A essência dos “filhos de Chelas”, como é o caso de Sam the Kid, está ferida. E pode ficar mais ainda. Os que já nasceram no bairro, que surgiu com o 25 de Abril, sentem que as suas raízes, fundadas naquele aglomerado de betão, estão em risco com propostas como as do movimento “Marvila no Coração” — que pretende apagar o nome de Chelas de estações e até de uma igreja.
[Pode ouvir aqui a reportagem da Rádio Observador sobre o bairro de Chelas]
“Marvila no Coração” é um movimento que tem como lema “evoluir e trabalhar a promoção” desta freguesia de Lisboa. Algumas das medidas para alcançar este objetivo, disponíveis num blog na internet, são: a estação de comboios passar para ISEL, a paragem de metro para Beato e a Igreja de Chelas ganhar o nome de Convento de São Félix e Santo Adrião.
Mas tudo o que defendem está longe de ser pacífico. Estas ideias estão a criar desconforto entre os moradores, que falam numa “estratégia” para apagar o nome de um dos maiores bairros de Lisboa. Recentemente, o rosto e a voz deste descontentamento tem sido o rapper Samuel Mira, mais conhecido por Sam The Kid, que publicou nas redes sociais as propostas do movimento.
Depois das publicações do artista — que conta com milhares de seguidores na internet — choveram comentários e mensagens de apoio, com várias pessoas a perguntar onde “era preciso assinar” para travar estas ideias. Houve mesmo quem se disponibilizasse para manifestações em frente à junta de freguesia de Marvila ou na Câmara Municipal de Lisboa. Sam The Kid acha que não vai ser preciso “chegar a tanto”, porque é “demasiado óbvio” que isto tem de parar.
Com a convicção de que por trás destes movimentos estão interesses imobiliários e preconceitos com o bairro — exponenciados pelos média e por filmes como “Zona J” — Samuel Mira guiou o Observador pelas ruas de Chelas que só quem lá vive conhece.
O rapper começou por um miradouro na antiga zona I, agora Bairro das Amendoeiras. Foi mais de meia hora de uma viagem pela própria vida e, ao mesmo tempo, pela história de Chelas — realidades dificilmente separáveis, já que o bairro e Samuel têm os caminhos entrelaçados.
Samuel confessa que chega a parecer-lhe “estúpido ter de lutar por uma coisa a que tem direito” e propõe um exercício: “Se agora o Marcelo Rebelo de Sousa dissesse: ‘Vamos todos deixar de ser portugueses e o nosso país vai-se passar a chamar Cadeira’. E diziam-nos: ‘Vamos fazer muito mais guita, vais ganhar o dobro do teu salário, se passares a ser cadeirense’. Tu vendias-te? Essa é a pergunta que eu faço”.
“O que me incomoda é que quem não é daqui queira acabar com a nossa raiz”
Não é claro quem faz parte do movimento “Marvila no Coração”. O Observador tentou contactar o grupo, mas não obteve qualquer resposta. Alguns moradores apostam que é composto por pessoas influentes e lembram outras alterações para apagar Chelas do mapa. Uma das mais faladas naquelas ruas é a troca das placas de indicação nas estradas: agora todos os caminhos vão dar a Marvila mesmo que o destino seja Chelas, lamentam.
Depois do miradouro, ao descer o vale, fica claro que Sam está em casa, mesmo no meio da rua. Aliás, sobretudo no meio da rua. Conhece o bairro como a palma de mão e vai cumprimentando quem passa. É meio da tarde, de um dia de semana de 2020, mas há muita gente a circular.
No Café Buzi, ponto de encontro habitual de pessoas da sua geração, está Teca, alcunha pela qual Telmo Carrelo, presidente do Chelas FC, é conhecido. Quando Sam lhe pergunta se quer “dar uma palavrinha sobre aquilo que têm falado”, não hesita e convida o Observador para ir até à sede do clube, no outro lado da rua.
O que me incomoda é que as pessoas que não são daqui tentem acabar com a nossa raiz. Nós somos daqui, vivemos aqui, este é o nosso património. Temos de lutar para que não consigam fazer isso”, reforça Teca.
Mas não são só os aqui nascidos que têm esta visão. Elisa Branco, tem 73 anos, e veio para Chelas há mais de 40. Garante que “muitas vezes as pessoas ficam agoniadas quando se fala de Chelas”, mas confessa que o “bairro tem estado bem melhor do que muitos à volta”. À porta do cabeleireiro, entre prédios na antiga zona J, agora Bairro do Condado, Elisa descreve um oásis (mesmo que de betão) de proximidade entre vizinhos. “Vivemos ali 85 famílias e damo-nos todos bem, somos todos amigos”.
Mesmo em frente, fica o Torre Laranja Futsal Clube. Samuel faz questão de apresentar Adriano Pinto, que há muitos anos luta por melhorias no bairro. O presidente deste clube não nega que há problemas por aqui, mas garante que o que se investe a tentar apagar o nome do bairro é tempo perdido e que poderia fazer a diferença no que realmente importa.
Há um grande desacompanhamento de pessoas com doenças mentais e de quem sai da prisão. Vemo-los na rua completamente perdidos. Se isso não mudar, bem que podem alterar o nome 30 vezes, que os problemas sociais vão continuar a existir. E não é só aqui”, sintetiza Adriano.
O estereótipo é o grande obstáculo e são vários os moradores que confessam já terem omitido que são de Chelas, sobretudo quando estão à procura de emprego. “É uma pescadinha de rabo na boca”, porque o preconceito acaba por criar a própria realidade, sobretudo dos mais jovens.
“Muitas vezes vamos a torneios e perguntam-nos: vocês são de onde? Nós dizemos que somos de Chelas e reagem logo com espanto. Estavam à espera do quê? Que nós viéssemos cheios de pistolas, cheios de facas, cheios de tudo? Nós vimos com um comportamento civilizado, como os de outro lado qualquer”.
Adriano queixa-se também da referenciação, do facto de Chelas ser vista como uma zona vermelha ou de risco pela polícia — o que considera ser uma “carta branca” para as autoridades fazerem o que querem. Apesar de perceber a complexidade da situação, não tem dúvidas de que muitas vezes há abusos.
Há miúdos pacatos que são apanhados pela polícia só por estarem na rua. Vão para a esquadra, mandam-nos descalçar e os miúdos aparecem-me aqui todos inchados. Abusam, porque sabem que depois não têm ninguém que os defenda, nenhuma estrutura para os apoiar”. A maior parte dos pais “trabalham de sol a sol”, diz, o que dificulta o acompanhamento dos filhos. “Vão ficando por aqui meio sozinhos, ouvem certas coisas e a situação fica complicada”, confessa Adriano.
Para Sam The Kid é triste que só se fale de Chelas quando algo de mau acontece, “um tiroteio, uma morte” e que tudo o resto não apareça na televisão, nem nos jornais.
“Tens imensas pessoas que fazem coisas super positivas pela comunidade. O Chelas Futebol Clube está a investir num torneio de futebol de praia e está muito bem, o Torre Laranja também. Tens o Miguel que já representou Portugal na seleção… Mas nada disso passa na televisão”, desabafa.
Apesar das dificuldades, o rapper Samuel Mira garante que não vai desistir de Chelas. Para quem lida tão de perto com as palavras, um nome é mais do que isso: representa uma essência, manchada pela história, mas que “ninguém se vai cansar de pintar de branco”. As vezes que forem precisas.