O Parlamento deu esta sexta-feira, 13 de maio, luz verde às alterações que alargam a possibilidade de recurso à Procriação Medicamente Assistida (PMA) — com recurso a gâmetas (óvulos e espermatozoides) doados — às mulheres solteiras ou casais de lésbicas que queiram ter filhos. Assim, é de esperar que a procura por estas técnicas venha a aumentar. E o problema é que os centros públicos não estão preparados para dar resposta a este acréscimo de pedidos, avisam os especialistas contactados pelo Observador.
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Em 2013 nasceram, em Portugal, 258 bebés graças a dadores de esperma e de ovócitos.
“Os centros públicos não estão apetrechados, neste momento, para responder às solicitações que naturalmente surgirão em consequência do alargamento do acesso às técnicas de PMA por parte das mulheres sem parceiro masculino”, afirma, sem qualquer dúvida, Eurico Reis, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.
Na mesma linha, Isabel Sousa Pereira, diretora do único Banco Público de Gâmetas do país, garante que “se o número de dadores continuar a ser semelhante ao que temos neste momento então não vamos conseguir dar resposta a ninguém, nem mesmo aos que já têm direito a recorrer à PMA nos moldes atuais”.
É que o Banco Público de Gâmetas, que funciona desde 2011 na Maternidade Júlio Dinis, no Porto, e que já contribuiu para o nascimento de 70 crianças em cinco anos, tem, no presente momento, em carteira, dois dadores masculinos e nove dadoras femininas. Daí que apenas consiga servir os pacientes do centro de PMA do Centro Hospitalar do Porto. O objetivo de vir a servir outros centros públicos do país existia e continua a existir, mas sem data à vista. Enquanto isso, os centros públicos vão continuando a importar.
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Dois anos é o tempo médio de espera para um casal que recorre a técnicas de PMA com recurso a ovócitos de dadoras nos centros públicos.
Para já, e sem recorrer à importação de gâmetas, tem conseguido dar resposta na hora aos casais que procuram sémen, mas no caso dos ovócitos a lista de espera já vai nos dois anos. Só em 2015, 298 casais deste centro hospitalar recorreram a gâmetas masculinos e 32 procuraram gâmetas femininos. “Muitos casais acabam mesmo por desistir e procuram centros privados”, avança a diretora Além disso, há ainda o problema de não terem tido até hoje dadores de raça negra, um problema sentido também por centros privados. E porque é um problema? Porque os centros escolhem de acordo com características como cor de pele, cor e tipo do cabelo, cor dos olhos, altura, grupo sanguíneo. Isto de forma a que a criança que venha a nascer seja o mais semelhante com a família recetora.
Atrair mais dadores? Mulheres férteis a pagarem uma parte? Reforçar os centros?
E como corrigir esta situação da falta de reservas? Desde logo aumentando o número de dadores. Segundo as contas do CNPMA, no conjunto dos centros (públicos e privados) com autorização para a realização de técnicas de PMA, desde 2013 foram contabilizadas 944 dadoras femininas e 1.303 contributos (cada dadora pode fazer até três ciclos, separados por seis meses) e 70 dadores masculinos, que contribuíram com 280 dádivas (para os homens só há um limite: a partir do momento em que as suas doações já tenham resultado em oito bebés nascidos não podem doar mais por questões de consanguinidade).
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Há no país 10 centros públicos autorizados para levar a cabo técnicas de Procriação Medicamente Assistida e 16 centros privados.
“Estes números mostram que haverá maior sensibilidade por parte das mulheres para este problema. E mostram que há também falta de informação”, argumenta Eurico Reis.
Isabel Pereira salienta que as análises que são feitas aos potenciais dadores homens são “extremamente rigorosas”, ao nível do espermograma, daí que dos 100 homens que se dirigiram ao banco público desde 2011, mais de 70% tenham ficado pelo caminho, e o número efetivo de dadores seja tão baixo.
E precisamente por a taxa de sucesso no caso dos dadores masculinos ser tão baixa é que também Isabel Sousa Pereira defende que é preciso que mais homens se disponibilizem a doar sémen, o que pode ser feito através de uma maior publicitação e divulgação junto da população. Essa é, aliás, a estratégia que tem sido levada a cabo por alguns centros privados. O centro privado IVI, por exemplo, só por causa de uma campanha que fez no mês de abril notou um aumento de 60% nos pedidos de informação para doação, informou a clínica ao Observador, sublinhando que “a procura por parte dos casais recetores é ainda maior do que a disponibilidade de dadores.”
Quem pode ser dador de esperma ou óvulos?
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Podem ser candidatas a doação todos os homens entre os 18 e os 45 anos e mulheres até aos 35 anos, que não tenham história de doenças de transmissão sexual, doenças genéticas ou outras. Após vários testes e análises, o centro público de gâmetas (bancodegametas@chporto.min-saude.pt) ou o centro privado, determinam se estão aptos a doar. As mulheres podem fazer até três ciclos, com seis meses de intervalo. Já os homens podem fazer tantas dádivas quantas quiserem, mas a partir do momento em que tenham nascido 8 bebés graças ao seu sémen já não podem doar mais.
Também a Associação Portuguesa de Fertilidade lançou recentemente uma campanha inédita a nível nacional, junto das universidades, tendo já conseguido o apoio de 104 associações de estudantes, segundo a vice-presidente Filomena Gonçalves, que ainda não consegue avaliar o impacto real da ação. E o próprio CNPMA admite vir a fazer publicidade.
Outra das formas para conseguir atrair mais dadores seria, segundo Eurico Reis, aumentar os incentivos que são dados atualmente e que se fixam nos cerca de 50 euros por dádiva no caso dos homens e 630 euros aproximadamente, por ciclo, no caso das mulheres. O Observador questionou o Ministério da Saúde sobre esta possibilidade mas não obteve resposta.
Enquanto o número de dadores não aumenta, “Portugal vai ter de continuar a importar gâmetas a países como a Dinamarca e Espanha”, se quer dar resposta às solicitações, antecipa o presidente do CNPMA, explicando que também essa opção não é simples, além de que sai muito mais cara ao Estado. O Observador tentou, sem sucesso, perceber o volume da importação de gâmetas e os gastos do Estado com esta rubrica, mas não obteve respostas até ao momento da publicação deste artigo.
Mas não é só nos dadores que é preciso pensar. “O Estado (SNS) pode e deve fazer investimentos no setor, ampliando os meios disponíveis concedidos aos centros (o que pode passar ou não pela criação de mais centros) e deve encontrar soluções pragmáticas para custear essas despesas” que vão subir caso se alargue a possibilidade a mais mulheres, antecipa Eurico Reis.
O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida vai mais longe e sugere mesmo (como já tinha feito no parecer emitido à Comissão de Saúde acerca das propostas de alteração legislativa) que “as novas beneficiárias que não sejam doentes (porque algumas poderão ser inférteis e nesse caso essa regra não se lhes aplica) paguem o preço de custo do procedimento, que será, ainda assim, inferior ao praticado nos centros privados, devendo essas receitas ser destinadas exclusivamente aos centros de PMA públicos e não diluídos no orçamento geral do Estado ou sequer no orçamento do Serviço Nacional de Saúde.”
Centros privados não anteveem problemas de resposta
Mas se para os centros públicos vai ser complicado dar resposta a um aumento da procura por técnicas de procriação medicamente assistida com recurso a esperma doado, já os centros privados não estão preocupados. O problema é que nem toda a gente tem disponibilidade financeira para lá ir.
40% a 60%
A taxa de sucesso de gravidez em casos de doação de esperma ronda os 40% e no caso dos ovócitos chega aos 60%. Nos centros públicos são comparticipadas até três inseminações artificiais e três fertilizações in vitro ou microinjecções intracitoplasmáticas de espermatozoide. Num centro privado cada tentativa custa mais de 1.000 euros.
“Não temos problema em ter dadores, tanto de sémen como de óvulos. Temos um banco de gâmetas em Lisboa e temos também aqui em Sevilha”, afirma ao Observador Fernando Sanchez, o responsável pela unidade de reprodução da Malo Clinic-Ginemed, em Lisboa. Quando em Lisboa não conseguem “cruzar fenótipos [características físicas] vamos buscar ao nosso banco em Espanha que tem reservas muito maiores”. Em Portugal, onde a clínica está presente desde fevereiro de 2015, existem 15 dadoras em carteira e em Sevilha, onde estão desde 1998, têm 700 dadoras em carteira e 50 a 60 ciclos são feitos todos os meses.
“Aqui não há tempos de espera. Em 2015 fizemos 36 ciclos de recetoras de óvulos e este ano já vamos em 22”, contabiliza Fernando Sanchez, que não antecipa problemas com o alargamento da lei da PMA a mulheres solteiras e homossexuais, como já acontece, por exemplo, ali ao lado na vizinha Espanha. “Recebemos muitos casos de mulheres sozinhas que querem engravidar. Nesses casos encaminhamo-las para Sevilha, Madrid ou Barcelona. Só no ano passado terão sido uns 20 casos, a contar também com as mulheres homossexuais.”
Nos centros públicos são comparticipadas até três inseminações artificiais e três fertilizações in vitro ou microinjecções intracitoplasmáticas de espermatozoide ou ovócitos. Nos centros privados os valores variam muito. Consultando os sites de alguns dos centros autorizados em Portugal percebemos que a inseminação intra-uterina com doação de espermatozoides pode custar entre 500 euros (sem os custos inerentes ao rastreio dos dadores e obtenção de gâmetas) e os 1.000 euros (incluindo as ecografias durante o tratamento). Já a microinjecção intracitoplasmática de espermatozoide varia entre os 3.900 euros e os 4.200 euros, sem contar com análises nem medicamentos. As técnicas que envolvem a doação de ovócitos (microinjecção intracitoplasmática e fertilizaçao in vitro) nunca custam menos de 4.000 euros, a menos que os ovócitos sejam criopreservados. Nesse caso o tratamento cai para a casa dos 2.000 euros.
A AVA Clinic foi a primeira clínica privada, em 2000, a efetuar tratamentos com doações de ovócitos em Portugal. Desde então já efetuou quase 600 tratamentos com recurso a doação de ovócitos, sendo que conta para isso com uma carteira de algumas dezenas de dadoras, e sem listas de espera. “Este é o tipo de tratamento de reprodução medicamente assistida com maior sucesso – cerca de 50% por tentativa, uma vez que as dadoras são jovens e saudáveis”, assegura Cândido Tomás, diretor clínico da AVA Clinic.
Já no que toca ao esperma, “apesar de ser mais fácil a obtenção e a conservação, o processo de recrutamento e de confirmação da qualidade do esperma é mais moroso [são precisos seis meses de quarentena para confirmar ausência de infeções virais] e por isso ainda utilizamos na maioria dos casos Bancos Certificados Europeus de origem Escandinava”. E como tal Cândido Tomás diz que a clínica “está preparada” para o aumento da procura.
Anonimato: o direito à privacidade vs direito à identidade pessoal
Outra questão que se levanta quando se fala sobre procriação medicamente assistida com recurso a gâmetas doados tem a ver com o direito da criança que venha a nascer a conhecer o seu progenitor. E, como qualquer discussão, também esta não é consensual, sendo que há países onde a identificação é obrigatória (o caso da Suécia é o mais antigo) e outros em que o anonimato é a regra (à semelhança do que acontece em Portugal) e há defensores das duas opções.
Pai "x"
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Quando uma mulher casada ou unida de facto vai registar a criança, há uma presunção de paternidade em relação ao marido, a menos que ele não dê autorização. No caso de a mulher ser solteira ou casada ou junta com outra mulher, teoricamente o conservador deve informar o Ministério Público que abre um processo de averiguação de paternidade e acaba por arquivá-lo porque a mulher vai explicar que recorreu a sémen de um dador e que não sabe quem é o pai. No lugar do nome do pai vai aparecer um “x”.
Em Portugal, apenas a identidade genética tem de ser revelada. Mas, se os dadores não se importarem, de todo, de ser identificados mais tarde, então devem dar essa permissão no termo que assinam logo no início do processo de doação. Já há quem o tenha feito, afirma Eurico Reis sem conseguir detalhar ao Observador quantos deram essa luz verde, mas garantiu que a maioria “prefere manter-se no anonimato”. “Estas pessoas não querem ser pais. Querem apenas ajudar outros a ser pais”, explica, argumentando desta forma a sua opinião de que o princípio do anonimato deve ser mantido na lei. Além disso, acrescenta, tornar a identificação do dador a regra iria levar a uma quebra no número de dadores “como aconteceu nos países que optaram por alterar a lei no sentido da obrigatoriedade da identificação”, como em países nórdicos, nos Estados Unidos e no Reino Unido, avisa.
Já Paula Martinho, do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto não partilha da mesma opinião. “Eu sou contra o princípio do anonimato. A pessoa tem o direito de conhecer a identidade do seu progenitor. Porque a identidade dos meus progenitores faz parte da minha identidade”, defende, explicando que os países que deixaram cair esse princípio começaram por sentir a tal quebra nas dádivas, mas que “os estudos mostram que houve de facto uma diminuição dos dadores e que depois se entrou numa rotina. É uma questão cultural”.
Os dadores que não querem ser identificados vão para um sistema encriptado que só perante decisão judicial pode ser consultado e apenas pelo presidente e pelo vice-presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), que têm de inserir um código ao mesmo tempo.
E se alguma criança quiser conhecer a identidade do seu dador ou da dadora tem de pedir ao CNPMA ou recorrer a Tribunal. Até agora “ninguém quis saber ainda”, assegura o presidente do Conselho.”A parentalidade é um conceito acima de tudo emocional. Se alguém está interessado em perguntar quem são os dadores é porque alguma coisa não está a funcionar bem. Essa curiosidade existe se houver algum problema no seio da família.”
O Parlamento aprovou alterações à PMA e deu luz verde às barrigas de aluguer
As alterações à Lei da Procriação Medicamente Assistida foram aprovadas esta sexta-feira, 13 de maio, no Parlamento. A maioria de esquerda chegava para fazer passar as alterações, que alargam a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil e da sua orientação sexual, a possibilidade de recorrerem a estas técnicas, mas 16 deputados do PSD decidiram juntar-se e votaram também favoravelmente e outros três abstiveram-se.
As alterações em cima da mesa
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A lei atual apenas prevê a utilização de técnicas de PMA “mediante diagnóstico de infertilidade” ou em caso de “tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças” e a casais de sexo diferente. As alterações à lei que foram aprovadas esta sexta-feira preveem o alargamento das técnicas a “todas as mulheres independentemente do diagnóstico de infertilidade” e “independentemente do estado civil e da respetiva orientação sexual”. Além disso acaba com a obrigatoriedade da averiguação oficiosa da paternidade.
A par com este texto, esteve em votação um outro, da autoria do Bloco de Esquerda, sobre a gestação de substituição (as chamadas barrigas de aluguer). E em relação a este havia muitas dúvidas. No Grupo de Trabalho a proposta tinha sido chumbada pelo PSD, CDS e PCP, mas PSD deu liberdade de voto aos deputados e, para surpresa de muitos, em Plenário, o projeto acabou por passar, com o apoio de 24 deputados do PSD (entre eles Pedro Passos Coelho). PCP, CDS e dois deputados do PS votaram contra.
Este projeto prevê que mulheres que, por razões de saúde, não possam desenvolver uma gravidez possam recorrer ao útero de outra mulher, sem que haja qualquer tipo de pagamento.
Antes desta votação, Eurico Reis, da CNPMA, afirmava ao Observador que torcia para que a gestação de substituição também fosse aprovada pois “o grau de sofrimento destas mulheres é enorme” e dizia-se “abismado” com “a insensibilidade perante o sofrimento destas mulheres”, lembrando que isto já é feito “fora da luz do dia”. E recordava Gilberto Gil para terminar: “Quem sabe de mim sou eu”.