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O serviço mais antigo na área da assistência domiciliária em cuidados paliativos é o do IPO de Lisboa.
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O serviço mais antigo na área da assistência domiciliária em cuidados paliativos é o do IPO de Lisboa.

MÁRIO CRUZ/LUSA

O serviço mais antigo na área da assistência domiciliária em cuidados paliativos é o do IPO de Lisboa.

MÁRIO CRUZ/LUSA

"Não temos resposta para o sofrimento." Larga maioria dos doentes continua sem acesso a cuidados paliativos

Número de equipas domiciliárias aumentou, mas faltam os profissionais. Também o número de camas para internamento está aquém do necessário. Governo prepara-se para regulamentar a lei da eutanásia.

Apesar dos avanços dos últimos anos, cerca de 70% dos doentes ainda não têm acesso à prestação de cuidados paliativos em Portugal e várias zonas do país não oferecem sequer resposta nesta área, quer ao nível das equipas comunitárias de suporte (constituídas por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos) quer ao nível do internamento hospitalar. Perante a insuficiência de recursos e camas de cuidados paliativos, o governo prepara-se, contudo, para regulamentar a lei da morte medicamente assistida (aprovada pelo Parlamento em maio). Para os especialistas nesta área, a lei “não faz sentido” porque os doentes “não têm liberdade” na escolha perante uma situação de sofrimento extremo.

Com o aumento contínuo do número de pessoas a necessitar de cuidados paliativos (consequência do envelhecimento da população), o acesso a este tipo de cuidados continua a marcar passo. “Temos um país sem uma resposta adequada para o sofrimento dos doentes. Os cuidados paliativos não são acessíveis à maior parte das pessoas que sofrem com doenças graves — cerca de 70 mil precisam e não têm acesso”, diz ao Observador a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. A enfermeira Catarina Pazes sublinha que “o foco tem de ser aumentar o acesso aos cuidados”.

“Investimento não é uma realidade” e metas ficaram por cumprir

As estimativas apontam para que cerca de 100 mil pessoas precisem deste tipo de cuidados. No entanto, apenas 30 mil conseguem aceder-lhes. Apesar dos vários planos estratégicos apresentados ao longo dos anos, o país pouco melhorou. Em 2016, a taxa de cobertura era de apenas 20% — e sete anos depois está nos 30%. “Há muitas proclamações, mas vão passando os anos e não temos respostas claras a uma velocidade que nos tranquilize. É tudo demasiado lento e insuficiente“, aponta ao Observador a médica Isabel Galriça Neto, que trabalha nesta área há quase três décadas.

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Catarina Pazes é presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e trabalha no terreno, em Beja

Foi em junho de 2016 que o Ministério da Saúde, à época ainda liderado por Adalberto Campos Fernandes, nomeou, através de um despacho, os membros da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. A intenção do governo era que os cinco membros da Comissão elaborassem planos estratégicos para o desenvolvimento dos cuidados paliativos e metas de progresso anuais. De facto, as metas foram traçadas, mas quase nunca foram cumpridas. “Houve legislação, planos estratégicos, objetivos e mobilização, mas nunca se atingiram os objetivos e por isso se foram mantendo metas muito similares em todos os relatórios”, sublinha Catarina Pazes, referindo-se aos relatórios bienais apresentados pela Comissão. O mais recente, que deveria fazer o balanço da concretização das metas do plano estratégico de 2021-2022, ainda nem sequer é conhecido. “Chegamos a 2023 e não conhecemos os dados atuais relativamente ao número de equipas que existem, ao número de profissionais. Para podermos exigir e definir planos e objetivos temos de perceber qual o estado da situação”, diz a responsável.

A presidente da Associação de Cuidados Paliativos garante que os planos não traçavam sequer objetivos ambiciosos. “Pediam só o mínimo para as equipas funcionarem, em termos de recursos humanos com formação avançada em cuidados paliativos, para corresponder à qualidade necessária em prol dos doentes”, lembra Catarina Pazes. A trabalhar há sete anos, a Comissão não conseguiu reverter o panorama nacional, marcado por uma “insuficiência da resposta”, realça Isabel Galriça Neto.

Novo modelo para cuidados paliativos é desajustado da realidade do país, acusa associação

“Do ponto de vista político, continua a ser uma área em que o investimento não é uma realidade”, lamenta Catarina Pazes, que trabalha na Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja Mais.

A resposta na área dos cuidados paliativos divide-se em três dimensões: as equipas intra-hospitalares, que prestam apoio aos doentes internados nos hospitais, em várias especialidades; as equipas comunitárias de suporte (vulgarmente designadas como equipas domiciliárias, que funcionam a nível dos cuidados de saúde primários) e a rede de internamento em cuidados paliativos.

Equipas domiciliárias têm falta de profissionais e não há incentivos

No que diz respeito às equipas intra-hospitalares, a cobertura é quase total: existem 45 equipas, uma por cada centro hospitalar, hospital e IPO. A única exceção é a Unidade de Saúde Local do Baixo Alentejo, que abarca o Hospital de Beja, e que ainda não tem equipa constituída. As maiores carências atingem, no entanto, as outras duas dimensões da resposta: as equipas domiciliárias e a rede de internamento.

Os vários planos estratégicos prevêem que seja constituída uma equipa domiciliária em cada um dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) do país. Apesar do reforço de 10 equipas, levado a cabo no ano passado com verbas do Plano de Recuperação e Resiliência, ainda só existem 37, “pouco mais de metade do necessário para cobrir o país”, admite ao Observador o presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. Rui Sousa Silva reconhece que “este aspeto tem consequências muito relevantes no que respeita à possibilidade de desinstitucionalizar o apoio em cuidados paliativos e à real oferta de escolha sobre o local de cuidados”. “Existe ainda muito caminho a percorrer“, diz o responsável.

"Não vale a pena criar equipas [domiciliárias] e tê-las subdimensionadas"
Manuel Luís Capelas, diretor do Observatório Português dos Cuidados Paliativos

A maioria das equipas comunitárias dão apoio aos doentes nas suas casas em conjunto com os profissionais na comunidade (enfermeiros e médicos de família) e também em lares de idosos. “Devíamos ter pelo menos 54 equipas comunitárias, uma por cada ACES”, sublinha Catarina Pazes.

Apesar de cerca de 70% dos Agrupamentos de Centros de Saúde terem uma equipa domiciliária, os especialistas ouvidos pelo Observador ressalvam que a avaliação relativa à cobertura e ao acesso da população aos cuidados prestados por estas equipas não deve ter em conta somente o número de equipas, mas também os recursos humanos que as constituem. “Neste momento, temos equipa em cerca de 70% dos ACES, mas esta não é a cobertura real porque há equipas que não cobrem a área toda” — principalmente em áreas mais populosas —, porque “não foram dotadas dos recursos humanos que o próprio governo decretou e que estão ligadas aos rácios de população”, explica ao Observador o diretor do Observatório dos Cuidados Paliativos, Manuel Luís Capelas, acrescentando que as equipas “têm de ter uma dimensão, em termos de recursos humanos e tempo alocado, que permita salvaguardar os cuidados”.

“O problema é que muitos dos ACES que têm essas equipas não têm toda a sua área de influência coberta. Por exemplo, a equipa do ACES Loures/Odivelas só cobre o concelho de Odivelas (só aqui, estamos a falar de mais de 200 mil pessoas sem acesso [se for considerada toda a população do concelho, e não apenas os doentes a necessitar de acompanhamento em cuidados paliativos], em Loures). Há ACES nas área de Lisboa e do Porto que não têm equipa constituída”, diz Manuel Luís Capelas.

“Podem anunciar o número de equipas que quiserem. Mas eu pergunto: com que recursos?”, realça Isabel Galriça Neto. A médica realça que “o problema é que essas equipas não estão dotadas dos recursos humanos suficientes para responderem às necessidades das populações”. “Até podemos dizer que há 300 equipas. Se cada uma delas, em vez de ter três médicos, não tiver nem um médico, fica claro que as respostas não são dadas”, lamenta a especialista. “Os recursos humanos são insuficientes, tendo em conta o que seria necessário“, concorda Manuel Luís Capelas.

Não há incentivos para atrair e fixar profissionais nas equipas. A formação tem de ser paga pelos próprios, sublinham os especialistas

MÁRIO CRUZ/LUSA

A enfermeira Catarina Pazes faz o mesmo diagnóstico e acrescenta que é difícil atrair e fixar profissionais nas equipas comunitárias de cuidados paliativos. “Os relatos que nos chegam das equipas comunitárias é que é difícil fixar enfermeiros e médicos, não há incentivos“, diz a presidente da Associação de Cuidados Paliativos, que trabalha no terreno. “Enquanto profissionais, não sentimos que tenha havido uma melhoria das condições. Pelo contrário, continuar a haver incentivos noutras áreas, mas, numa área que se diz ser prioritária e urgente, continuamos a não ter incentivos para formação, especialização, aquisição de competências, desenvolvimento profissional, fixação de profissionais”, lamenta.

Profissionais têm de se especializar a “expensas próprias”

Em causa, dizem os especialistas, estão essencialmente problemas relacionados com o vencimento, progressão na carreira e a formação. Neste momento, não existem incentivos para a fixação de profissionais nas equipas. Por exemplo, um médico especialista em Medicina Geral e Familiar (vulgarmente designado como médico de família) que queira ingressar numa equipa domiciliária de cuidados paliativos “é prejudicado na progressão da carreira”, diz Catarina Pazes, e ficará com um vencimento inferior ao que teria se trabalhasse numa Unidade de Saúde Familiar, que “são muitos mais aliciantes a nível financeiro”.

“As equipas têm falta de profissionais e os que sobram são voláteis; se forem aliciados, saem”, lamenta a enfermeira, que garante que a “área vive muita à custa da boa-vontade dos profissionais e do gosto”.

Outra lacuna está na formação dos recursos humanos. “Temos um problema de falta de qualificação e competência dos recursos humanos. Há pessoas a trabalhar em unidades de cuidados paliativos que não têm a devida qualificação e competência”, sublinha Isabel Galriça Neto. Os custos com a formação em cuidados paliativos continuam, hoje, a ter de ser suportados pelos profissionais, uma vez que, da parte das instituições e da tutela, não há qualquer apoio. “Estamos a pedir aos profissionais que se especializem a expensas próprias, sendo que quem sai a ganhar é só o SNS“, diz Manuel Luís Capelas. O próprio presidente da Comissão de Cuidados Paliativos, nomeada pelo governo, admite que os profissionais “não se sentem valorizados pelas estruturas dirigentes, que demonstram falta de sensibilidade para o assunto”.

As dificuldades em encontrar profissionais com qualificações nesta área levaram o Ministério da Saúde a dispensar a formação para a maior parte dos profissionais das equipas. “Neste momento, é apenas exigido ao coordenador da equipa [médico] que tenha a competência em Medicina Paliativa reconhecida pela Ordem dos Médicos. Tivemos de baixar o nível de exigência para que fosse possível constituir equipas”, explica Catarina Pazes, que critica o facto de esta área ainda “não ser obrigatória na formação base de muitos profissionais de saúde”. “Continua a não haver especialidade médica de Cuidados Paliativos, que é necessária para o desenvolvimento da área clínica”, acrescenta.

Manuel Luís Capelas realça que a questão dos profissionais é “o principal problema” e avisa que “não haverá cuidados paliativos sem recursos humanos”. “Não vale a pena criar equipas e tê-las subdimensionadas“, reforça. De caráter multidisciplinar, as equipas comunitárias são, ou deveriam ser, constituídas por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, de forma a permitir, nas mais diversas vertentes, “a prevenção do sofrimento”, sublinha Catarina Pazes.

Isabel Galriça Neto realça também que o SNS poderia fazer um uso mais eficiente dos recursos financeiros se existissem equipas de cuidados paliativos a funcionar eficazmente. As pessoas que precisam de cuidados paliativos “circulam hoje nos serviços de urgência e nos lares, onde não têm o acompanhamento que deviam ter. Se fossem seguidas por equipas de paliativos, não só teriam melhor qualidade assistencial como o SNS gastaria menos”, diz, realçando que as pessoas seguidas por estas equipas têm melhoria no controlo sintomático, melhoria da qualidade de vida, menor sofrimento e têm menores taxas de deslocação às urgências e de internamentos.

País precisaria de mais do dobro das camas de internamento. Em Lisboa, não há uma única no SNS

Já no que diz respeito à rede de internamento hospitalar, que deveria garantir resposta a situações agudas e de “descontrolo sintomático”, o número de camas a nível nacional está “muito aquém do necessário”, diz a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. “Temos um hiato muito significativo de camas. Precisaríamos de cerca de 900 camas e temos cerca de 400”, segundo o diretor do Observatório dos Cuidados Paliativos. O objetivo do Ministério da Saúde é dobrar, até final de 2025, o número de camas existentes.

Para a médica Isabel Galriça Neto, especialista em Cuidados Paliativos, diz ser "escandaloso" que haja distritos sem camas de cuidados paliativos

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Atualmente, a rede de internamento é caracterizada por uma “grande iniquidade geográfica”, realça Manuel Luís Capelas. A cobertura “é muito desigual”, diz o também professor universitário. As normas da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e os planos estratégicos definiam que todos os hospitais distritais e os três Institutos Portugueses de Oncologia deveriam ter um serviço de internamento de cuidados paliativos. No entanto, segundo o especialista, esse objetivo está longe de ser atingido. No distrito de Lisboa, nenhum hospital público tem internamento, o que “é incompreensível”, lamenta Catarina Pazes. No mais populoso distrito do país, com quase 2,3 milhões de habitantes, a única unidade de internamento está num hospital privado — o da Luz.

Em grandes hospitais, como o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o Hospital de Santo António (no Porto) e os hospitais de Viana do Castelo, Braga, Castelo Branco, Beja, Évora, Santarém, não há resposta a nível hospitalar. “Há distritos em que não temos uma única cama de cuidados paliativos”, refere Manuel Luís Capelas. Uma situação que a médica Isabel Galriça Neto diz ser “escandalosa”. “Isto mostra o desinvestimento do SNS. Há gente que morre antes de receber resposta. Mas, pelos vistos, isto não é problema”, lamenta a médica, que dirige, há 16 anos, a Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos do Hospital da Luz.

A fotografia através da janela do quarto dos cuidados paliativos de Leiria

A especialista deixa duras críticas à direção da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, que, diz, “tem sido extremamente incompetente no acompanhamento no terreno e na promoção das prioridades nesta área”. “O ritmo a que a comissão trabalha é insuficiente e causador de sofrimento a muitas pessoas”, acusa Galriça Neto. Já Catarina Pazes diz que “pode haver [por parte da Comissão Nacional] muito mais auscultação dos profissionais que estão no terreno para identificar os problemas e as soluções necessárias” e sublinha que os profissionais “não estão a ser tidos em conta na definição estratégica”.

Profissionais criticam lei da morte medicamente assistida perante a insuficiência dos paliativos

Ao mesmo tempo que o país se debate com uma insuficiência de recursos humanos e de camas de cuidados paliativos, o Parlamento aprovou em maio, pela quinta vez (e depois de dois vetos presidenciais e de dois chumbos do Tribunal Constitucional), a lei da morte medicamente assistida. Quem trabalha no terreno, e presta cuidados paliativos, critica a lei. “O país vai permitir aos doentes pedirem a sua morte devido a sofrimento intolerável; este são os mesmos doentes ao qual o país não garante cuidados especializados para tratar sofrimento. Não faz qualquer sentido”, indigna-se Catarina Pazes.

Já Isabel Galriça Neto lembra que 70% das pessoas que precisam de acompanhamento em paliativos não têm acesso a esses cuidados, pelo que “verdadeiramente não têm liberdade de escolha e não podem optar por cuidados paliativos” em vez da morte medicamente assistida. “Estamos a empurrar pessoas para uma solução que até poderiam não querer. É perigoso”, realça a médica.

“O próprio texto da lei não garante que o doente tenha acesso a uma consulta de cuidados paliativos”, diz a enfermeira Catarina Pazes. “A morte medicamente assistida é um eufemismo para branquear a natureza do ato: a execução da morte a pedido. Assistir pessoas no fim de vida é aquilo que faço e não executo a morte delas”, diz Isabel Galriça Neto.

O governo tinha até ao início de outubro para regulamentar a lei, mas, como frequentemente acontece, o prazo legal de 90 dias úteis foi ultrapassado. Ao Observador, o Ministério da Saúde adianta apenas que se encontra “a preparar a regulamentação em causa, estando a ser avaliadas nesta fase a metodologia de trabalho e as soluções jurídicas a adotar”, sendo que o trabalho “envolve a colaboração entre o Ministério da Saúde e outras áreas governativas, designadamente a da Justiça”.

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