Numa altura em que os partidos que apelam ao nacionalismo e a menos intervenção europeia crescem em termos de popularidade por toda a Europa, Guy Verhofstadt, ex-primeiro-ministro belga, eurodeputado e líder dos liberais no Parlamento Europeu diz que o problema da União é haver menos Europa do que aquela que seria desejável. Para este federalista, casos como o Lux Leaks, escândalo que revelou a conivência do Luxemburgo para com a evasão fiscal de multinacionais em países terceiro, só mostram a necessidade de maior coordenação entre os Estados-membros.
Em Lisboa para participar no Congresso do partido pan-europeu Aliança de Liberais e Democratas da Europa, onde o MPT – Partido da Terra, foi formalmente reconhecido como integrante desta organização, Verhofstadt falou com o Observador e disse que o seu grupo político no Parlamento Europeu não só vai apoiar uma comissão de inquérito às práticas de evasão fiscal levadas a cabo por Estados Europeus, como pretende anunciar um plano de maior coordenação de políticas económicas de modo a que a única opção não seja “acabar com o euro”.
Foi candidato a presidente da Comissão pelos liberais europeus, e apesar de o seu grupo ser agora o quarto num Parlamento dividido pela entrada de forças extremistas e sem maiorias claras, o belga diz que vai usar o seu peso para impor a agenda liberal em Bruxelas.
O que é que acha que o plano de 300 mil milhões para investimento e crescimento de Juncker vai trazer à União?
Eu não posso responder a essa questão. Isso é para a Comissão. O que eu acho é que a Comissão percebeu finalmente que não estamos a falar de milhões, estamos a falar de mil milhões. O que vimos na anterior Comissão é que se pensava que se conseguia resolver este problema com 200 ou 300 milhões de euros. A nova Comissão agora já percebeu que temos um problema enorme, com um género de “inverno japonês”, em que há uma estagnação, há a necessidade de investir 800 mil milhões.
Então no que é que pensa que o vosso plano, apresentado no dia 19 de novembro e que visa angariar 700 mil milhões de euros de investimento para a Europa vai divergir do que vai ser apresentado?
Pelo que ouvimos dos planos da Comissão até agora, o nosso plano é diferente. Nós estamos a concentrar-nos no dinheiro privado. Há dinheiro privado suficiente, está lá, há 800 ou 900 mil milhões nas contas bancárias, em investimentos aqui na Europa. Queremos mobilizar esse dinheiro através de iniciativa europeia, não nacional. Um fundo de investimento que emita obrigações, que seja isento para os seus investidores e que tenha um esquema de garantia que cubra 20% do valor total para assegurar que quem investir nestas obrigações, está protegido.
Qual é a diferença entre o vosso plano e o plano dos socialistas que foi apresentado no dia a seguir ao vosso?
No plano deles, o capital tem de vir dos Estados-membros e eles não têm dinheiro. A maior parte dos países da UE têm endividamento na ordem dos 100% e os restantes, muito acima disso. O que os socialistas dizem é: “Vamos fazer um bocadinho mais de dívida e colocar tudo num fundo”. Desculpem, mas não é possível, os níveis de endividamento já são muito grandes. A originalidade da nossa medida reside no facto de, e fomos aconselhados por especialistas, isentarmos as pessoas que invistam neste fundo e termos um fundo de garantia.
Considera que o grupo dos liberais no Parlamento Europeu apesar de ter perdido eurodeputados, foi de alguma forma reforçado pelos resultados das últimas eleições, já que não há uma maioria nem do Partido Popular Europeu – centro-direita -, nem dos socialistas?
Não, já era o caso no mandato anterior e tomámos neste mandato a decisão de integrar uma maioria com esses partidos. É verdade que eles agora precisam de nós. Eles não podem, por exemplo, avançar com legislação básica sem nós. É a realidade, nós sabemo-lo e eles também o sabem e por isso conseguimos ter cinco comissários liberais nesta nova Comissão Europeia, todos com bons portefólios – Concorrência, Comércio, entre outros. Nós vamos usar essa posição para pressionar os outros partidos de modo a avançar com a nossa própria agenda.
Quais são os principais temas dessa agenda?
O plano de investimento para a Europa, os nossos valores europeus. Nós temos prioridades e queremos que elas sejam tidas em conta. Não vamos ser passivos e votar a favor só porque sim. Vamos usar a nossa posição no Parlamento a favor dos europeus e da União.
Não vão ser então um parceiro silencioso?
Não. Então até publicámos uma proposta de investimento alternativa à da Comissão [que é liderada por Juncker do PPE]. A nossa próxima medida também já está pronta e é uma proposta sobre a governança económica europeia. Como é que a zona euro pode ser uma união sem ser baseada numa governança comum? Não pode funcionar, não vai funcionar. Se continuarmos a achar que conseguimos manter o euro e coordenar 28 políticas económicas, estamos errados.
Isso envolve alterações às responsabilidades e na arquitetura do Banco Central Europeu?
Não, estou a falar mesmo na coordenação de medidas económicas e fiscais entre os vários Estados-membros. Até agora, a resposta foi dizer que sim, que era possível coordenar, mas nós há anos que temos vindo a dizer não. Isto começou com a Estratégia de Lisboa e em 2005 eu ataquei logo essa medida. Porquê? Coordenar políticas económicas é na prática imprimir documentos e comparar o que um país faz com o que se faz noutro e isso não chega. Precisamos de definir a estrutura económica dos Estados-membros a nível europeu. Quer seja sobre orçamentos ou sobre a indústria. Mas sempre com margem de manobra suficiente para cada país decidir sozinho.
Mas numa Europa muito dividida e onde há cada vez mais vozes contra a atribuição de competências nacionais às instituições europeias, acha que esse plano é possível?
Não temos escolha. A alternativa a isto é desistir o euro. Não podemos continuar numa Europa em que haja uma coordenação frouxa.
Acha que isso vai ser bem aceite quer pelos países do Sul, quer pelos países do Norte?
Não quero exagerar a fractura entre o Sul e o Norte. A Suécia já teve maus resultados económicos. Na Europa, nós concordamos no fundamental. O sistema de segurança social de Portugal, de Espanha ou de Itália não é muito diferente da Bélgica, da Alemanha ou da Holanda.
“Não podemos continuar numa Europa em que haja uma coordenação frouxa”
O modelo talvez, mas os resultados são bastante diferentes…
Mas há ou não há uma diferença maior entre o sistema em Portugal e nos EUA? Há mais afinidade com o sistema sueco, por exemplo. É isso que estou a dizer. Não digo que não haja diferenças. O que nós precisamos, no mínimo, é ir no mesmo caminho. Não podemos é ter países que vão em direções completamente diferentes. Se temos uma moeda única, precisamos de um enquadramento comum. Não podemos ter uma moeda única em que a Alemanha aparece com um camião e a Grécia com um carrinho pequeno.
Depois das eleições europeias, acha que o tom da conversa mudou das divisões entre Norte e Sul e se passou a fazer nas divisões entre pró-europeus e euróceticos?
Acho que sim e penso que temos muito trabalho para fazer nesse campo. Não há nenhum desafio que consigamos resolver com a retirada para as nossas fronteiras nacionais. Mudanças climáticas? Não. Imigração? Nem pensar. Não vejo um único problema que se resolva com mais nacionalismo.
Mas os partidos eurocéticos, depois das várias vitórias nas europeias, continuam a ganhar lugares nos parlamentos nacionais e a liderar sondagens para eleições nacionais.
Temos de organizar o contra-ataque q essas forças. Só com mais integração europeia é que podemos resolver os problemas. Nós temos uma história para contar às pessoas. Porque é que aconteceu um caso como o Lux Leaks? Porquê? Porque não há política fiscal comum. Outro exemplo. Porque é que todas a grandes empresas de tecnologia estão sediadas nos EUA e Ásia? Porque se alguém quiser lançar aqui um novo produto para a internet tem de passar por um fardo administrativo tão pesado em 28 países, que ninguém sequer pensa em começar um negócio. Nos Estados Unidos é preciso uma autorização. São só dois exemplos em que podemos mostrar às pessoas que é por não termos Europa suficiente que estamos em apuros. E é isso que os políticos têm de dizer às populações, não é como faz David Cameron que pensa: “Se o UKIP tem sucesso, eu vou dizer a mesma coisa que eles e também vou ter sucesso”. Todos sabemos que uma cópia nunca vai ser melhor do que o original.
Mencionou o Lux Leaks. Vai ser votada uma moção de censura neste plenário que está relacionada com o possível envolvimento do novo presidente da Comissão nesse escândalo fiscal. Arrepende-se de ter apoiado Jean-Claude Juncker para este cargo?
Nós vamos votar contra essa moção. Primeiro investigamos e depois é que sancionamos. Fazê-lo ao contrário, não é uma coisa séria, é uma manobra política de Marine Le Pen e Nigel Farage. A política é uma coisa séria. O que nós queremos é uma comissão de inquérito na comissão de Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu, que investigue não só esse caso, mas as várias práticas fiscais na Europa e que chegue a conclusões.
Mas não acha que polémicas deste género dão de alguma forma razão às críticas dos eurocéticos e força aos seus argumentos?
Na minha opinião, não, porque é devido aos nacionalismos e à falta de coordenação europeia que estes casos acontecem. É este o resultado. Para além disso, Nigel Farage já fugiu a impostos nomeadamente na ilha de Mann, ele próprio tem um esquema. Ele sim é um especialista nestes casos e nesta matéria.
Pensa que a maneira como os governos nacionais apresentam a União Europeia nos seus próprios países contribui para a descrença dos europeus nas instituições comunitárias? Especialmente nos países que estiveram ou estão sob programas de ajustamento?
De certeza, é sempre a mesma coisa. Se for uma coisa boa é porque foram eles que fizeram, se for má, foi Bruxelas que obrigou. E isso não é justo.
Qual é que acha que vai ser o contributo do MPT, que se assume como liberal e se quer colocar ao centro, para o sistema partidário português?
Pelo menos as pessoas vão ter escolha. Esta crise, especialmente no Sul da Europa, criou um sentimento nas pessoas que é: “Conservadores ou socialistas, qual é a diferença? Ambos não são capazes”. Isto é uma coisa nova. Então, ou estas pessoas caem em tendências extremistas ou viram-se para os liberais. Nós temos uma grande oportunidade, porque somos reformistas por natureza e temos uma história para contar. Isso é novo para o Sul da Europa. Na Europa Central, as pessoas já votam neste tipo de alternativas, no Sul a nossa maneira de pensar não é conhecida. Agora, devido à crise, há finalmente um espaço e as pessoas estão a olhar para as nossas propostas.
Sempre foi muito crítico de Durão Barroso como presidente da Comissão. Quais é que são as maiores diferenças que espera verificar entre a comissão Juncker e os mandatos de Durão Barroso?
Isso daria uma entrevista só por si. A nosso crítica era simples: nós dissemos que queríamos uma Comissão com mais ambição, que liderasse a União, que tivesse uma visão para o futuro. Não uma Comissão que estivesse constantemente à espera do ok de Paris e de Berlim. É isto que esperamos para esta comissão.
Qual é a sua opinião sobre os programas de ajustamento impostos a Portugal, Grécia ou Irlanda?
Eu não tenho nada contra as medidas impostas. O meu problema é o que não se fez.
Refere-se à aposta no crescimento e emprego?
Exato. Nós somos a favor de disciplina fiscal e do Tratado Orçamental, porque senão, não vamos conseguir manter uma moeda única, mas ao mesmo tempo não foi aberto o caminho do emprego e crescimento. Não foi nada feito. Nos Estados Unidos também houve uma crise e teve de haver disciplina orçamental, mas desde o início financiaram a economia com milhares de milhões de dólares e vê-se a diferença. Eles têm um crescimento de 3% e nós temos um crescimento abaixo de 1%.
Mas na Europa tem de se chegar a um acordo para esse financiamento. Acha que é fácil justificar às opiniões públicas dos 28 Estados-membros a necessidade de mais financiamento para a economia europeia?
Mas para isso é que fizemos a nossa proposta, queremos que o dinheiro que não está agora na economia, que está em poupanças ou não está a ser tocado, entre na economia e essa é a maneira de fazer as coisas. Para isso precisamos criar uma visão, um futuro e é isso que queremos desta Comissão.
Um dos temas que marca a atualidade é a negociação sobre o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento entre a União Europeia e os Estados Unidos da América (TTIP). Acha que este acordo vai ser concretizado mesmo perante as críticas, desconfianças e reservas de vários grupos de interesse e até Estados-membros?
Eu acho que é uma coisa boa para a Europa, mas penso que não se vai realizar se baixarmos ou ignorarmos os padrões europeus no que diz respeito ao ambiente e às condições sociais. A maioria no Parlamento Europeu nunca vai aceitar isso. Penso que Cecilia Malmström, nova comissária do Comércio, é suficientemente competente para negociar um TTIP que tem todas as vantagens que nós desejamos sem as desvantagens que tememos.
As rondas negociais entre a Comissão Europeia e os EUA são secretas. Está à espera de maior transparência no processo daqui para a frente?
Já há mais transparência do que noutros casos, como por exemplo aconteceu com o Acordo Comercial Anticontrafação (ACTA), mas há ainda muitas melhorias a fazer.
O Parlamento vai aceitar um TTIP com uma cláusula de investor-to-state dispute settlement (ISDS), permitindo que empresas processem os Estados europeus em disputas sobre discriminação, protecionismo ou expropriação?
Desde logo, a Europa sempre pediu este tipo de mecanismos a outros países com quem fez acordos comerciais. Foram as nossas empresas que disseram nesses casos que não tinham confiança suficiente nos sistemas judiciais desses países para lá investir e agora, há muita gente que se opõe a este mecanismo. Claro que se não for aceite pela maioria, é preciso encontrar alternativas. Mas precisamos de algo que proteja os investidores contra países que estão relutantes em cumprir esse tipo de acordo. É mais um problema psicológico do que outra coisa.