Já a conferência de imprensa ia em mais de duas horas quando o ministro das Finanças foi ao baú de memórias recentes para justificar porque não foi mais além na devolução de rendimentos: “Não é preciso recuar muito tempo para vermos as dificuldades que teríamos nos mercados financeiros internacionais”, com “diminuições muito significativas da fiscalidade ou o aumento de custos permanentes”. A troika foi chamada por um Governo PS — e sempre justificada com a conjuntura internacional — mas isso é passado para este Governo socialista que já assume a má gestão desse tempo com naturalidade. E a usa mesmo para justificar medidas de abrangência menos alargada e mais centradas em públicos concretos, aqueles que pesam no ano eleitoral de 2024 (funcionários públicos, pensionistas, classe média).
As alterações fiscais dirigem-se à classe média e jovens e o reforço dos apoios sociais aos mais vulneráveis. Anúncios que foram acompanhados da apresentação de gráficos com figuras e exemplos quantitativos das poupanças para os beneficiados e que incluíram até medidas que Medina já tinha apresentado fora do quadro do Orçamento — como por exemplo a estabilização das prestações do crédito à habitação. No entanto, ainda nada disse sobre o apoio esperado para controlar o aumento das rendas previsto para o próximo ano, com o ministro a remeter a solução para a ministra da Habitação, deixando-a fora do OE.
A cada passo da apresentação, Fernando Medina repetia a fórmula sempre que a pergunta cruzava o excedente de 0,9% do PIB para este ano e de 0,2% previsto para o próximo e um desagravamento fiscal pouco alargado. A medida dirige-se “exclusivamente às classes médias” do país e não “aos que recebem mais rendimentos ou têm rendimentos mais altos”, fez questão de assinalar.
As taxas de IRS descem entre 1,25 pontos percentuais e os 3,5 até ao quinto escalão de rendimentos, beneficiando salários brutos mensais que vão até aos 2.232 euros. Já quanto aos apoios sociais, o abono de família sai reforçado em 22 euros por mês (264 euros por ano), no caso dos beneficiários até ao quarto escalão e 72 meses de idade, abrangendo 1,15 milhões de crianças e jovens. E há outra novidade: acaba o IVA Zero para todos, a partir de 2024, mas para os mais vulneráveis ganha carácter permanente, passando a estar integrado nas prestações sociais, através de um aumento adicional de sete euros, que correspondem ao valor médio da bonificação do IVA zero.
No IRS, a redução para este ano fica acima do previsto no programa de estabilidade — cerca de 500 milhões que passaram a 1.327 milhões –, ultrapassando mesmo a proposta do PSD para este ano, que passava por um desagravamento com impacto de 1.200 milhões de euros. A grande diferença é que esta medida dos social-democratas teria já impacto no bolso dos portugueses este ano. A descida agora proposta irá sentir-se no bolso dos contribuintes que pagam impostos (cerca de metade) logo em janeiro de 2024 com o ajustamento das tabelas de retenção.
Medina foi questionado sobre a existência de uma picardia com os sociais-democratas, mas não respondeu. Teve sempre ataques indiretos à oposição, sem nomear, mas apontando o dedo à “irresponsabilidade” e “demagogias” dos que “prometem mundos e fundos”. Ainda que tenha alegado uma habitual “abertura” da maioria socialista para aceitar propostas de alteração da oposição, não deu indícios de que ela possa dar muito mais frutos do que no ano passado, onde o que foi aceite do lado da oposição não passava de estudos, avaliações e grupos de trabalho.
Mais uma vez sem dizer de quem falava, Medina falou na existência de “partidos mais interessados num diálogo claro para viabilizar alterações e outros que estão a tentar fazer vingar mais um anúncio e ganhar um crédito junto de um sector eleitoral” e isso, disse logo, “é algo que não nos deve fazer perder muito tempo”. No PS podem ter chovido avisos — o do presidente Carlos César foi o mais significativo — sobre a necessidade de um diálogo inclusivo e de um PS consciente de que “não é o dono do país, nem o único a ter as melhores ideias ou a ter sempre as boas ideias”, mas a linha governativa parece ter sido pouco sensível à argumentação.
Um orçamento eleitoralista?
O ano que vem abre um ciclo longo de eleições que começa com as Europeias de 9 de junho (acabando em 2026, com legislativas) e vão ser um importante momento de medição das popularidades partidárias, nos dois anos da maioria absoluta de António Costa. E o Orçamento do Estado cobre uma franja importante de eleitorado socialista.
Traz aumentos salariais na função pública (com um impacto orçamental de 715 milhões de euros, enquanto as progressões e promoções vão custar 177 milhões e o aumento da remuneração base 132 milhões), traz o reforço de apoios sociais, traz o maior aumento de sempre desde que existe a fórmula de atualização das pensões, com uma subida de 6,2%, muito acima da inflação de 2023 e da prevista para 2024 (a medida custa 2.223 milhões de euros). E a classe média, claro, com as alterações fiscais que a afetam a terem efeitos logo no início do ano, nas tabelas de retenção na fonte, e não apenas com o reembolso que só se faria sentir lá para maio de 2025.
Mas Medina projeta qualquer intenção velada de agradar ao eleitorado para o lado da oposição, onde diz ver a tal demagogia, nomeadamente quando a oposição aponta ao Governo um agravamento da carga fiscal. Este é um dado que o ministro quer desarmadilhar desde já, garantindo que a receita fiscal aumentou mas “pelo melhor dos motivos possíveis: temos o mercado de trabalho em condições para que mais pessoas encontrem fontes de rendimento”. “O que não se pode fazer é usar demagogia de dizer que há um aumento fiscal concreto sobre as famílias. Temos vindo a reduzir a carga fiscal, mas hoje trabalham mais um milhão de pessoas do que em 2015”, justificou. “Nada tem a ver com agravamento fiscal e quem diz o contrário faz demagogia”, atirou sobre este assunto e a antecipar as críticas da oposição.
“Não há um cardápio de prometer tudo a todos. Incluímos esta diminuição fiscal num Orçamento feito de forma responsável” e que tem um saldo positivo , o que “é muito diferente de quem anda a prometer dar tudo a todos”.
Outra crítica que surgiu logo ontem da parte da oposição — sobretudo à esquerda — foi precisamente sobre a insuficiência das medidas de devolução, quando o país tem em mãos um excedente, que prevê repetir (num valor menos otimista) no próximo ano. Também aí Fernando Medina avança com o mesmo argumento de necessidade de contenção: “Não seria adequado utilizar saldos orçamentais contingentes de forma indiscriminada, para a subida indiscriminada da despesa permanente. Mas também não seria adequado não atribuir-lhe um destino”, tenta contrabalançar justificando, mais uma vez, que a opção foi “dirigir e concentrar a diminuição do IRS nas classes médias”, já que nos anos anteriores focou nas classes mais baixas.
Tirar as Finanças das decisões sectoriais
Numa conferência em que evitou dar qualquer resposta às muitas perguntas sobre a privatização da TAP — cuja receita nem consta do Orçamento para 2024 —o ministro das Finanças prometeu reforços nos orçamentos de áreas sensíveis como a habitação e a saúde, apesar de no primeiro caso ter atirado a solução para o aumento das rendas para a ministra Marina Gonçalves. E até garantiu que o seu ministério deixará de ser garrote dos gastos do Governo. Segundo explicou Medina, as despesas alvo de cativações passam a poder ser autorizadas pela mera intervenção do ministério da tutela setorial, sem precisar do aval também das finanças.
O acenar com a conjuntura internacional é o outro argumento usado pelo ministro para justificar a parcimónia na distribuição, como também a necessidade de continuar a reduzir a dívida pública — outro argumento do passado recente de que o PS de hoje não prescinde, nem que para isso tenha de acertar no PS do passado, aquele que era liderado por José Sócrates.
Sobre a conjuntura internacional, Medina diz que a proposta que entregou esta terça-feira no Parlamento já “contextualiza” os acontecimentos recentes no Médio Oriente e a instabilidade para os mercados que daí possa advir. Logo quando começou a apresentação, colocou a incerteza em alguma zonas do globo como um dos riscos que o próximo ano acarreta, com “instabilidade nas relações comerciais entre os grande blocos comerciais com impactos nas cadeias de abastecimento”. Isto além do impacto nos preços dos combustíveis. “Entramos hoje num ciclo de volatilidade“, assumiu. Tudo isto pressiona o crescimento da economia que o Governo prevê que abrande dos 2,2% deste ano para 1,5% em 2024.
Para as empresas, pouco mexe, apenas entra a taxa reduzida no próximo ano aplicado às startups. São apenas as empresas que são consideradas como de pequena ou média dimensão ou de pequena-média capitalização que vão beneficiar desta descida na taxa que é “aplicável aos primeiros 50 mil euros de matéria coletável”, de acordo com a proposta de OE do Governo. E na frente empresarial há outro alívio, da taxa sobre lucros extraordinários das distribuidoras e empresas de energias — que deu muita controvérsia até Medina ter aceitado aplicá-la. Agora desaparece, com o ministro a dizer que a medida “ancorou-se no regulamento comunitário que abrangeu 2022 e 2023 e não abrange o ano de 2024”.
Sobre a dívida, Medina ia logo munido de um gráfico, que exibiu na apresentação da proposta, garantindo que se nada tivesse sido feito e Portugal se mantivesse hoje no quarto lugar dos mais endividados (posição que ocupava em 2015), os “encargos subiriam 2.300 milhões de euros” este ano, “seriam mais de 230 euros por ano em impostos por residente”, assegurou na conferência de imprensa. O controlo da dívida é para manter, com a previsão de em 2024 o valor ficar, pela primeira vez desde 2009, abaixo dos 100% do PIB (nos 98.9%).
Um esforço de redução que o ministro coloca entre as forças do país nesta fase, dizendo que a “credibilidade financeira” é “um ativo”, bem como a “estabilidade política e compromisso social”. Até faz o comparativo — sem referir — com Espanha, ao falar de “países que nos são próximos” e onde é possível “ver o impacto da instabilidade política na resolução dos problemas das famílias”. “A estabilidade política é um ativo muito importante e também a capacidade do Governo negociar com parceiros sociais e movimentos sindicais”, afirmou Medina apoiado na maioria e na negociação recente que atualizou o acordo de rendimentos.
Só não disse que a maioria vacilou muito no último ano, com a dissolução a ser referida por mais do que uma vez pelo Presidente da República perante as várias crises políticas do Governo, nem que o acordo firmado sábado passado este ano não só não conta com a CGTP, como também não tem a maior confederação patronal, a CIP.