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"Os Demónios do Meu Avô", filme feito com animação "stop motion", realizador por Nuno Beato e produzido pela Sardinha em Lata
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"Os Demónios do Meu Avô", filme feito com animação "stop motion", realizador por Nuno Beato e produzido pela Sardinha em Lata

"Os Demónios do Meu Avô", filme feito com animação "stop motion", realizador por Nuno Beato e produzido pela Sardinha em Lata

"Muito talento, boas escolas, mas falta indústria": o que pode agora mudar no cinema de animação português?

Mesmo sem vencer o Óscar, "Ice Merchants" deu à animação o protagonismo. Mas o reconhecimento pode trazer mudanças? Falámos com produtores e realizadores que têm dúvidas, mas acumulam expectativas.

Nos anos da troika, Regina Pessoa, cineasta portuguesa com 20 anos de carreira na animação, esteve num jantar com outras personalidades do cinema. Sentou-se ao lado de uma atriz de novelas e de filmes, que estava muito preocupada com a falta de financiamento para a sua mais recente longa metragem. Estávamos em tempos de profunda crise, a reboque de ajuda financeira externa e sem Ministério da Cultura. Todos os apoios para produção tinham sido interrompidos. “Disse-lhe que estava na mesma situação, por causa de uma curta-metragem minha, ‘Kali, o Pequeno Vampiro’ e do seu apoio estrangeiro”. A atriz, com um olhar altivo, respondeu-lhe: “Mas nós somos uma longa-metragem!”.

Regina Pessoa continuou a sua vida. Não é uma má experiência que lhe tira o sorriso da cara. Só lhe dá certezas de que a animação portuguesa tem outra forma de estar: firme no seu registo autoral, aberta ao outro e ciente da envergadura de cada pequeno grande filme. Contudo, a animação ainda é pouco conhecida para o mainstream português. Se não está ou não esteve de forma continuada na televisão — sim, ainda é a boa e velha televisão a ter uma papel fundamental na divulgação audiovisual — “ninguém” conhece nem sabe o que se passa. Daí que surjam comentários, opiniões e decisões como a da atriz que faz com que ainda seja um parente pobre do cinema.

“Ice Merchants” sem Óscar, mas “muito felizes”: “Metemos o pé na água, que venham outros e mergulhem”

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Em 2005, a realizadora já tinha tido o seu “História Trágica com um Final Feliz” na short list para os Óscares, e, 15 anos depois, levou o seu “Tio Tomás — A Contabilidade dos Dias” pela mesma encruzilhada. Ganhou um Annie Award, tornou-se membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e foi reconhecida como uma das melhores realizadoras dos últimos 25 anos, segundo a Animac’2021. Apesar de ficar muito agradecida pelos prémios, não trabalha para eles. Qualidade e identidade, é por isso que batalha e é isso, segundo a realizadora, tem feito a diferença na animação portuguesa. Faltou a derradeira nomeação, aquela que chegou agora pelas mãos de João Gonzalez e da sua trupe da COLA Animation. “Não conheço ninguém da minha área que não esteja encantada com tudo isto”, diz ao Observador, num tom que, apesar de estar à distância, transborda sinceridade.

[o trailer de “Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias”, de Regina Pessoa:]

Mas quando a poeira assentar, o interesse público diminuir e os jornais deixarem de apontar a agulha mediática, o que fica? O Observador falou com vários nomes da animação portuguesa para fazer um ponto de situação de um sector do audiovisual que, todos os anos, é premiado lá fora. Distinções fora de portas, pouca visibilidade em território nacional. Nuno Beato, da produtora Sardinha em Lata, vai estrear a sua primeira longa-metragem, “Os Demónios do Meu Avô”, em Portugal a 4 de maio. Esteve já este ano nomeado para os Prémios Goya. José Miguel Ribeiro, seu antigo parceiro, fundador da Praça Filmes, mostrará também a sua primeira longa-metragem, umas semanas antes, a 13 de abril. Isto já depois de ter feito uma tour em França, país que, mais uma vez, “deu uma mão” à animação portuguesa na parte financeira. Foi nessa altura que o filme esteve nomeado para o Cartoon Movie, o fórum de longas-metragens de animação europeia. Resumindo: a produção não pára, a qualidade é reconhecida, mas e agora?

Uma época dourada “que não cai do céu”

“Não sei se a atenção à animação portuguesa vai ser igual depois deste período. Temos falta de autoconfiança e de massa crítica em geral. Nunca conseguimos antecipar a qualidade de um filme, sinto isso nos meus. Estreia-se primeiro em Portugal e só quando recebe reconhecimento lá fora é que, quer o público português, quer as autoridades ligadas ao audiovisual, o começam a ver de outra forma. Mas o filme já existia antes.” Este raio x cirúrgico de Regina Pessoa não é feito com qualquer ressentimento. Afinal, o nome dela cruza-se com o de uma geração que começou a tocar o olimpo da animação, depois de Abi Feijó, o mentor, avô, pai, seu marido, o que quiserem chamar, ter dado os primeiros passos com o seu “Salteadores”, uma das primeiras curtas-metragens a ser apoiadas pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) nos anos 90. Os anos passaram e se o animador teve de bater a muitas portas acabando mesmo por fazer o filme sozinho, Regina Pessoa viu o seu primeiro filme pré-selecionado ao Óscar a não ser apoiado pelo ICA. Só depois de ter garantido coproduções com outros parceiros, de França ao Canadá, é que o principal financiador do cinema português começou a prestar atenção. “Será que alguém ia reparar no ‘Ice Merchants’ se não tivesse este reconhecimento? Não sei. O poder mediático está a ser mais importante do que o filme em si”, diz.

"No Canadá diz-se que há uma maldição com a estatueta dourada, quando alguém ganha um, nunca mais se fazem filmes de jeito na vida. Não sei mesmo o que acontecerá. Sei que não devemos ficar por aqui porque merecemos muito mais."
Abi Feijó, um dos maiores nomes da animação portuguesa

Aproveitemos então a oportunidade para colocar uma luz sobre o que não se vê. Se no cinema de “carne e osso” falamos de filmes de autor versus filmes comerciais, no caso da animação portuguesa é no primeiro género que tem estado a galinha de ovos de ouro. É feito “por paixão” sem olhar para lucros, mas sim para a qualidade, qualidade, qualidade. Tem um apoio forte nas curtas-metragens, reconhecido pela maior parte dos autores ao Observador (120 mil euros anuais), mas pequeno nas longas-metragens (1 milhão de dois em dois anos) e nas séries (300 mil euros que “nem chegam para um piloto” e 100 mil para especiais de animação). Portugal começou por ver muita gente autodidata, vinda da pintura e de outras artes, a dar o salto para a animação. Criaram-se cadeiras específicas sobre a área nas faculdades e a demanda deu a nascer vários cursos, de norte a sul. Mas foi o percurso dos filmes já feitos em Portugal que serviu de inspiração para os que estavam por vir. Isso e os históricos festivais, como o Cinamina, em Espinho desde 1976, e a Monstra, em Lisboa desde 2000, que solidificaram o estatuto nacional lá fora.

“Este momento que estamos a viver é particularmente interessante, mas não cai do céu. É o corolário de uma política de apoio do Estado à curtas-metragens e agora às longas. Pouco a pouco, também com a saída de filmes como “A Noite ou a Suspeita”, as coisas foram crescendo. Os festivais tiveram um papel fundamental, no início do milénio. Abriram-se as escolas. Agora, mais do que um caso esporádico, temos uma mão cheia de pessoas muito interessantes em animação.” As palavras são, claro está, de Abi Feijó, que já não sabe o que mais pode dizer sobre “Ice Merchants”. Quer dizer, ainda consegue acrescentar mais uma ou duas coisas: “A animação portuguesa amadureceu. Mas no Canadá [onde estudou] diz-se que há uma maldição com a estatueta dourada. Quando alguém ganha um, nunca mais se fazem filmes de jeito na vida”. Ora bem, até ver, essa eventual maldição não se coloca. “Sei que não devemos ficar por aqui porque merecemos muito mais”, afirma.

Abi Feijó e Regina Pessoa, dois dos nomes mais importantes e influentes do cinema de animação em Portugal

Octavio Passos/Observador

Agora é preciso aproveitar o momento e não parar. Uma dessas “pessoas interessantes” é Laura Gonçalves, da equipa fundadora da BAP Animation Studios, no Porto, e autora de outro dos filmes portugueses na short list aos Óscares de 2023, o “Homem do Lixo”. “Talvez por ser ingénua”, acredita mesmo que a seguir ao ruído não virá o silêncio. “Acho mesmo que pode vir a mudar. Para que deixe de haver a ideia de que o que fazemos não tem qualidade”, conta. Este estúdio, que conta hoje com uma equipa de 15 pessoas, funciona como cooperativa, à semelhança da COLA Animation (de “Ice Merchants): todos trabalham nos filmes uns dos outros. Está no forno também uma primeira longa-metragem, da dupla inconfundível da animação do Porto, David Doutel e Vasco Sá — “Una”, que Laura Gonçalves vai acompanhar de perto também assim que sair, para perceber o impacto que terá. Para a autora, ainda não é o momento de se atirar para esse voo maior, até porque “só” o processo de uma curta-metragem, da montagem financeira à correção de cor, pode ir de um ano até três. Há tempo para tudo.

Laura Gonçalves é dos exemplos referidos acima: formou-se em Belas Artes, fez um mestrado em animação no Arts University College Bournemouth (no tempo da troika), estagiou na Sardinha em Lata, começou num filme de José Miguel Ribeiro (“Viagem a Cabo Verde”)  e acabou por trocar Lisboa pelo Porto para se fixar na BAP. Nunca quis desistir da animação.”Há muito respeito uns pelos outros, cada um tem a sua linguagem. Sabemos o tempo que demora. Temos aprendido imenso com outras coproduções, abre horizontes. Há outros países que nos procuram. Mas tem de haver apoio português. Cresci a ver curtas-metragens na RTP2 e isso deixou de existir. Tenho muita pena. As televisões podem ganhar com esta época de ouro da animação”, afirma.

[o trailer de “O Home do Lixo”, de Laura Gonçalves:]

A vida destes autores é uma “animação”, mas não entra na televisão e ainda não tem indústria

No pequeno ecrã fizeram-se experiências, como “A Minha Família é Uma Animação”. Aqui, Neco era um boneco animado ao lado de atores de carne e osso, protegido pela família dos olhares mais preconceituosos. Mas se o leitor fizer o exercício de pensar numa série 100% de animação que tenha passado, dentro ou fora do horário nobre da televisão portuguesa, terá dificuldade em obter uma resposta. Serve o exemplo para dois propósitos: o de mostrar a falta de aposta dos principais operadores de televisão — sendo que a RTP mantém conteúdos animados na sua programação, mas no segundo canal — e o próprio título daquele seriado. E porquê? Porque a pequena grande comunidade de animadores, realizadores, técnicos e produtores deste setor, como já se percebeu, vive sob um espírito de “quando ganha um, ganham todos”. Nem que seja porque muitos já trabalharam juntos.

Muitos já foram alunos e acabaram professores. E muitos — aliás, praticamente todos — não se podem dar ao luxo de parar de trabalhar. Uma pequena grande comunidade que, ainda assim, reconhece a inexistência de uma indústria, à semelhança do cinema português de “imagem real”. Sem indústria não há apoios e vice-versa. Longe vão os tempos do “doutor Salgado Matos”, presidente durante 15 anos do antigo Instituto Português do Cinema, que dizia que “não era preciso apoiar as curtas-metragens porque elas apareciam”. Mas também parecem longe, ainda que bem mais perto do que nos anos 90, a altura em que uma política nacional mais robusta para o sector criou a dita indústria.

Por exemplo, José Miguel Ribeiro, formado em Artes Plásticas, que venceu um Cartoon D’Or (o único para o país, em 2000, com “A Suspeita”), começou a carreira mais a sério através de um estágio franco português organizado pela Filmógrafo, estúdio de Cinema de Animação do Porto fundado por Abi Feijó, feito ao lado de nomes como Regina Pessoa e Pedro Serrazina (“Estória do Gato e da Lua”, 1995″). No início dos inícios, tinha estado no “Salteadores”. “Faço parte dessa geração que seguiu algumas conquistas. O cinema de animação na Bretanha e em Portugal desenvolve-se a partir desse estágio. A Bretanha passou a ser um espaço central desta área. Não havia internet, agora já há. Não havia formações, agora há. Eu dou aulas como o Abi já deu. Cá ninguém vive só dos filmes”, diz.

"As curtas, entre o tempo que demoram a ser criadas e a financiar, com equipas pequenas, nunca dão hipótese a muita gente. Há quem acabe por se afastar ou até desistir. Vi muitos casos assim, muito talento perdido."
Diogo Carvalho, produtor da Sardinha em Lata

A realidade mudou muito. O país está carregado de talento artístico e técnico. Há jovens a sair das escolas e a conseguir trabalhar à distância para estúdios estrangeiros. Nomes como João Monteiro e Luís Vital, que começaram em Portugal, estão na berra. Paga-se melhor. Quando chega a altura de os recrutar, fica difícil. “Já comecei filmes com alunos e, quando o termino, já não o são. As nossas produtoras não conseguem competir. Tens sempre de trabalhar com a nova geração, sempre com pessoas recém formadas. É preciso mais apoio estatal. Um milhão de euros para uma longa-metragem é uma ilusão”, afirma. Uma preocupação transversal que chega a Abi Feijó, que defende que começa a existir uma falta de animadores no país por causa do volume de trabalho. O seu “Nayola” custou cerca de três milhões de euros, foi preciso juntar quatro países, mesmo com o financiamento do ICA e demorou nove anos a terminar. Se a RTP é o crónico representante deste sector, no filme deste autor acaba por ficar mal na fotografia: contribuiu com apenas 60 mil euros de pré-compra.

[o trailer de “Nayola”, de José Miguel Ribeiro:]

Para chegar a uma indústria de corpo sólido, José Miguel Ribeiro acredita que o caminho vai passar pela existência de séries de animação, como a sua “As coisas lá de casa”, feita nos idos de 2004 — um objetivo destacado por todos os autores ouvidos pelo Observador. Esse é o próximo passo, já longe dos tempos em que Abi Feijó tinha de se digladiar só para ter um apoio. A falta de produção de séries, que também entra no menu de preocupações de Regina Pessoa e Laura Gonçalves, é aposta central em países como Espanha e França. E, segundo o realizador, não chega o valor do apoio do ICA. “É preciso que a RTP assuma o seu papel de agente público de transformação social. Decidir se querem iniciar uma fase de criação de séries, difundidos à escala planetária, ou continuar a ser um apoio complementar de pequena escala. Ou damos esse passo ou ficamos iguais. Este é um momento de viragem, mas sem a RTP não vale a pena”, diz.

Não chega, portanto, dedicar apenas um programa, o Cinemax, à animação num horário de madrugada — nos anos 90 houve outro, o “Onda Curta”. O que é dito carrega a experiência de muitos anos de carreira dentro de um setor que até está habituado a sentar-se à mesa para discutir. Aconteceu, pelo menos, uma vez em 2010. Em Montemor-o-Novo, lugar da sua produtora, foi organizado um “Encontros do Cinema de Animação”, com praticamente todos os profissionais portugueses de animação. Foram feitos grupos de trabalho de áreas diferentes, da educação à produção, foi criado um relatório final, entregue ao ICA. “Foi um trabalho difícil de muitos meses, cá não temos uma tradição de diálogo construtivo, criam-se incompatibilidades. Se o ICA quiser, de uma forma organizada e sustentada, pensar a dez anos, os passos estão nesse relatório”. Algumas medidas, segundo José Miguel Ribeiro, foram acauteladas, outras estão por cumprir. “Se os políticos quiserem pegar na animação, está quase tudo lá. O importante para nós não é o momento”, finaliza.

Laura Gonçalves, distinguida em diferentes festivais por "O Homem Do Lixo", de 2022, que também esteve na corrida à nomeação para os Óscares

Como se percebe, estes autores estão atentos ao dia seguinte. Se os seus trabalhos demoram anos a fazer, se não existem formações e cursos na área da produção para animação como acontece na Alemanha, onde Regina Pessoa é Senior Lecturer na Animationsinstitut — Filmakademie, o realizador transforma-se no seu próprio produtor. Olhemos para o caso de Diogo Carvalho, que começou a trabalhar em animação 3D para publicidade no início deste século. Tirou um curso na Fundação Calouste Gulbenkian onde Nuno Beato era professor, e teve outra produtora, a Lâmpada Acesa. Diogo foi o primeiro funcionário da Sardinha em Lata, que tem como fundadores o mesmo Beato e José Miguel Rigueiro, que veem agora as suas longas metragens serem lançadas. A curta-metragem “Monkey”, desta produtora, esteve também nos 80 pré-selecionados na corrida ao Óscar. Diogo Carvalho fez uma pausa na animação para voltar à publicidade durante cinco anos, regressou, deixou de ser técnico e passou a ser produtor. Quase todos os projetos onde esteve envolvido são coproduções, fora as curtas. Foi autodidata, aprendendo com o tempo. Está, neste momento, a trabalhar com o Brasil e com Espanha. “Passei por tudo o que havia em animação, se queríamos que crescesse foi preciso fazer produção e puxar o barco. Tentar fazer grandes formatos para que a animação sobrevivesse. As curtas, entre o tempo que demoram a ser criadas e a financiar, com equipas pequenas, nunca dão hipótese a muita gente. Há quem acabe por se afastar ou até desistir. Vi muitos casos assim, muito talento perdido”, começa por contar.

Faltam guionistas, o meio “ainda é muito fechado” mas com este sucesso, é importante não esquecer as curtas-metragens

Aquilo que é visto por quem falou com o Observador como a grande mais valia do país — um cinema mais autoral e multipremiado — acaba por ser, segundo Diogo Carvalho, o calcanhar de Aquiles. “Esse cinema não chega às grandes massas”. Aliás, o produtor não acredita muito que esta vitória “contamine” o setor, mesmo que estejamos “nos anos de ouro” da animação portuguesa. Há pouco cinema infantil e segue-se, de Abi Feijó a João Gonzalez, o mesmo tipo de estrutura, a mesma forma de ver, muito própria, muito autoral. “São trabalhos de grande qualidade, mas que não chegam a essas massas. Uma série, por exemplo, que precisa de, no mínimo, 52 episódios, ou se vende aos canais de televisão, ou as plataformas de streaming pedem para ter episódios maiores. Esse mercado não está completamente explorado. Não existem séries de massas no país”.

É por isso que a chegada às salas de cinema em Portugal de “Ice Merchants”, a par da nomeação e do buzz mediático, foi uma das grandes notícias do início de ano. Não atingiu o sucesso que atingiu por acaso. Até na ausência de diálogos, que permite alcançar um mercado internacional sem a barreira da língua, é visto por Diogo Carvalho como uma grande diferença para filmes portugueses anteriores. Mas esta nomeação já podia ter acontecido mais cedo, tal é o menu de filmes portugueses à porta de Hollywood. No entanto, para o produtor, este “quase” justifica-se com um meio que continua a falar só para si. Diogo Carvalho dá o exemplo dos festivais: quem vai ao Cinanima todos os anos, em Espinho, são pessoas que, de certa forma, estão ligadas à animação. “É um meio muito fechado”, revela.

Quando é questionada sobre se o problema está na ausência de apoios ou na falta de estratégia denotada por colegas seus, a produtora Vanessa Ventura é mais pragmática: "O público português não liga ao seu cinema, ponto". Agora, com "Ice Merchants", até a Agência de Curta-Metragem já começou a contactar produtoras como a Animais para que seja possível passar filmes em sala.

As críticas mais acesas não deixam de estar associadas à formação que é dada em Portugal. Diogo Carvalho defende que o ensino nesta área “está muito virado para realizadores” e menos para técnicos, ainda que a qualidade seja muita. Alunos que saem do Algarve, da Lusófona, em Lisboa, ou de Portalegre, entram em mercados internacionais. Mas faltam guionistas, um ponto que não foi levantado pelos outros autores. “É um problema crónico de qualidade e de falta de mão de obra. Se formos para a animação infantil, são imensas restrições impostas e há pouca formação nessa área. Mas a culpa não é dos guionistas, é da falta de estratégia”, revela.

Nenhum destes autores acabou por emigrar. Laura Gonçalves decidiu estudar no estrangeiro, Diogo Carvalho “pensou muitas vezes em ir embora”, mas acabou por não o fazer. José Miguel Ribeiro, Regina Pessoa e Abi Feijó perceberam que teriam de se associar a países como França e Canadá para continuar a trabalhar. O estatuto que produtoras como a Sardinha em Lata foram ganhando está agora a dar mais frutos, quer em longas-metragens, quer em séries (feitas em coprodução). Mas, apontam, o ICA, apesar de muitas vezes estar na linha da frente por uma maior internacionalização, pode também servir de obstáculo na formação da desejada indústria. “Temos uma série de 52 episódios, feita com Espanha, Brasil e o sul dos EUA, mais a RTP, para sair até ao final do ano. Mas precisamos do ‘reconhecimento’ como coprodutores, só que o ICA não o faz, porque está debaixo do acordo iberoamericano. O Luís Chaby, presidente do ICA, é também presidente do CAACI (Conferência das Autoridades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-americanas). Temos uma série portuguesa que podia chegar aos 500 mil espectadores e estamos à espera”.

O realizador da curta-metragem "Papel de Natal" José Miguel Ribeiro

José Miguel Ribeiro, formado em Artes Plásticas, venceu um Cartoon D'Or em 2000, com o filme "A Suspeita"

NUNO VEIGA/LUSA

Um embargo ali, falta de aposta nas grelhas televisivas acolá. O reconhecimento lá fora não para de crescer, falta cá dentro. O certo é que todos os realizadores e produtores estão conscientes do que ainda é preciso. Este desinvestimento, financeiro e social, do público às televisões, teve outro ponto mais baixo: no Fórum Cartoon, em Bordéus, onde são apresentados, todos os anos, projetos de séries. Foi sempre uma realidade distante para as televisões portuguesas. Este é o local ideal para uma montagem financeira do ponto de vista industrial, segundo Abi Feijó, que anda cá há mais tempo.

“O público português não liga ao seu cinema, ponto”

Olhemos finalmente para um grupo mais pequeno de animação que se sente bem onde está. Vanessa Ventura, produtora da Animais, nascida em Lisboa, fixada no Porto e fundada por Nuno Amorim e José Pedro Carvalheiro. Começou como programadora no festival de curtas de Vila do Conde. Estudou antropologia, conheceu Abi Feijó e Regina Pessoa e acabou a trabalhar na Casa da Animação, nome referência e de divulgação nesta área. Naquela região do país havia poucas produtoras daquele género nos anos 2000. Faz agora parte de uma equipa maioritariamente feminina que se dedica sobretudo a curtas-metragens. Sem o apoio do ICA, que foi aumentando, não era possível sobreviver. Nesta produtora dá-se espaço a novos autores e há tempo para preparar planos de desenvolvimento. Mas não há para outro tipo de formatos.”Não tenho tempo para fazer o caminho das séries porque as operadoras de televisão não estão motivadas”, diz.

Quando é questionada sobre se o problema está na ausência de apoios ou na falta de estratégia denotada por colegas seus, Vanessa Ventura é mais pragmática: “O público português não liga ao seu cinema, ponto”. Agora, com “Ice Merchants”, até a Agência de Curta-Metragem já começou a contactar produtoras como a Animais para que seja possível passar filmes em sala. O seu “Casaco Rosa”, presente numa exposição no Museu da Marioneta (de 23 de fevereiro a 24 de abril deste ano), em Lisboa, a propósito do festival Monstra, estará num cinema em Penafiel proximamente. Baby steps, dirá. “Nunca tinha acontecido”, conta. A produtora, tal como Regina Pessoa, defende que, quando um português vê a sua própria animação numa sala de cinema, sai de lá satisfeito. “Isto é tão bonito, porque é que não vemos isto?”, refere a realizadora. “Sim, é sempre bem recebida”, confirma a produtora. Aliás, segundo a própria Agência de Curta-Metragem, são estes filmes que mais distribuição conseguem em festivais.

[o trailer de “Casaco Rosa”, produzido por Vanessa Ventura e realizado por Mónica Santos:]

https://www.youtube.com/watch?v=16ZDLfI2e1E

Há muito trabalho pela frente. Depois dos prémios, veremos o que se consegue fazer com plataformas de streaming como Netflix ou HBO, que nenhum autor escutado pelo Observador parece querer ver pelas costas. Se antes a animação portuguesa só entrava na publicidade, a espaços, agora é quase certo que estará num qualquer festival. Sendo tradicionalmente “mais forte no Norte”, terá também de estar noutras zonas do país. Precisará das televisões. De aposta e financiamento. Alguns autores, que quase estiveram na rota dos Óscares, surpreendem-se negativamente quando olham para o que andam a fazer grandes estúdios como a Pixar — “produções vazias com orçamentos extraordinários”. Portanto, indústria sim, mas que não desvirtue o género português.

Afinal, também aqui existem fricções entre cinema de autor e comercial. Estranham como só agora, com “Ice Merchants”, a animação portuguesa tenha chegado onde chegou. Estranham, mas entendem, porque a força do setor português está longe da de outros países que têm uma indústria que apoia os dois lados da barricada. Ainda assim, preferem a nossa animação, “mais artesanal”, “mais rigorosa”, repleta de qualidade, mesmo que não atinja o público de massas para o qual Diogo Carvalho alertava. “Ainda hoje falamos da ‘História Trágica com Final Feliz’, existe alguma curta de ficção de que se fale hoje com a mesma vontade? Estes filmes mantêm essa frescura porque quando se faz um, quando se pensa num, é bom que essa ideia dure dez anos”, conta Abi Feijó.

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