Muhammed Muheisen tem dois Pulitzers, foi nomeado, em 2013, o “Best Wire Photographer” (Melhor Fotógrafo de Agência) pela revista Time, dirige uma fundação sem fins lucrativos, a “Everyday Refugees Foundaiton”, e há 15 anos que fotografa a crise dos refugiados. Está, por isso, habituado a acordar no meio da tragédia. A trabalhar em conflitos de guerra. A ver o desespero na cara de milhares de pessoas, obrigadas a fugir das suas casas. Mas não é assim que o premiado fotojornalista — que tem parte do trabalho exposto no Centro Português de Fotografia no Porto até ao dia 20 de março — encara a vida. Não é um hábito, uma tarefa de sofrimento sobre sofrimento, “é uma missão” de encontrar a vida no meio da escuridão. “Tenho muita esperança, sou assim. Todos temos um papel. O meu é partilhar estas histórias, abrir o coração das pessoas. Estou sempre à procura do lado feliz. Esse é o tema do meu trabalho. Quando vou para uma zona de guerra, procuro o sorriso no meio do conflito”, garante numa conversa com o Observador.
Desde que aterrou no Iraque em 2003, sem qualquer experiência no terreno, que nunca mais largou a máquina fotográfica. Passou pelo Afeganistão, Paquistão, Síria, entre outros países, a captar a guerra, “o lugar mais negro onde se pode estar”. Até que um dia, virou a lente para as crianças, “as verdadeiras vítimas deste conflito”, diz. A sua missão tinha mudado de rumo. Quando a crise dos refugiados irrompeu na Europa em 2015, Muhammed Muheisen decidiu documentar as jornadas de milhares de pessoas em fuga. Mas não se ficou pelo momento. Foram dias, meses, anos. A conhecer estas pessoas, a falar com as famílias, a divulgar as suas histórias. Ao ponto de começar a perceber que uma simples fotografia podia fazer toda a diferença. “Em agosto de 2015 vi uma miúda muito triste, a Zahra, com uma cara com cicatrizes de guerra. Quis saber a sua história, a fotografia chegou a todo o mundo. Quando voltei para casa encontrei uma criança de outra criança, mas alemã, que queria perceber porque é que a Zarha estava triste”. Entretanto, trocaram correspondência. Tudo graças a uma imagem. “Uma amizade atravessou fronteiras por causa de uma fotografia”, responde.
Esteve preso, foi esfaqueado, viu o melhor amigo morrer. Mesmo assim, o lado positivo fala sempre mais alto quando se conversa com este fotojornalista. Mas não é a sua voz que quer que se oiça — essa tem servido para dar destaque a quem não é ouvido, ou seja, os refugiados. Uma mensagem que quer transversal, para que cada um possa sair da respetiva bolha e perceber, por um lado, “a sorte que tem”, por outro, que quem por vezes está no meio do oceano em fuga não tem nada de diferente. “Se pensarmos nesse momento, onde estamos sozinhos no oceano, fica a pergunta: prefere andar para trás ou continuar a viagem? Se ficar morro, se seguir poderei morrer”. A esperança está, por isso, nos detalhes. Detalhes entre a vida e a morte. No meio? Está a esperança. “É o que nos resta”, termina.
Nas suas entrevistas fala sempre de uma criança refugiada que fotografou e que, na altura, estava muito triste. Essa fotografia acabou por chegar a outra criança alemã e ficaram, entretanto, amigas. No mundo cheio de notícias, informação, imagens, ruído, onde tudo tem um prazo imediato, a fotografia continua a ter muito impacto?
Acredito que não há melhor forma de fazer a diferença do que a fotografia. É uma linguagem universal, toda a gente entende. É um testemunho, uma voz, uma mensagem que vive para sempre. O ser humano tem de ser relembrado das coisas que acontecem fora da sua casa. Vivemos todos numa bolha. Quando as fotografias nos chegam a casa, abrem-nos os olhos, deixam-nos curiosos para perceber a história na íntegra. Gosto de elevar a voz de quem fotografo. Também acredito que as crianças são as vítimas do conflito. Não escolhem onde nascem e as circunstâncias que as rodeiam.
Na minha jornada, tenho visto muitas crianças a crescer à frente da minha máquina fotográfica. Hoje em dia, vivemos num período em que a tecnologia permite que tudo seja possível. Existem plataformas, redes sociais, que nos permitem enviar mensagens. Essa criança síria, a Zahra Mahmoud, conhecia-a em 2015, quando a crise dos refugiados começou na Europa. Quis reportar tudo isto, porque é que as pessoas deixavam tudo para trás. Voltei para a Jordânia e fui seguindo a rota dos refugiados até aos centros onde se encontravam. Em agosto desse ano, vi uma miúda muito triste, em silêncio, onde se viam as cicatrizes da guerra na sua cara pequena. Quis saber a história dela, falei com o pai e tirei a fotografia. Chegou a todo o mundo. Era a cara daquela geração.
Um símbolo.
Sim, sim. Tinha cinco anos. A guerra na Síria também durava há cinco anos. Esta fotografia ganhou o prémio da UNICEF mas nada mudou na vida da criança. Quis que a minha missão fosse impedir que a história dela fosse esquecida. Visitei-a umas vezes, documentei a sua vida, o seu crescimento. Agora tem quase onze anos. Quando ganhei o tal prémio, a fotografia foi parar à capa dos jornais alemães, enquanto estava a trabalhar na Sérvia para a National Geographic sobre menores refugiados. Quando voltei para casa, tinha uma pilha de cartas, uma delas tinha uma escrita estranha, muito infantil. Era endereçada à Zarha. Estabeleceu-se contacto com a UNICEF e quando abri a carta, lia-se que a criança tinha a mesma idade do que a Zarha e fazia uma pergunta: “Porque é que estás triste? Se formos amigas deixas de estar?”. O meu coração ficou partido. A próxima missão era então fazer chegar-lhe a carta, mesmo depois de três anos e meio a documentar a vida dela. Foi um “game changer”, pensar que alguém noutro lado do mundo se importa com ela. Que queria ser amiga dela. A irmã mais velha da Zahra escreveu outra carta e entreguei-a. Uma amizade atravessou fronteiras por causa da fotografia.
Quando olha para estes últimos dez anos de trabalho, vê com bons olhos a resolução desta crise?
Tenho muita esperança, sou assim. Todos temos um papel. O meu é partilhar estas histórias, abrir o coração das pessoas. Estou sempre à procura do lado feliz. Esse é o tema do meu trabalho. Quando vou para uma área da guerra, procuro o sorriso no meio do conflito. Acho que as pessoas estão mais conscientes. Há dez anos ninguém sabia o que se passava em alguns países. Tenho visto mudanças, tenho visto pessoas que estão realmente a fazer a mudança. E isto não são 100 metros, é uma maratona. É o que faço, coloco uma luz nestas histórias e não vou parar. Não tiro só fotografias, invisto na vida delas. Porque a informação tem de estar certa e ser respeitada. A mudança nunca é rápida, estou há quinze anos a documentar esta crise. É preciso tempo, mas é preciso acreditar e continuar. Porque temos tendência para esquecer, para ficar na zona de conforto. Mas vejo essa mudança sim, já tirei fotografias que unem pessoas que estão no Texas e no Paquistão. Ou fotografias que unem duas crianças de países diferentes. É o que apelido de bondade simples. É aqui que começa. Se fizermos o nosso papel, no fim do dia a diferença vai ser feita.
Alunas paquistanesas, deslocadas com as suas famílias de zonas tribais, entoam orações durante uma aula para homenagear cinco professoras e duas trabalhadoras humanitárias mortas por homens armados, na escola improvisada num bairro precário nos arredores de Islamabad, Paquistão.
Umm Hassan, uma mãe refugiada síria de 30 anos, troca a fralda da sua bebé de um mês e meio, Rudayna, numa ferrovia, enquanto ela e outros refugiados esperam a chegada do comboio à estação de Tovarnik, na Croácia.
Mahfouz Bahbah, um menino afegão de 12 anos, numa estrada à espera de vender os seus balões. Cabul, Afeganistão.
Zawar Khan, um menino refugiado afegão, persegue bolas de sabão lançadas por outras crianças enquanto brincam nos arredores de Islamabad, Paquistão.
Se não criasse essa relação tão próxima com os seus fotografados, o seu trabalho não seria o mesmo?
Não seria. Temos de fazer parte da vida deles, passar lá muito tempo. Como fotojornalista podia só ficar do lado de fora, só mostrar o exterior. Quanto mais se mergulha, mais se vai ao coração da história, mais confiança se ganha perante a pessoa que se está a fotografar. Tornas-te invisível. Estive quatro anos no Paquistão a trabalhar com refugiados afegãos e quando terminei, senti que não lhes tinha feito justiça. Devia ter ficado mais tempo. Para mim é uma relação simples: quanto mais tempo ficas, mais volume ganham as fotografias. Quero fazer justiça. Não quero ser fotógrafo para ter o proveito de o ser, quero entregar a tal mensagem. Se algo acontece e não documentamos, não fotografamos, é como se não tivesse acontecido. E isto é paixão, não é um trabalho, precisa de continuidade. Claro que houve momentos em que me senti frustrado, que senti que estava a ir contra a parede. Mas lembro-me que pensava no que podia acontecer se a mudança fosse feita. É esse o meu gás. A fotografia vai mudar a vida de alguém.
Como vê o tratamento informativo da crise dos refugiados? Em 2015, chegou às notícias aquela imagem chocante do Alan Kurdi, criança que estava morta à beira-mar. Hoje ainda há memória dessa imagem?. Muitos jornalistas reportam esta crise, mas não estão no local. O Mohammed está. É por aí que temos de ir?
Dantes pensava que onde eu estava era um lugar muito maior do que o mundo. Por vezes, somos sugados no nosso drama, desconectados do resto. Os media estão sempre à procura de uma história, e isso tem um prazo de validade. Essa é uma das razões que me levou a trabalhar assim. Sempre que um jornal lança a minha fotografia, quero continuar a seguir as pessoas. E faço-o porque acredito, não porque me pedem. É importante estar sempre a relembrar. Já aconteceu chegar a uma zona de guerra, fazer “algum barulho”, e só aí é que apareceu o resto da imprensa. Também já aconteceu o contrário: ser o último a sair. E querer ficar um ano completo para continuar. Foi também por isso que comecei uma organização sem fins lucrativos na Holanda. Sou fotojornalista, estou há vinte anos a documentar estas histórias, a trabalhar com os media, mas senti que estava aqui para fazer algo maior. A fotografia é muito importante, sim, mas na fundação temos uma equipa que segue estas pessoas. Na Sérvia há centenas de pessoas presas, a morrer ao frio, fui lá fotografá-las e depois uma equipa chega lá e faz a diferença. Tudo de forma discreta.
Completa-se o ciclo.
Sim, sim. Tento inspirar. Podia ler um artigo seu e dizer-lhe que me mudou a vida, que me mostrou outro caminho. Somos muito pequeninos neste planeta. Num segundo, a fotografia pode atravessar vários países e deixar as pessoas a pensar. Às vezes perguntam-me o que é uma boa fotografia, várias vezes. Para mim são as que provocam curiosidade, que deixam perguntas. Quem é a Zahra? Quem é esta criança com olhos tristes?
A curiosidade leva-nos para o outro nível.
Começa aí. Depois, como humanos, queremos envolver-nos. Por vezes, andamos devagar, mas temos de ser relembrados de que temos de sair da zona de conforto. De não tomar tudo como garantido, como a água e a luz. Há quem não tenha. Tendo estado nesses ambientes e isso tem-me ensinado a ser melhor pessoa. De pensar na vida fora da minha vida. Quando mostro as fotografias a quem se queixa de coisas pequenas, as pessoas percebem a sorte que têm. E é aqui que começa a diferença. E aí é que começamos a pensar nos outros.
A Marie Colvin, correspondente de guerra, disse uma vez que “coragem é ter medo de ter medo”. O Mohammed ainda tem medo de quê?
Tenho muitos medos, tenho. Quando fotografo penso sempre no impacto. Tenho medo que seja mal interpretado. Já tenho a minha conta em zonas de conflito. Levei um tiro, estive preso, bateram-me. Mas, no fim do dia, nada se compara com o que os fotografados têm vivido. O medo principal é esse, não lhes fazer justiça. Somos todos hóspedes no planeta, somos todos refugiados. De um dia para o outro, tudo muda. Agora, se falarmos de outro tipo de medo, também tenho. Em 2003, era muito novo, estive no Iraque a trabalhar. Não fazia ideia do que estava a fazer. Tive medo quando perdi o meu melhor amigo no Afeganistão em 2014. Sente-se medo quando percebes o quão pequeno és. Mas o que me levanta o espírito são as fotografias, lá está. É esse o nosso legado. E as suas vozes.
Nunca é possível habituarmo-nos à morte e à tragédia mesmo que ela faça parte do nosso trabalho?
É impossível, sim. Somos fotógrafos porque a fotografia pode acabar com guerras, pode mudar políticas. É isso que nos faz continuar. A guerra é o sítio mais negro para se estar. Sou um visitante. Entro, tiro fotografias, se tiver sorte, saio em segurança. Mas estas pessoas vivem aí constantemente. Pensar nisso percebe-se quanta sorte se tem. Ali nós estamos só de passagem. Adoro fotografar a vida, a esperança, porque é o que nos resta. As minhas fotografias são sobre o dia a dia, não o drama.
Hayat Khan, um menino refugiado afegão de 8 anos, enquanto brincava com outras crianças nos arredores de Islamabad, Paquistão.
Hamagai Akbar, uma menina refugiada afegã de 5 anos, que vive com a família nos arredores de Islamabad, no Paquistão.
Zahra Mahmoud, uma menina refugiada síria de 5 anos, de Deir ez-Zor, num acampamento nos arredores de Mafraq, na Jordânia.
Laiba Hazrat, uma menina refugiada afegã de 6 anos, enquanto brincava com outras crianças nos arredores de Islamabad, no Paquistão.
Hoje em dia também há muitos políticos que usam os refugiados como arma eleitoral. Se acredita nesse poder da fotografia, acha que se mostrasse o seu trabalho a algumas destas pessoas, mudavam de ideias?
Somos todos bons a certa altura. As crenças e os objetivos são diferentes sim, mas, mais uma vez, somos humanos. Acredito que as fotografias podem derreter montanhas. Se me derem oportunidade, sim acredito. Tenho amigos que apoiam refugiados e outros são contra. Nunca impus a minha opinião. Só lhes transmito as histórias. Ninguém abandona a sua casa sem ser obrigado a isso. Os refugiados são pais, mães, médicos, cientistas. Se lhes derem uma hipótese, pode-se mudar muito o que pensamos sobre os refugiados. São pessoas. E tudo o que acontece naqueles países pode acontecer noutros. Temos de calçar os sapatos. Não se pode forçar o outro a gostar do que não gostam. As fotografias valem muito mais do que mil palavras. Mudam vidas. Quem as vê e quem está nelas. Se formos além da superfície pode haver uma ligação. Há muita bondade no mundo, é só preciso lá chegar.
Quando é que percebeu que queria ser fotógrafo?
Aos nove anos descobri a Polaroid da minha avó. Uma caixa mágica em que o papel saia impresso quando carregávamos num botão. Esse momento fica connosco. Era obcecado com a natureza, as árvores e as cores. Mas depois vivia no meio do conflito, rodeado da beleza da natureza. Sou jordão, mas nasci em Jerusalém. Estava no meio desse conflito. Combinei a fotografia com jornalismo para me tornar num melhor contador de histórias no meio da guerra. Em 2003, outra vez, era inexperiente, mas tive sorte no Iraque. A vida ao lado da tragédia na guerra é o mais precioso para documentar. Gosto de mostrar esses momentos. Nunca escolhi fazer o que faço, por acaso. Acho que me encontrou, foi crescendo. E depois ou escolhes seguir esse instinto, ou não. Abriu-me a mentalidade para uma realidade que não conhecia.
Falando desta exposição no Porto, li que também é sobre quem está à procura da sua casa, do seu lar. Quando está com os refugiados, que pessoas encontra?
Acho que têm mais esperança, estão mais felizes e são mais simples. Quem tem tudo, não aprecia o que tem. Há dez anos, na fronteira entre a Síria e a Turquia, estava lá numa zona que não era de ninguém. Comecei a fotografar uma jovem síria e, durante um mês, fui entrando e saindo, e ela sempre a perguntar-me quando é que iam abrir as fronteiras. Dizia-lhe que ia acontecer o mais breve possível. A minha resposta era sempre a mesma. A certa altura disse-lhe que não fazia ideia. Perguntou-me porque é que eu estava chateado, porque sabia que iam abrir a fronteira. Tentou confortar-me. Isso foi muito comovente. Pessoas desesperadas têm mais esperança do que nós. Já vi crianças a brincar com pedras como se fosse a coisa mais chique de sempre. E depois os meus sobrinhos, que têm tudo, são infelizes.
A esperança está então nos detalhes.
Sim. Espero ser boa pessoa, mas aprendi-o com estas pessoas.
Apesar desse lado positivo em que acredita, é necessário também que a política lide com esta crise. Ou seja, não basta mudar mentalidades, certo?
Sim, mas os políticos são membros da sociedade. Também são pais e irmãos. Todos temos o tal papel de que falei. Trabalhei muito para chegar onde estou, construí a minha reputação, mas agora uso-a para chegar a quem decide, para que ajudem. Nunca parei de tentar. Se nos juntarmos, pode demorar, mas vamos conseguir. Não te posso forçar a nada, mas posso fazer-te ver o lado contra o qual estás a lutar.
A diferença é que nós os dois, por exemplo, temos uma casa para onde voltar e os refugiados não. E por isso é que vão à procura de uma nova. Estive a trabalhar numa história em que uma criança de oito anos foi do Afeganistão até à Sérvia a pé. Perguntei-me porquê. Ninguém tinha a resposta sem ser ele: se ficar, vou morrer, tal como a minha família. Maior parte destas pessoas tinha trabalho, tinha uma vida boa e, de repente, estão num barco sem nada. Entre a vida e a morte com o desconhecido à frente. Se pensarmos nesse momento, onde estamos sozinhos no oceano, fica a pergunta: prefere andar para trás ou continuar a viagem? Se ficar morro, se seguir poderei morrer. E isso é menos assustador.