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Publicação de diretrizes internacionais pela OMS em abril de 2020 ditou uma mudança nos critérios de contabilização de óbitos
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Publicação de diretrizes internacionais pela OMS em abril de 2020 ditou uma mudança nos critérios de contabilização de óbitos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Publicação de diretrizes internacionais pela OMS em abril de 2020 ditou uma mudança nos critérios de contabilização de óbitos

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mortes por Covid ou com Covid? DGS diz que só entram no boletim óbitos causados pelo vírus. Como funciona a equipa que tem a última palavra

Até abril de 2020 entravam nos boletins todos os óbitos de infetados. OMS mudou as regras e agora só conta quem morreu por Covid. Falámos com o líder da equipa de 10 pessoas que analisa as certidões.

Às 20h de quinta-feira, dia 10, enquanto o Observador entrevistava o médico de saúde pública Pedro Pinto Leite, uma equipa com 10 elementos, entre técnicos e médicos, analisava todos os certificados de óbitos de pessoas infetadas com SARS-CoV-2 registados nas 24 horas anteriores no Sistema de Informação de Certificados de Óbito e que surgiram na sexta-feira no boletim da Covid-19 da Direção-Geral da Saúde (DGS). É esta equipa que garante que os números de mortes comunicados à população através dos relatórios diários de situação refletem o mais possível a verdadeira dimensão dos óbitos por Covid-19 — sem contar com quem, estando infetado pelo coronavírus, acaba por morrer devido a outras causas.

Pedro Pinto Leite é quem lidera esta equipa integrada na Direção de Serviços de Informação e Análise (um núcleo da DGS) e foi quem explicou ao Observador pela primeira vez como funciona, passo a passo, a avaliação dos certificados de óbitos dos doentes infetados com o SARS-CoV-2. O médico esclareceu quais são os critérios utilizados: neste momento, e desde abril de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou diretrizes para uniformizar as regras em todos os países aderentes, só entram para as estatísticas as mortes por Covid-19. Até essa altura, durante um “período muito curto de tempo”, todos os óbitos de pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2 entravam nos números.

O número de técnicos e médicos que fazem parte desta equipa também foi adaptado ao longo do tempo: chegaram a ser 13 os profissionais de saúde que todos os dias, incluindo fins de semana e feriados, se dedicavam a investigar os certificados de óbitos. A análise dos certificados de óbito de pessoas positivas é a prioridade da Direção de Serviços de Informação e Análise desde que a pandemia começou, mas o processo é aplicado a todas as outras mortes registadas em Portugal.

Foi a publicação destas diretrizes da OMS que ditou uma mudança nos critérios de contabilização de óbitos associados à infeção por SARS-CoV-2 em Portugal: antes, todas as pessoas que morriam infetadas, mesmo que a infeção não fosse a causa da morte, entravam no boletim da DGS. Com a publicação do documento, passaram a contar apenas os óbitos por causa da Covid-19, excluindo-se quem morria com Covid-19.

Esta análise não começou depois do surgimento da pandemia: sempre houve na DGS uma equipa de técnicos responsáveis por analisar os óbitos em Portugal (todos eles, independentemente das causas) para garantir que o preenchimento dos documentos correspondia aos critérios internacionais; e que as mortes entravam nas estatísticas rotuladas com as causas corretas.

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A triagem era realizada com base em dois documentos essenciais: a Orientação 020/2013, que comunicava a todos os médicos e instituições de saúde como deviam ser preenchidos os certificados de óbitos digitais na plataforma SICO; e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (ICD10), um documento atualizado regularmente pela OMS que esclarece os codificadores — assim se chamam os profissionais de saúde que registam os óbitos — sobre como devem classificar as mortes.

Pouco depois da chegada da pandemia de Covid-19, outros dois documentos entraram na literatura dos codificadores: um publicado a 16 de abril de 2020 pela OMS que explana as diretrizes internacionais para certificação e classificação da Covid-19 como causa de morte; e uma nota técnica de junho de 2020 que resume os passos que permitem confirmar se um óbito foi ou não causado pela Covid-19.

Os países contam as mortes por Covid de forma diferente. Contagem em Portugal considera mais casos

Foi a publicação destas diretrizes da OMS que ditou uma mudança nos critérios de contabilização de óbitos associados à infeção por SARS-CoV-2 em Portugal: antes, todas as pessoas que morriam infetadas, mesmo que a infeção não fosse a causa da morte, entravam no boletim da DGS. Com a publicação do documento, passaram a contar apenas os óbitos por causa da Covid-19, excluindo-se quem morria por outras causas mas estava infetado com Covid-19. Desde o anúncio do primeiro óbito de uma pessoa positiva (a 17 de março) até à publicação do documento da OMS tinham-se registado 629 mortes de pessoas infetadas pelo novo coronavírus.

Como é que se lê um certificado de óbito? Só é por Covid se essa for a “causa básica da morte”

Segundo estas diretrizes, os óbitos são consideradas como sendo por Covid-19 quando resultam de uma “doença clinicamente compatível” com esta doença, “salvo se existir uma causa alternativa clara de morte que não pode estar associada à doença Covid”, como um traumatismo; ou se tiver passado um período de recuperação completa entre a Covid-19 e o óbito. “Uma morte por Covid-19 não pode ser atribuída a outra doença, como uma neoplasia, e deve ser contada independentemente de condições pré-existentes que são suspeitas de desencadear uma evolução severa da Covid-19”, conclui o primeiro documento.

Ao registarem um óbito da plataforma SICO, os médicos encontram um formulário cujos campos para preenchimento condizem com o formulário apresentado nas diretrizes da OMS. Depois da identificação da pessoa que morreu — através do nome, número de utente, morada, filiação, estado civil, sexo, data de nascimento, profissão e naturalidade —, encontram-se duas partes.

Só entram para as estatísticas da Covid-19, e para os relatórios de situação publicados diariamente, os casos de óbitos cuja causa subjacente foi a doença provocada pelo SARS-CoV-2 — não todos os casos de pessoas cujos certificados mencionam a infeção ou a Covid-19, mesmo que ela tenha sido assinalada como um fator contribuinte para a morte na segunda parte.

Na primeira, o médico “reporta a cadeia de eventos que levaram diretamente à morte”, define Pedro Pinto Leite. Ou seja, indica-se a doença ou condição que levou diretamente à morte e discrimina, em alíneas, se ela foi consequência de outra condição anterior. Por exemplo, numa certidão de óbito provocada por Covid-19, é comum encontrar como causa principal a “síndrome da insuficiência respiratória aguda”. Mas os médicos devem especificar que essa condição foi resultado de outras patologias — por exemplo, de uma pneumonia que, por sua vez, foi causada pela Covid-19. A Covid-19, que surge assim na terceira alínea, é considerada a “causa básica da morte” e o caso entra para as estatísticas dos óbitos desta doença.

Depois, numa segunda parte, os médicos devem comunicar “outras doenças ou comorbilidades que contribuíram para a morte, mas não resultaram na causa básica da morte indicada na parte 1”, prossegue o médico de saúde pública. Imagine-se o caso de um doente, infetado com o SARS-CoV-2, que morreu com uma insuficiência cardíaca precipitada por um enfarte do miocárdio. Se o facto de estar infetado contribuiu para a morte do doente, mas não for a causa final da morte, o médico deve apontar a Covid-19 num outro campo dedicado a outros problemas que tenham contribuído para o falecimento, mas que não tenham sido mencionados na primeira parte.

Ainda assim, segundo as regras da OMS, a “causa básica de morte” será o enfarte do miocárdio; e o óbito não entrará para as estatísticas da Covid-19. E o contrário também é válido: se um doente com sida sofrer uma insuficiência respiratória após ter desenvolvido Covid-19, a causa da morte vai ser a doença provocada pelo coronavírus e a morte não entrará para as estatísticas da sida.

Segundo a DGS, estas são as orientações que as autoridades de saúde seguem atualmente: só entram para as estatísticas da Covid-19, e para os relatórios de situação publicados diariamente, os casos de óbitos cuja causa subjacente foi a doença provocada pelo SARS-CoV-2 — não todos os casos de pessoas cujos certificados mencionam a infeção ou a Covid-19, mesmo que ela tenha sido assinalada como um fator contribuinte para a morte na segunda parte. Ao Observador, fonte oficial da DGS garante que “apenas são reportados no relatório de situação diário os óbitos por causa da Covid-19 (devido à Covid-19), seguindo as regras da OMS para a codificação dos certificados de óbito”: “Não são reportados os óbitos de pessoas que, embora infetadas com Covid-19, não tenha sido a infeção a causa que levou ao óbito”.

Pedro Pinto Leite diz que tudo depende da “melhor opinião médica” do clínico que notifica o óbito às autoridades de saúde. Mas há uma forma de garantir uma maior uniformização dos critérios: a comunicação entre os elementos da Direção de Serviços de Informação e Análise, sobretudo dos dois médicos que a compõem atualmente, e os médicos responsáveis pelo preenchimento do certificado de óbito.

Decisão depende da “melhor opinião médica”, mas DGS pode pedir esclarecimentos

Em declarações ao Observador, vários médicos confirmaram que, independentemente da causa da morte, sempre que notificam as autoridades de saúde de um óbito devem informar se se trata de um “paciente infetado por SARS-CoV-2”. E a DGS confirma que são analisados todos os certificados de óbito com esse campo assinalado, só que “conseguem filtrar-se quem estava infetado com o SARS-CoV-2 e quem não estava porque isso é mesmo informado”, confirmou Pedro Pinto Leite: “Mas depois a parte da codificação fica do nosso lado”, não dos médicos nos hospitais.

A última palavra é desta equipa técnica que se responsabiliza pelos óbitos de todas as pessoas que estavam infetadas pelo novo coronavírus e fazem a triagem daqueles em que a Covid-19 surge como causa subjacente da morte e daqueles em que ela não aparece discriminada como motivo último do óbito. É esse o conselho da OMS: “Uma verificação manual de plausibilidade é recomendada para certificados em que a Covid-19 é notificada, em particular para os atestados em que a Covid-19 foi notificada, mas não foi selecionada como a causa básica de morte para fins estatísticos”.

O sistema não é perfeito e continua a abrir portas à subjetividade. Mesmo com todas estas regras, dois casos semelhantes podem ter interpretações diferentes por médicos distintos. Imagine-se, por exemplo, o caso de alguém com Covid-19 que morre após uma insuficiência cardíaca provocada por um enfarte do miocárdio: o que acontece se um médico considerar que a Covid-19 desencadeou ativamente esse enfarte, mencionando a infeção como a causa básica da morte; e outro considerar que a Covid-19 meramente contribuiu para o desfecho do óbito do doente, atirando o caso para fora das estatísticas das autoridades de saúde?

Nesta leitura entram não só a experiência médica e as indicações que surgem nos documentos das autoridades de saúde internacionais — o ICD10 sugere que  “as circunstâncias da admissão do doente governam sempre a seleção do diagnóstico principal” —, mas também quaisquer documentos que venham anexados ao certificado de óbito.

Pedro Pinto Leite diz que tudo depende da “melhor opinião médica” do clínico que notifica o óbito às autoridades de saúde. Mas há uma forma de garantir uma maior uniformização dos critérios: a comunicação entre os elementos da Direção de Serviços de Informação e Análise, sobretudo dos dois médicos que a compõem atualmente, e os médicos responsáveis pelo preenchimento do certificado de óbito. “Muitas vezes, tiram-se dúvidas para entender a cadeia de eventos que outro médico colocou na causa de morte. Isso permite pedir esclarecimentos e eventualmente retificar as informações”, contou o médico de saúde pública.

Nesta leitura entram não só a experiência médica e as indicações que surgem nos documentos das autoridades de saúde internacionais — o ICD10 sugere que  “as circunstâncias da admissão do doente governam sempre a seleção do diagnóstico principal”, definida como “a condição estabelecida após um estudo principalmente responsável por originar o internamento do doente no hospital” —, mas também quaisquer documentos que venham anexados ao certificado de óbito. E isto inclui quaisquer registos médicos do doente, como exames e análises, assim como a autópsia clínica ou médico-legal — que é extremamente rara em doentes com Covid-19.

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