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Na prateleira de cima vão os patos e os cães, colocados em fila e surpreendentemente quietos, ou não tivessem sido transformados em jarros de servir água e vinho. Por baixo há couves espalmadas como travessas, macacos deitados de lado, à falta de uma árvore onde se agarrarem, e uma dezena de peixes-ruivos com a barbatana da cauda de fora. Parece um estranho laboratório de embalsamento mas é apenas uma etapa do processo de fabrico das faianças Bordallo Pinheiro. O exército branco e imóvel vai a caminho do forno antes de ser vidrado, pintado e usado nas cozinhas do país — e do mundo — fora.
Mais de um século depois da sua fundação e com uma mudança de instalações e a ameaça de vários processos de falência pelo meio, a fábrica aberta por Rafael Bordallo Pinheiro em 1884, nas Caldas da Rainha, continua a transformar em cerâmica o universo naturalista e exuberante do mestre. São cães e patos mas também ratos, lagostas, tomates, rãs e gatos reproduzidos em dimensões agigantadas ou transformados em azulejos, centros de mesa, jarros, travessas ou demais loiça. Uma fauna e flora que até há pouco tempo estava praticamente reduzida aos naperons das avós, era apelidada de kitsch ou de gosto duvidoso, e que na última década tem vindo a ser pendurada nas paredes das casas mais modernas, mostrada em feiras de design como a Maison & Objet, em Paris, ou aberta à criação de outros artistas.
Paula Rego é a mais recente e por estes dias a fábrica atarefa-se a fazer a peça criada pela pintora portuguesa, um enorme figo aberto que na verdade é uma adaptação em cerâmica de uma escultura têxtil da artista. Limitada a 125 exemplares e comprada por subscrição (e por 3.500€), a obra é um dos melhores exemplos das técnicas envolvidas nas faianças da marca centenária. Para além de ser inteiramente feita à mão, do molde inicial ao banho vidrado verde, a peça decorativa serve-se das texturas centenárias praticadas pelo mestre Bordallo Pinheiro, como o areado e o musgado, assim batizadas por serem técnicas que recriam, no barro, o efeito da areia ou do musgo.
Do molde de gesso à caneta de feltro: como se fazem as faianças
Elsa Rebelo ajeita os óculos no nariz para examinar um figo de Paula Rego na secção de Controlo de qualidade. Há 16 anos na fábrica e de uma família de ceramistas, a diretora artística da Bordallo Pinheiro analisa pessoalmente, e uma a uma, as peças de autor. Ao seu lado, uma funcionária bate com um ferro numa chávena azul do serviço nenúfar. Se a loiça não fizer um tinido vibrante, significa que está partida ou rachada. “Aqui não basta ter os olhos bem abertos, temos de ter os cinco sentidos apurados”, diz, enquanto continua a estranha sinfonia. No mesmo compasso, uma colega de caneta de feltro em punho faz riscos pretos numa saladeira em forma de melancia. Os riscos, explica, servem para identificar os defeitos que outro departamento há-de corrigir. “Pode ser um ‘altinho’ na louça ou uma rugosidade que ficou por limar. Assim já sabem o que devem procurar.”
Se há loiça que pode ser salva e outra que está pronta a ser embalada, depois de ser carimbada com a rã que serve de logótipo da marca, alguns pratos e travessas não escapam ao destino fatal: serem partidos sem dó nem piedade pelas mesmas funcionárias que garantem que ao consumidor só chega o melhor produto. Vendo-as atirar taças e jarros para dentro de dois contentores perante um estrondoso “crack!”, poderia pensar-se que o gesto é terapêutico. Na verdade, dói quase tanto como partir a última peça do serviço herdado pela bisavó. É que antes de aqui chegar, esta louça já andou muito.
Tudo começa atrás da porta onde se lê Modelação, no primeiro andar da fábrica. Seja uma travessa ou uma escultura, todas as peças da Bordallo Pinheiro são feitas a partir de moldes de gesso depois enchidos com barro quente, “alguns tão detalhados que chegam a ter a textura da pele das sardaniscas”, diz Elsa Rebelo. “Há armazéns e armazéns de moldes”, acrescenta o chefe do departamento, Vítor Formiga. Só referências de peças “serão umas seis mil”, a questão é que “cada uma pode chegar a ter 40 moldes diferentes”. Uma das célebres lagostas criadas pelo mestre Rafael antes do telefone surrealista de Salvador Dalí, por exemplo, corresponde a umas boas dezenas, com moldes diferentes para as patas, a cauda ou até as antenas. “Depois é como montar Legos, é preciso encaixar tudo”, diz Formiga.
O mesmo quebra-cabeças foi feito há cerca de uma década, quando se começou a querer recuperar o património original do mestre, guardado — ou será melhor dizer abandonado — num armazém contíguo à fábrica, a ganhar pó, enquanto a fábrica produzia loiça para outras marcas. “Havia formas partidas, gessos podres e muitas partes inexistentes”, recorda a diretora artística. “Pusemos barro nos moldes para sacar toda a informação possível do artista.” Moldes tão pequenos como a folha que decorava um jarro ou tão grandes como a cabeça de um touro, este ainda com vestígios de pelos. “Bordallo queria ser tão realista que nalguns casos usou mesmo animais verdadeiros para criar as peças”, conta Elsa.
Na oficina da modelação não há animais sem ser de faiança mas umas folhas com picos denunciam uma das criações em que a equipa de Vítor Formiga está a trabalhar por estes dias: um novo serviço de mesa em forma de cato, que deverá sair ainda este ano. Para evitar voltar a perder informação, e porque o gesso se degrada facilmente (embora tenha de ser usado, por absorver a água), para cada molde de cada peça, antiga ou nova, faz-se um outro molde em silicone, mais resistente. Na fábrica chamam-lhe, apropriadamente, “a madre”.
Em forma de rabo de peixe ou de rato, os moldes podem ter mil e um feitios mas o recheio é que nunca varia: é sempre barro, o que explica a própria afirmação das Caldas da Rainha como uma espécie de capital da cerâmica. “A zona é muito rica em barros, sobretudo em faiança, uma pasta de argila de origem calcária, ou não estivéssemos perto do maciço da Serra de Aires”, diz Elsa Rebelo, explicando também as diferenças entre a faiança e a porcelana usada por exemplo noutra marca do Grupo Visabeira (que comprou a Bordallo Pinheiro em 2008), a Vista Alegre. “A faiança é mais plástica, mais escultural. Não aguenta tanta temperatura mas permite a aplicação de vidrados coloridos.”
Voltando ao processo, depois de encher o molde com barbotina (o tal barro líquido quente), “espera-se para formar a parede da peça e despeja-se o excedente. Mais uma pausa e retira-se do molde”, explica a diretora artística. Nas prateleiras à volta há vários exemplos acabados de desenformar e de repente parece que se está a olhar para uma banca de mercado. Para além de bocados do figo de Paula Rego há ruivos grandes — da nova coleção de peixes e mariscos –, bacalhaus secos e folhas de castanheiro. Formas sem cores que seguirão daqui para a Ornamentação ou para o Acabamento, consoante sejam réplicas decorativas ou peças de cariz mais utilitário, para de seguida levarem um banho de vidro com a cor pretendida na Vidração, uma técnica graças à qual ficam não só embelezadas mas também impermeabilizadas. “É o que nos permite comer a sopa”, resume Elsa.
Todos os dias são produzidas cinco mil peças na fábrica, mas o ambiente não é barulhento nem industrial, o que se explica pelo facto de a maior fatia da produção ser manual. “Mais de 95 por cento das peças são pintadas à mão”, diz Nuno Barra, administrador da marca. “A única coisa decalcada são as ilustrações das sardinhas [feitas em parceria com as Festas de Lisboa], uma técnica aprendida na Vista Alegre e feita na fábrica da marca, em Ílhavo.”
De pincel na mão, os funcionários da secção de Pintura parecem concordar. Para além de azulejos bordalliano que farão as vezes de tampas ou das famosas andorinhas, também se pintam as flores de uma saladeira de servir na mesa. “Mesmo as peças utilitárias têm uma componente manual dada a pincel”, diz Elsa, explicando porque é que as cores que se veem ser aplicadas na peça não parecem ser as mesmas que surgem no produto final: “É preciso contar com o calor da cozedura, que vai alterar o pigmento. Só sabemos se ficou tudo bem ao abrir a porta do forno.”
Antes de seguirem para aquecimento, as peças já foram portanto moldadas, coladas, limadas, ornamentadas, vidradas e pintadas. Está explicado porque é que custa vê-las serem partidas sem dó nem piedade, quando alguma coisa correu mal.
Relançar a marca, couve a couve
Se a máquina agora está oleada, não é preciso andar muito no tempo para encontrar outro cenário. Em 2008, quando a Visabeira adquiriu a Bordallo Pinheiro, a marca praticamente não existia. “A fábrica produzia numa lógica industrial para quem encomendasse”, conta o administrador Nuno Barra. O mesmo é dizer que se aparecesse uma concorrente francesa a pedir o serviço couve com o seu próprio logótipo, a fábrica fazia. E estava praticamente concentrada nos pedidos que chegavam de fora, tirando uma ou outra encomenda que pedia especificamente Bordallo, como as que começaram a chegar da parte da artista Joana Vasconcelos ou da loja de Catarina Portas, A Vida Portuguesa.
“Não havia controlo nenhum sobre o produto. Fazia-se imensa coisa para a alemã Asa e a segunda fábrica abriu precisamente para dar vazão às muitas encomendas dessa marca”, continua o administrador. “Foi preciso parar e dizer: ‘agora a aposta é na marca da casa’. Foi preciso reconquistar os clientes, porque a Bordallo estava focada na distribuição.” Foi também preciso reposicionar os preços, porque “perdia-se dinheiro a cada prato”. Apostar na internacionalização e começar a fazer feiras internacionais, ou ainda ter um designer a tempo inteiro para trabalhar em novos lançamentos, como o serviço melancia, lançado no verão do ano passado.
Feitas no parque industrial das Caldas Rainha, no tal segundo edifício que começou por abrir para responder a encomendas exteriores — sendo que as instalações originais fundadas por Bordallo Pinheiro funcionam atualmente como loja, outlet e museu aberto apenas por marcação –, das cinco mil peças que saem da fábrica diariamente, “90 por cento é Bordallo, 10 são encomendas exteriores de outras marcas”, diz Nuno Barra. “Uma clara inversão em relação ao que acontecia antigamente” que explica, no entanto, o que fazem umas jarras brancas e minimais no meio de pratos cheios de nervuras ou de vasos onde pousaram umas quantas andorinhas.
Com 211 trabalhadores ao todo — mais 39 do que em 2016 — os planos de crescimento da marca passam também por expandir as próprias instalações. “Atualmente a fábrica tem nove mil metros quadrados e o objetivo é passar a ter 12 mil num único piso térreo, mais fluido, em janeiro de 2019”, diz Tiago Mendes, diretor de produção.
E se os portugueses redescobriram o animalário e as hortículas que decoraram as casas de outras gerações, o mesmo se pode dizer de outras nacionalidades, ao ponto de praticamente metade do que é feito na fábrica seguir para exportação. “Neste momento temos uma loja online para Portugal, outra para Espanha, uma terceira para a Europa e ainda outra para o resto do mundo”, diz Nuno Barra, avançando que o objetivo é juntar rapidamente os Estados Unidos à lista, e que neste momento os mercados estrangeiros mais importantes para a marca são “Espanha, Itália e a Coreia do Sul”.
Uma coisa é certa: na Maison & Objet deste ano, uma das feiras internacionais onde a marca está presente atualmente (outras são a Ambiente, em Frankfurt, e a Table Top, em Nova Iorque), a Bordallo Pinheiro já ganhou o prémio de originalidade. A culpa não foi só dos candeeiros de teto em forma de legumes, uma das novidades a lançar ainda este ano. Foi sobretudo da banca de peixe onde os franceses puderam comprovar que sim, os portugueses adoram bacalhau ao ponto de o pendurar nas paredes, mas também admirar alguns dos novos 22 peixes e mariscos em caixas recheadas com sal grosso.
Um génio com um macaco ao ombro
Apesar desta estratégia de internacionalização ser recente, ver Bordallo Pinheiro (1846-1905) chamar a atenção na capital francesa não é algo novo. Em 1889, Rafael foi encarregado por D. Carlos (de quem seria amigo) da decoração de várias salas do Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris. O rei tinha-lhe pedido que surpreendesse e o ceramista lá arranja maneira de fazer desembarcar reproduções de animais em grandes dimensões — iguais aos que hoje estão espalhados pelas Caldas da Rainha. A fábrica das faianças ganha a medalha de ouro e Rafael Bordallo Pinheiro o grau de Cavaleiro da Legião de Honra atribuído pela cidade anfitriã.
Lisboeta admirador de Eça de Queirós e frequentador do eixo artístico do Chiado, Bordallo Pinheiro não tinha qualquer ligação com as Caldas da Rainha quando decide abrir uma fábrica de faianças, a 30 de junho de 1884. Na verdade, é o seu irmão Feliciano que o desafia a aproveitar os ótimos barros e a tradição cerâmica da vila depois de uma estadia nas termas das Caldas. Rafael tem 38 anos quando se inicia como ceramista e se torna diretor artístico da fábrica (ficando o irmão com a parte organizativa). Nessa altura já tinha passado pelo teatro, estudado nas Belas Artes e publicado vários jornais humorísticos — entre os quais “A Paródia”, “A Berlinda” e “António Maria” –, sendo conhecido como jornalista e caricaturista.
Com um capital inicial de 400 mil reis, recolhido numa sociedade que juntava nomes da banca e da finança como Felisberto José da Costa, João Burnay, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, a fábrica é construída num terreno de oito hectares na Quinta da Pacheca e inclui uma escola de cerâmica. O mestre instala-se mesmo aí no parque da fábrica, em pleno bosque, num chalet de cortiça excêntrico que chama tanta atenção como o macaco que passeia ao ombro, chamado Basílio e que trouxe de uma viagem ao Brasil.
Inspirado pela natureza à sua volta, o macaco será um dos muitos animais que o artista recria em cerâmica, assim como touros, abelhas, rãs, andorinhas ou gatos — outros dos seus favoritos –, mas também abóboras, alhos, cereais e couves, com todas as suas nervuras. Seguindo a sua veia de caricaturista, Bordallo modela também as personagens do quotidiano português como o famoso Zé Povinho, a Maria da Paciência, a Ama das Caldas, a Saloia, o Polícia ou o Padre a tomar rapé. Às telhas e azulejos usados para construção dos primeiros anos de produção, a fábrica junta rapidamente loiça artística e depois loiça comum, embora a aceitação desta última não seja a esperada e o risco de falência esteja quase sempre presente, apesar dos apoios do Estado.
Ao longo de 21 anos de produção cerâmica, interrompidos apenas pela sua morte, aos 58 anos, Rafael Bordallo Pinheiro “criou centenas de modelos diferentes, decorativos ou utilitários, inspirado pelo Naturalismo ou a Arte Nova, além das criações de pendor humorístico, em que ressaltava o pitoresco”, lê-se num painel do pequeno museu que funciona por trás da fábrica original, aberto apenas por marcação e para grupos de um mínimo de quatro pessoas.
Com o seu desaparecimento, foi o filho Manuel Gustavo que continuou a obra do mestre até 1920, ano em que morre de doença prolongada e são os próprios caldenses e operários que dão continuidade à empresa, adquirida depois de uma crise profunda pelo Grupo Visabeira, em 2008.
O resto da história já se conhece e continuará viva enquanto houver exércitos de cães, patos, peixes e couves a saírem das Caldas da Rainha.