Um homem de fato e gravata aproxima-se de Manuel Santos. “Tiene Bélgica y España?”, pergunta num espanhol que denuncia não ser essa a sua língua materna. Manuel responde que sim, o cliente abre uma caderneta e começa a dizer números e nomes. Casillas, Piqué, Courtois, Witsel. “Sí, no, sí”, vai dizendo Manuel. Corridas as seleções espanhola e belga, o engravatado leva seis cromos. Um euro e meio.
Manuel Santos vende e troca cromos junto à entrada da estação do Rossio, em Lisboa. Tem de tudo: animais, criaturas fantásticas baseadas em desenhos animados, futebol. Por estes dias, é o “desporto-rei” que gera mais procura, especialmente a coleção do Mundial 2014. “Eu disto já tenho 30 anos e picos, quase 40. Já tinha direito à reforma”, brinca, para a seguir explicar que não vendeu cromos a vida toda.
A princípio, “só fazia isto aos sábados”, enquanto trabalhava na fábrica da Regina, em Alcântara. “Comecei lá em baixo, na Rua Augusta, ao lado do Banco Nacional Ultramarino”. Quando saiu da fábrica de chocolates trabalhou numa casa de decorações e foi cantoneiro da Câmara Municipal de Lisboa. “Eu até gostava de ser varredor! Entrava às oito, saía às três” e ainda ia vender cromos para a Baixa. Depois quiseram que tirasse um curso. “Tirar curso para ser varredor, não cabe na cabeça de ninguém”. Deixou a profissão e passou a vender cromos a tempo inteiro. Desde 1993.
Na envolvência da estação do Rossio há, pelo menos, quatro negociantes de cromos. Um deles trabalha a menos de um metro de Manuel. “Não falo com esse senhor”, atira, sem querer explicar porquê. O senhor do lado é António Matias. No Inverno costuma vender castanhas na zona e tem um pequeno cartaz com o desenho de uma coroa em que se intitula Rei dos Cromos. “Ele já me roubou uma caixa de tudo o que era bom”, acusa António, sem que os dois homens se olhem uma única vez. “Aqui não há reis”, replica Manuel.
A questão monárquica no que toca aos cromos é, além de alvo de polémica (como está visto), bipolar. Dois homens reclamam o trono. Além de António Matias há Albino. Será ele o mais famoso vendedor da cidade e tem um quiosque nos Restauradores. Quando o Observador tentou falar com ele o quiosque estava fechado e do “rei” nem sinal. De volta à estação do Rossio, António, o outro “rei”, garante: “Eu é que chamei a atenção ao Rei para ser Rei”. Ou seja, foi ele que deu a ideia a Albino de colocar um cartaz no quiosque a intitular-se Rei dos Cromos. Mas António não abdicou do título, e assim se mantém dividido o reino. “Eu tenho coroa, ele não”, ri-se.
Baralhado com tanta realeza? Calma, isto ainda não acabou…
“Isso é tudo papagaiada”, dispara Maciel Ferreira, outro vendedor de cromos encostado à entrada da estação do Rossio. Para ele, homem de poucas palavras, não há reis no negócio.
“Sabe o que é que o Leonardo da Vinci dizia? Rei qualquer um pode ser, agora Leonardo é que não”, comenta João Andrade, conhecido como Cigano, que negoceia os seus cromos a poucos metros de Maciel. “Quem lhe arranja os cromos [ao rei dos Restauradores] somos nós”, afirma Maciel, que diz que nos últimos dias “já quatro ou cinco pessoas” foram ter com eles depois de não encontrarem o que queriam no Rei dos Cromos.
Títulos à parte, certo é que o negócio é muito condicionado pela altura do ano. Verões de grandes competições da FIFA e época de arranque dos campeonatos são propícios ao aumento do número de clientes. “Às vezes faço cinco euros” num dia de venda, das 9h às 18h, refere António Matias, que tem uma reforma de 516 euros. “Nesta altura está a dar mais qualquer coisa por causa do Mundial”. Com a aproximação da competição no Brasil, são os cromos para a caderneta oficial que têm tido mais saída. “Já vendi cento e tal caixas”, relata António. Cada caixa tem 250 cromos.
A corte vai à bola
A caderneta de cromos do Mundial, produzida pela Panini e com o aval da FIFA, foi lançada a 8 de maio. Pela segunda vez – a primeira foi em 2010, na competição da África do Sul – há também uma caderneta virtual e uma aplicação para telemóveis. A caderneta tem 639 cromos. Nas lojas, cada carteira custa 60 cêntimos e traz cinco. Aqui, cada um ronda os 25 cêntimos. “É um bocado complicado explicar às pessoas porque é que aqui é mais caro. É que aqui não levam repetidos, na carteira levam”, diz Manuel.
Os clientes não param de chegar: um homem que quer mais de cem cromos de seleções, uma mulher que não veio comprar, mas trocar… Se o cliente trouxer quatro cromos pode trocá-los por um.
O mercado de trocas é, aliás, o que ganha mais importância em vésperas de campeonatos mundiais de futebol. “A altura mais forte é quando começam os jogos. São centenas de pessoas aqui a trocarem cromos”, conta Maciel, que refere que o interesse dos clientes aumenta se a seleção portuguesa ganhar jogos e avançar na competição. “Já estou a fazer uma coleção para o caso de Portugal ser campeão do mundo”, diz, entre risos, Cigano. Parece improvável, mas no reino dos cromos tudo é possível.