimos dos quatro trimestres possam subir em face do mínimo anual”. Ou seja, que os sete hectómetros cúbicos que Espanha tem de enviar por semana sejam transformados em um hectómetro por dia e que a porção do total que está abrangida pelos limites mínimos trimestrais suba.
Mais do que isto, Matos Fernandes não quer fazer. Os contactos entre Portugal e Espanha têm sido frequentes — mais ainda durante o período agudo desta crise, que Espanha se comprometeu a resolver — e resolveu —, até dezembro do ano passado. “Não é a primeira conversa que nós estamos a ter. Nem de perto nem de longe”, assegura o ministro, salientando, contudo, os riscos de rever a Convenção de Albufeira: “Pode ser do lado de lá dizerem ‘então bom, vamos mesmo rever, vamos fazer aqui um modelo hidrográfico a meias, transparente, claro, e vamos ver quanta água temos para transferir’”. “Eu, aí, de facto, não quero mexer.”
Com a gestão dos rios transformada numa complexa questão diplomática entre Portugal e Espanha pelo desastre de 2019, o ministro do Ambiente tem agora de negociar a forma como a Convenção de Albufeira pode ser renegociada para que situações como as do ano passado não se repitam.
Na entrevista que deu ao Observador, ainda em novembro do ano passado, o ministro Matos Fernandes mostrava disponibilidade para dialogar com Espanha: “Para já, tivemos uma crise aguda. A crise, não posso dizer que passou, mas quase que passou. E, portanto, agora é então o tempo de falar no mais longo prazo.”
As imagens de setembro de 2019 — e as histórias de pessoas como Conceição e Robert — ficam, agora, como memória do que pode voltar falhar se as regras não mudarem.
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