Umas férias de verão, roupa lavada ao sol, maresia e o refogado de um almoço ao lume. São assim as recordações que Luís Clara Gomes guarda com mais nostalgia. “Muitas das minhas memórias são musicais ou, surpreendentemente, olfativas. Em casa ouvia-se Chico Buarque. Devia ter meses, mas esta é a minha memória mais antiga.”
Nasceu em 1984 em Viseu, onde também cresceu, desde cedo rodeado de música, muito antes de se transformar em Moullinex. Rage Against the Machine, Deftones e Incubus foram algumas das primeiras influências. O pai tinha um estúdio em casa, ouvia-se Fausto, Chico Buarque, Vangelis e Genesis. Os fins de semana eram passados na ACERT (Associação Cultural e Recreativa de Tondela), onde assistia a concertos, peças de teatro e outros eventos culturais. “Desde a conceção aos ensaios, passando pela construção de cenários, figurinos, etc. Tudo isto era fascinante para mim”, revela ao Observador o responsável pela banda sonora do podcast plus A Grande Provocadora, algo que nunca tinha experimentado numa carreira que já acumulou tantas facetas.
“Adoro sair da minha zona de conforto. Descobrir como representar uma mulher [Vera Lagoa] que era um bocadinho um ovni na sociedade portuguesa em música foi um grande desafio.”
O projeto foi inédito e algo que durante muitos anos pareceu impensável ao compositor, DJ e produtor musical. Apesar de ter crescido exposto ao mundo artístico, viver da música nunca lhe passou pela cabeça. O pai era funcionário público — sendo músico, compositor e poeta, mas apenas de forma amadora. “Quase todos os músicos ou artistas que formaram uma figura de exemplo na minha vida não o eram profissionalmente e isso condicionou bastante a minha visão da música enquanto perspetiva de carreira viável.”
A mãe era professora de Português e a família materna estava praticamente toda no ramo das Ciências e da Engenharia, algo que o “atraía bastante”, acabando por seguir esse caminho. “Lembro-me de estar muito indeciso no 9.º ano, penso que quis ser jornalista ou médico nessa altura, e durante o secundário acabei por aprender a programar software e isso ajudou-me a escolher.”
Formou-se em Engenharia de Computadores e Telemática na Universidade de Aveiro. Aí, os horizontes começaram a alargar-se. “Penso que ter estudado num campus muito ‘à americana’, onde as diferentes faculdades estão muito interligadas e no mesmo espaço físico, tenha ajudado a esculpir a minha personalidade mais ‘generalista’. Apesar de estudar algo muito nerd, sempre que podia escapava para o Departamento de Comunicação e Artes, onde fiz muitos amigos que na altura estudavam Design, Música, etc”, recorda.
Com três amigos de Viseu tinha um coletivo chamado Mecanismo Divino com o qual produzia. Tudo o que ganhavam era para investir em novo material. “Fiz também webdesign para várias pessoas que me pagaram em instrumentos musicais.”
Durante os cinco anos da faculdade lamentou muitas vezes não ter escolhido Artes — “mas não o suficiente para me fazer mudar de ideias”. Ainda assim, no projeto final de curso, conseguiu juntar a música à engenharia de software. “Fiz o protótipo e o desenvolvimento de um instrumento musical controlado pela atividade elétrica cerebral.”
Foi essa ideia que lhe garantiu um convite para um doutoramento na LMU (Ludwig Maximilian University), em Munique, Alemanha. Concluiu um PhD em Neurologia e fez investigação em Astronomia. Refugiou-se na música como terapia, começou a pô-la online e a fazer DJ sets. Foi nessa altura que percebeu que o seu caminho podia realmente ser esse. “Quando comecei a ter atenção online e convites para produzir remixes e fazer tours à volta do planeta a tocar a minha música, o clique finalmente aconteceu, mas sempre com bastante apreensão.”
Trocou o nome Luís Clara Gomes por Moullinex, uma escolha que surgiu quando fez uma remistura de Vicious Five. Usou o sample de uma máquina 1 2 3 (picadora da marca Moulinex) e o “tzzz” que ouviu indicou-lhe o caminho.
Em 2011 estava de volta a Portugal, pronto para se dedicar à música. Fundou (com Bruno “Xinobi” Raposo) uma editora, a Discotexas, e lançou os álbuns Flora, Elsewhere, Hypersex e Requiem for Empathy. Além disso, muitas das suas atuações transformaram-se em momentos épicos, como um espetáculo que idealizou para a discoteca Lux, em Lisboa, em dezembro de 2015, no qual recriou a banda sonora de Star Wars de forma dançável.
Sempre viu a música de dança como forma de terapia. Usou esse mote de forma pessoal e é também isso que tenta transmitir a quem o ouve. “A música salvou-me repetidamente em momentos de incerteza, perda, tristeza e luto. Ajuda-me a processar muitas das minhas emoções e conheço muitos colegas de profissão a quem a música deu um propósito.”
O mesmo se reflete em quem o ouve e o segue, como aconteceu há algumas semanas. “Houve um pedido de casamento na minha pista de dança, no Porto, seguido de outro em Amesterdão, nos Países Baixos. Recebo muitas vezes mensagens sobre a importância de certa música ou álbum na vida de alguém. Saber que a minha (e nossa, na Discotexas) música tem tamanha importância emocional para as pessoas é muito gratificante. Sinto que o meu propósito na vida é validado sempre que acontece.”
Atualmente, para as ideias em nome próprio ou para colaborações como a que tem assinado com GPU Panic (Guilherme Tomé Ribeiro) tem um estúdio em Marvila, Lisboa, e é lá que trabalha todos os dias. “Consigo deslocar-me de casa para o estúdio quase sempre de bicicleta, o que me dá uma qualidade de vida enorme. Procuro cumprir uma rotina de trabalho das 10h às 18h, esta estrutura é muito estimulante para mim criativamente.”
A sua forma de trabalhar mudou muito pouco na última década, o que lhe tem garantido consistência. “Talvez aja com menos insegurança agora, mas na essência não mudei muito. Tenho que deixar espaço para o caos e o erro acontecerem, mas ter uma forma muito estruturada de levar as ideias até ao fim, para que não fiquem numa gaveta para sempre.”
Além de criar música, tem ainda de gerir uma editora e uma pequena equipa, bem como tratar do grafismo, da estratégia de comunicação e do marketing “dos projetos em que esteja a trabalhar”.
Viseu é uma espécie de memória distante, onde regressa pontualmente. “Nunca associei Viseu a liberdade, sobretudo de pensamento. Muita da pequenez que nos caracteriza enquanto povo é levada ao estatuto de quase caricatura na minha terra natal e sinto que o meu percurso pessoal surgiu como resposta ao lugar onde nasci, e não devido a ele”, lamenta.
É nas viagens que enche “os reservatórios da inspiração”, embora não precise de ir muito longe quando procura tomar alguma decisão importante ou refugiar-se: “Certos discos são o meu lugar de conforto”.
A pressão que sente é auto-imposta, “no sentido de fazer mais e melhor, sempre”. Tudo o resto não o afeta. “Ser criativo durante vários anos, seja em modo freelancer ou não, cria em nós um certo calo que nos torna imunes a muita pressão. Felizmente construí uma vida que me permite trabalhar e conviver com quem gosto mesmo, e não há muito espaço para toxicidade.”
Aquilo que o inquieta impede-o de viver conformado e alimenta a busca constante por algo mais. “A minha maior ansiedade advém da reflexão constante sobre escassez ou desequilíbrio na distribuição de recursos, sejam eles os recursos finitos do planeta em que vivemos, sejam eles de capital económico, humano ou social. A quantidade de riqueza que geramos coletivamente enquanto espécie permitir-nos-ia viver muito melhor, coletivamente. Subir a fasquia para todos, ao mesmo tempo que muita desta riqueza poderia ser redirigida para investigação e desenvolvimento em áreas de sustentabilidade.”
Não se define como religioso, mas resiste à palavra “ateu”. As suas crenças são complexas e cheias de camadas, tal como a música que faz. “A reflexão, a prática do humanismo e procura do sublime são horizontes muito presentes na espiritualidade clássica, e são pilares da minha própria descoberta espiritual”, explica.
Nesta fase da vida, talvez tenha mais perguntas do que nunca mas, segundo Luís Clara Gomes, isso não tem de ser necessariamente mau. “Encontro o divino a refletir sobre a escala do universo, no som da rebentação das ondas numa falésia atlântica, no caos urbano de milhares de ligações, num disco do Stevie Wonder, num concerto que é tão bom que somos diferentes a sair do que éramos a entrar. A vida preenche-me espiritualmente, e não ter uma resposta para ela não me dá ansiedade.”