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MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Natália Gromicho: "Se ligasse ao dinheiro não era pintora, era banqueira"

Ainda é pouco reconhecida. Pelo menos em Portugal. "Não sou filha de pai rico", lamenta. Mas no estrangeiro vende exposições quase inteiras. "'Passo-me' quando oferecem bagatelas por um quadro meu."

Chega a ser fantasmagórico. Não entra lá ninguém. Ou quase ninguém. Dias inteiros. Às vezes lá entra um turista estrangeiro, para fotografar a Muralha Fernandina que resiste no interior, mas rapidamente dá meia volta e sai. Aquele que outrora foi o Teatro Gymnasio, na rua da Misericórdia, em Lisboa, é hoje um centro comercial ao abandono. Cada vez mais.

Lá dentro, e olhando em redor, são mais as lojas fechadas do que as abertas. As escadas, que foram um dia rolantes, não rolam mais e estão há muito desativadas. Mas subindo-as a pé, acende-se ao fundo do corredor luz numa vitrina. E lê-se, num cartaz vermelho lá colado: “Atelier Natália Gromicho”. Não é costura que ali se faz. É pintura. E de manhã, ainda cedo, logo Natália começar a pintar.

— Preciso de música, Gonçalo. Tu sabes que eu preciso de música para pintar… — atira ao assistente pessoal, que entretanto lhe abriu o cavalete e dispôs boiões de tinta numa pequena mesa de apoio, ao lado dos pincéis e das espátulas.

Natália pede Vivaldi. Ou, em alternativa, Pink Floyd. Gonçalo puxa prontamente do telemóvel. “Esta serve?” — pergunta, enquanto se ouvem As Quatro Estações de Vivaldi. Natália acena afirmativamente com a cabeça. E atira-se à tela.

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É “atirar” o que faz. Primeiro, com pinceladas bruscas, quase desordenadas a quem vê, preenchendo de cor o que antes era vazio. Depois com as leves, usando um pincel fino do qual a tinta escorre livre pela pintura. E volta a brusquidão. A da espátula, com que Natália quase rasga a tela. Não há no rosto circunspecto de Natália a mesma emoção que tem sob as mãos, no pincel. Às vezes sorri. Ou sussurra, impercetivelmente. Trauteia. O corpo vai balanceando com Vivaldi. Sempre de pincel na mão direita. Nunca o pousa até terminar. Não pára. A mão esquerda repousa no fundo costas. Sobe à testa para limpar o suor e volta a repousar. Até que Natália, por fim, desenha um “N” (e um traço a cruzá-lo) ao fundo do quadro. Terminou. Não diz nada. Não imediatamente. Afasta-se, cambaleante, um cambalear lento e tão próprio dela, como uma bailarina em pontas, e senta-se num sofá ao fundo do atelier.

Gonçalo vai lavar os pincéis à casa de banho fora do atelier.

Atelier? Isto aqui é um ‘bunker’. Nem luz natural tenho. Nem vista. Mas isto [Teatro Gymnasio] era um sítio majestoso do Chiado. Bem frequentado. Depois houve um incêndio e fizeram o centro comercial. Agora está como tu vês: ‘às moscas’. Não entra cá ninguém. Mas a renda é cara! Sabes? [Longa pausa] Lisboa mudou muito nos últimos anos. Vim para aqui há quatro anos. E o Chiado não é o mesmo. A Baixa não é a mesma. Lisboa inspirava-me para pintar. Era talvez a minha maior inspiração. Agora estou desiludida com ela. Está-se a perder tudo”, atira, de enfiada, Natália.

Natália Gromicho, no bunker feito atelier (ou vice-versa) do Chiado: "Queria pintar a óleo. Mas não tenho luz natural, então não posso" (Créditos: Michael M. Matias/Observador)

Natália Gromicho, no bunker feito atelier (ou vice-versa) do Chiado: “Queria pintar a óleo. Mas não tenho luz natural, então não posso” (Créditos: Michael M. Matias/Observador)

A pergunta é direta: o porquê de Lisboa ser — ou ter sido — uma inspiração. Mas a conversa flui à velocidade do pensamento de Natália. Progride. Recua. Volta a progredir. “Nasci no El Corte Inglés, vulgo maternidade Alfredo da Costa. 30 de junho de 1977: é o mesmo dia do Mike Tyson. Olha q’eu sei-me defender. [Risos] Nasci em Lisboa. Mas crescer, cresci do lado de lá do Tejo. Foi vir a Lisboa, parir e zarpar. Infelizmente. Porquê infelizmente? Sou daqui, sinto-me daqui, Lisboa é a minha terra. Mas não me deixam viver aqui. É muito caro. Pago mais de renda no atelier do Chiado do que na casa de Vale de Milhaços.”

[Natália, “afundada” no sofá, faz de repente um rosto sério, vai-se-lhe o sorriso meigo, a sonora gargalhada, semicerra os olhos e interroga.]

— Tu: quando é que nasceste?
— Em dezembro. Dia dois.
— ‘Tão és sagitário. És sensível. Dou-me muito bem com sagitários.

De volta à conversa.

Quando é que despertou em Natália o interesse pela pintura? Cedo, claro, e na escola. “A melhor escola do mundo: António Gedeão, na Cova da Piedade.” E continua: “No secundário tinha sempre vintes a desenho. Sempre. O professor pedia cinco desenhos para o fim-de-semana e eu entregava-lhe cinquenta. Só chumbava a geometria descritiva. Nunca consegui perceber como é que uma coisa [pintura] que é criativa, apelativa, tinha que passar pela geometria. OK, hoje já entendo.”

"Não tenho apoio. Nunca tive. O meu pai não é rico. Estou a pintar num 'bunker' sem luz do sol, num centro comercial onde a luz da casa de banho está fundida, e onde tenho que usar garrafinhas de água para lavar os pincéis."

Natália Gromicho não estudou desenho ou pintura na infância. Era autodidata. Sempre foi. Mas foi ainda na infância que primeiro contactou com a pintura e os pintores. Por acaso. “A minha ambição sempre foi pintar. Se tive influência dos pais? Nunca. O meu pai era funcionário da EDP — que agora é dos chineses. Acho que começou tudo no oitavo ano. Por aí. Eu tinha um livro de português com ilustrações de pintores conceituados. O que eu fiz foi recortar todas e guardá-las num envelope. Pouco a pouco, fui conhecendo aqueles pintores todos e interessando-me mais pela pintura deles. E comecei também a pintar, para despejar cá para fora o que sentia. Tinha uns 13 anos, por aí. E fazia-o em todo o lado, a toda a hora. Eu gostava de desenhar nos cafés – quando um café só custava trinta ‘paus’.”

– Mas tu sabes quando é que eu percebi que queria mesmo, mesmo ser pintora? Estávamos em… eeeeem… 1999. Enviei quatro ou cinco desenhos para um concurso [Best Rolling Stone Alternative Logo] da rádio Comercial. E ganhei um bilhete para ir a Wembley ver os Rolling Stones. Aí, a minha vida girou.

Girou, e Natália reencontrar-se-ia com Lisboa. Foi estudar para a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa(FBAUL). No mesmo Chiado onde hoje está. “O Chiado era qualquer coisa. Eu vinha de Corroios para aqui todos os dias estudar, vinha de comboio, de metro, a pé, com chuva ou com sol, chegava aqui e sentia-me bem.” Mas a passagem de Natália pela faculdade foi breve. “Uma péssima experiência [a passagem pela FBAUL], diga-se. Estávamos em 2011. Eu tinha trinta anos e os putos — tão talentosos! — vinte. Não sei se aquilo ainda é assim ou não, mas na altura o edifício estava todo a ruir.” Mas “péssima experiência”, porquê? “As belas-artes não são para os pobrezinhos como eu. Ou és filho de gente rica ou, então, não estudas belas artes. A alternativa é trabalhar. Trabalhar muito. Eu fiz-me pintora a pintar, não foi a estudar – larguei o curso logo no começo. Fui para a faculdade porque queria que me ensinassem. Mas não aprendia nada e vim-me embora”, recorda.

Nunca pensou em desistir, Natália. Mas até chegar onde chegou, até ser considerada “pintora” — ou até ela própria se considerar –, teve que fazer de tudo. E orgulha-se disso. “Uuui, eu trabalhei em muitas coisas. Na Valentim de Carvalho, por exemplo, numa loja de música do Vasco da Gama. Precisava de dinheiro para comprar as tintas, as telas, os pincéis, para continuar a pintar. É que o meu pai não é rico. E não tenho apoio. Nunca tive. Estou a trabalhar num ‘bunker’ sem luz do sol – e sem luz do sol não posso pintar a óleo –, num centro comercial onde a luz da casa de banho está fundida, e onde tenho que limpar os meus pincéis com garrafinhas de água.” E lamenta: “Em Portugal, a fatia vai sempre para os mesmos. Ou para a mesma. Estás a perceber quem é, não estás? Quando ela [Joana Vasconcelos] se ‘meteu’ com o Bordallo Pinheiro, deu-me uma coisinha má. Mas para mim o que fazem [os da “fatia”] é lixo. Eu tenho calo nas mãos. Os meus quadros estão aqui. Fui eu quem os fez”, atira de chofre.

Do mundo… para Portugal. “Só comecei a dar nas vistas quando fui a Nova Iorque e vendi um quadro por uma ‘pipa de massa'”

Por ser mulher e pintora, quando primeiro se ouviu falar de Natália, rapidamente se falou (por comparação) de Paula Rego, de Graça Morais. Mas sobretudo de Maria Helena Vieira da Silva, a quem a compararam no traço mais abstracionista. Ainda comparam. “Vieira da Silva? Paula Rego? Sabes qual era a profissão dos pais delas? Eram riquinhos. E elas umas betinhas. Nada contra. Mas não podemos comparar. Eu nunca tive a oportunidade de ir estudar para fora de Portugal — para aprender a pintar — como elas tiveram. Mas claro que elas são influências para mim. Tudo é influência. À Paula Rego ninguém me compara. Mas compararam à Vieira da Silva. E quando compararam pela primeira vez os meus quadros aos dela, eu nunca tinha visto um quadro dela na vida. A Vieira da Silva tinha um dom. Eu estou à procura do meu”, lembra.

Então, quem são as influências de Natália na pintura? “O Almada [Negreiros], o Amadeo [de Souza-Cardoso], o Santa-Rita Pintor, o Picasso — que também pintava a toda a hora como eu; até em portas ele pintava!” Mas a maior influência de Natália é um escritor. Um poeta. E não é uma influência (só) pela escrita. Pintou-o muito, Natália, quando se voltou ao figurativo e menos ao abstracionismo. Ao fundo do atelier está um quadro que o comprova, pousado no chão. “Ele, tal como eu, também se interessava muito por astrologia. Os heterónimos dele tinham, cada um, uma carta astrológica diferente. Sem dúvida: o Fernando Pessoa, o homem que ele foi, é a maior influência de todas. Às vezes vou ali ao Chiado ter com ele, em frente à Brasileira, tirar fotografias com ele — em posições que não devia”, graceja Natália. E prossegue: “Mas o que realmente me faz pintar é a revolta. Revolta com o mundo. É que ninguém risca com a espátula como eu risco. Aquela tela é quase golpada. Sinto que estou a ultrapassar os limites…”

"O meu sonho é que entrassem no 'atelier' e perguntassem quem eu sou. E sonho poder continuar a pintar, mais e mais e mais. E poder ir pintar para um sítio com uma luz inublável."

Natália tem 39 anos. Há mais de duas décadas que é pintora. Que vive exclusivamente da pintura. Inaugurou mais de cem exposições. E expôs em vários países: Austrália, Brasil, China, Estados Unidos, França, Índia, Itália, Reino Unido, Rússia, Singapura, Timor-Leste. Mas sente-se pouco reconhecida em Portugal. É pouco reconhecida em Portugal. “Vou fazer 40 anos, pá. Nunca tive um ordenado na vida. Vejo artistas estrangeiros, mortos, a terem as obras expostas nos melhores museus de Lisboa, com publicidade em todo o lado, e eu, que sou lisboeta, que sou portuguesa e estou viva, de mim ninguém quer saber. E falo de mim, como falo de muitos artistas da minha geração. Em Portugal só interessa o fado. E o futebol. As coisas não mudaram muito: sempre foi assim.”

O pouco reconhecimento que (ainda) tem, tem-no desde meados de 2014, quando vendeu um dos seus quadros [“Vénus”] numa mostra de arte em Nova Iorque. O quatro foi vendido por um valor nunca antes conseguido por um artista português nos Estados Unidos: dezoito mil euros. Hoje valeria muito mais. Hoje Natália vale muito mais — muitos dos seus quadros não têm preço definido, pelo que podem vir a ser recordistas de vendas. E explica: “Em Portugal só comecei a dar nas vistas quando fui a Nova Iorque e vendi um quadro por uma pipa de massa. Honestamente, foi uma bagatela. O colecionador, que era italiano, levou-o por uma bagatela. Aquilo valia muito mais dinheiro. Enfim. Na Austrália, em meia hora, vendi quase metade da exposição. Vim de lá com uma garra do caraças. Mas eu não ligo nenhuma ao dinheiro. Se eu ligasse ao dinheiro não era artista plástica, era banqueira.”

[Natália Gromicho guiou-nos pela sua exposição retrospetiva que estreou, este verão, no Museu do Oriente]

Do atelier de Natália, no “coração” do Chiado, ao Museu do Oriente, à beira rio, em Alcântara, a viagem é curta. Foi lá que, durante todo o verão, apresentou setenta-e-uma pinturas, numa exposição retrospetiva. Ou como Natália a considerou: “Monumental”. E é lá que prossegue a conversa. Os primeiros quadros, pintou-os em 2012; os últimos foram pintados em 2016. “Parti o tornozelo há um ano. Ainda não estou bem. [Assim se explica o cambalear de Natália no atelier] Tinha que pintar aos bocadinhos por causa das dores. Pintava. Sentava-me. Voltava a pintar. Não podia era não pintar”, conta-nos.

E pintou do Chiado à Índia, de Timor-Leste a Macau — daí a exposição se chamar “Do Ocidente para o Oriente”; quadros abstracionistas — “É onde me sinto melhor hoje, no abstrato” –, figurativos; telas imensas, maiores do que ela; cor, muita cor, sobreposições, um traço comum: o de Natália Gromicho. “O [Museu do] Oriente é o ponto mais alto da minha carreira. É ‘o’ ponto. E é o museu mais vanguarda do meu país. Só estou aqui porque a doutora Manuela d’Oliveira Martins [diretora do Museu do Oriente] me convidou. Eu ainda lhe perguntei: “Oh doutora, quer mesmo que eu exponha aqui? Tem a certeza? Ela queria mesmo”, recorda.

Seguir-se-á o quê? Natália não sabe. Sabe que continuará no Chiado. E daí seguirá mundo fora. “Estou no ‘bunker’ todos dias. A pintar ao vivo. Na verdade, não estou a pintar ao vivo. Mas aquilo tem uma vitrina, as pessoas passam e veem-me a pintar. É por isso que pintar ao vivo [fê-lo na exposição do Museu do Oriente] para mim é normal. Mas sou a única que o faz. Conheces mais alguém que o faça em Portugal? Não há. É claro que trabalhar assim é uma exposição atroz para mim. Estou constantemente exposta. Mas habituei-me. Infelizmente não há a cultura, em Portugal, de se entrar e ver, de falar com o artista. O meu sonho é que me perguntassem quem eu sou. Que entrassem e perguntassem. Só isso. Sem fotografias. Isso era o meu sonho. E sonho continuar a pintar, mais e mais e mais. E poder ir pintar para um atelier com uma luz inublável.”

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