“É contar mais ou menos 10 anos. Assim que a vegetação atinge um nível em que pode arder, acontece. Isto aqui é cíclico. Foi em 2005, foi em 2016 nos grandes incêndios de Arouca e é agora. Nem passaram 10 anos, desta vez.” Bruno Miguel acompanha de perto o fogo que arde a menos de um quilómetro. As chamas estão a aproximar-se da pequena aldeia de Telhe, do outro lado do rio Paivó, no cimo da encosta.
Passa pouco da hora de almoço e o fumo cobre a vegetação em redor deste lugar. Já dificulta a respiração. Com a mulher, aposta que as chamas vão fazer o mesmo percurso que fizeram há oito e há 19 anos. “É certinho, direitinho, é sempre assim. O percurso é sempre semelhante. Vem lá do fundo da Serra de São Macário, de São Pedro do Sul, depois passa ali no alto que são aqueles montes lá ao fundo, depois é Telhe e avança até aqui onde estamos, até Ponte de Telhe, passa pelo lugar de Cela, que é onde eu moro, e de Cela chega a Arouca.”
De braços cruzados e de olhos nas chamas, a mulher dá sinais de que concorda. Também já viu acontecer. Bruno não entende quem tem poder para decidir e para coordenar a gestão: “É engraçado. O percurso é sempre o mesmo, como é que não há aqui nada? Uma linha de prevenção, qualquer coisa para combater o que é previsível. Acontece sempre da mesma forma.”
Na estrada que atravessa a aldeia de Ponte de Telhe está toda a gente à conversa, diz-se que o “fogo hoje vem mais calmo que em anos anteriores”. Passa pouco das 14h00 e os carros estão encostados à berma e no café central “Rocha” é praticamente hora de ponta. Dali dá para ver as chamas no cimo da serra e, além disso, 200 metros mais à frente, a GNR não deixa mais ninguém passar pela estrada que segue até Telhe. Servem-se minis, cafés e conselhos para quem passa com olhar surpreendido. “Aqui sabemos bem o que é isto. Pode chegar-se aqui à minha beira que daqui vê-se bem onde ele arde”, diz Mavilde, enquanto acena para um repórter. “Isto para quem nunca viu assusta. Eu também não gosto de ver, mas já sei como é.”
Mavilde tem uma camisola de malha escura às costas que está já coberta de cinzas. Não está de máscara, mas sabe que tem de ter cuidado. Troca sorrisos com quem passa e repreende um vizinho por lhe ter perguntado a idade: “Só posso dizer que tem um 8.” Ainda assim, minutos depois, revela que já vive nestas encostas há 60 anos. A quem lhe pergunta se tem medo, responde que já viu pior. “Há uns anos valentes, tiveram de me tirar de casa. Eu não queria ir, mas levaram-me. Hoje vamos ver como é. Estamos de olho nele, mas da forma como arde deve chegar aqui.”
A previsão de Mavilda não está totalmente errada. Já com o sol posto, é feito um ponto de situação ao Observador por José Gonçalves, Comandante dos Bombeiros de Arouca: “Há duas frentes ativas. Uma arde com pouca intensidade, lentamente, está a perder a força. Os meios estão lá a fazer a prevenção. A noite ajuda. Há outra frente que está mais ativa e onde temos mais meios e em combate. É uma frente com bem mais área ardida. É pinhal e eucalipto, é área florestal. Há uma parte que está junto ao rio e temos que garantir que não passa. É em Ponte de Telhe.”
Os operacionais combatem os fogos da região há mais de 24 horas sem descanso, mas o contingente continua no terreno, com presença noturna reforçada na pequena localidade junto ao Rio Paivó.
Já passam das 22h00 e a estrada de Fonte de Telhe parece ter mais gente que da parte da tarde. É uma noite luminosa. Do outro lado do rio Paivó as chamas brilham a poucos metros de distância, separadas pela água que corre carregada de cinzas. No céu, a lua cheia está pintada de laranja por causa do fumo carregado que cobre a região.
“Aqui está gente que não é de cá. Vieram ver. Precisam de saber se o fogo passa o rio para decidirem o que fazer depois”, comenta um morador ao ver tanto aparato.
A esta hora são mais os jovens que os idosos, ainda assim há cabelos brancos para tranquilizar com a ajuda da memória: “Este fogo está a ser um menino em relação aos anteriores. Por isso é que estão a conseguir controlá-lo. Provavelmente, o vento também ajudou.” Jorge vive numa aldeia vizinha e sabe o que pode acontecer nas horas seguintes. “Ele está a descer, mas devagarinho, não está galopante como já o vimos noutras alturas. Mas o percurso é o mesmo de sempre, já toda a gente sabe. Aqui já o tratamos praticamente por vizinho.”
A aposta que Bruno Miguel quis fazer acabou por não estar totalmente certa, mas em Ponte de Telhe tornou-se um hábito ter chamas à porta. Quem aqui vive já sabe que o fogo regressa, há previsões para quando acontece, só não se sabe quão devastador pode ser.
“Olha que o fogo chega-se a ti num instante”. Os minutos essenciais para evitar uma desgraça
Mais a norte do município de Arouca o rasto de fumo e cinzas também se sente, as chamas andaram por ali a rondar sem controlo. Na Aldeia de Cima, está meia dúzia de carros estacionados junto ao café “O Soares”.
Quem ali descansa está de olhos no cimo da serra. Ernesto Duarte só passou para beber café, mas sabe explicar o que se está a passar: “Há um quarto de hora começou ali aquele foco. Não sabemos como é que acontece. Está ali onde há muita árvore perto de casas.”
São 15h15 e não há bombeiros por perto, mas há vizinhos que já sabem o que fazer. Numa carrinha de caixa aberta, dois homens enchem um depósito de água para enfrentarem as chamas, mais à frente já avança outra carrinha com mais rapazes.
A zona é de difícil acesso, depois de sair da estrada municipal entra-se numa rua estreita onde só um carro cabe e com elevada inclinação, dois minutos de carro e estamos junto à habitação que tem o fogo por perto. Percebe-se que é uma construção recente.
Ainda não há bombeiros por perto, mas o pequeno foco já fez arder um grande eucalipto e já se alastra a outros de igual dimensão. Uma dezena de homens, jovens e até duas crianças, lutam como podem. O fogo está no cimo de um monte, terreno muito inclinado, não há água que lá chegue. As chamas são combatidas com largos ramos. O fogo é empurrado contra o chão para não trepar os eucaliptos. É um combate que dura, mas cada rajada de vento deita abaixo o trabalho dos minutos anteriores.
Junto à estreita estrada estão os mais velhos, comentam o que ali veem e aconselham os que se aventuram pelo monte acima: “Vinde para baixo. Olha que o fogo arde rápido. Chega-se a ti num instante.” A prudência de quem já viu pior.
Depois de quase uma hora de combate, já perto das 16h30, surgem os primeiros bombeiros. A situação já está mais calma e com a chegada de quem carrega as ferramentas certas a situação resolve-se. Por enquanto.
“Os passadiços é o menos.” Também no fogo as atrações turísticas se confundem com a paisagem
O fogo avança sem rumo definido nos arredores de Arouca. De manhã, o vento levou as chamas para as principais atrações turísticas desta região, os Passadiços do Paiva e a Ponte 516, conhecida por ser uma das maiores pontes pedonais suspensas em todo o mundo. Já no início da semana a circulação tinha sido proibida nestes locais, mas o fogo segue outras regras.
À floresta e ao mato em chamas junta-se o caminho de madeira instalado na margem do rio Paiva. Não é uma prioridade no momento de combate. Os operacionais lutam para salvar habitações, indústria e vidas. O negócio dos passadiços fica para segundo plano. Ao fim da tarde no quartel dos bombeiros voluntários de Arouca diz-se que “é triste, mas é o menos. Há outras prioridades. Tem de ser assim”.
Falar de Arouca é falar de uma zona classificada como Geoparque da UNESCO. Os Passadiços do Paiva são um ponto turístico essencial para que quem visita a região possa explorar em segurança este património. São praticamente 10 km de caminho pedonal feito em madeira que por quatro vezes conquistaram o prémio World Travel Awards. Com o fogo, este caminho ficou parcialmente destruído. A autarquia aponta para cerca de 2 km, mas ainda há chamas nos arredores.