O mote estava lançado: A Internet é um lugar estranho. Era este o tema da conferência organizada pela Associação DNS.PT, que decorreu na manhã de 29 de novembro, no Auditório Jerónimo Martins da Nova School of Business and Economics (SBE), em Carcavelos, como forma de assinalar o 30.º aniversário do domínio .pt. Sala cheia, do princípio ao fim, para ouvir os nomes conhecidos que compunham os três painéis, com duplas que juntavam nativos a migrantes digitais. O tom informal e divertido marcou o primeiro de três debates. E, de imediato, o tema genérico da conferência foi transformado em pergunta: “A Internet é um Lugar Estranho?”.
Debates repletos de surpresas
O primeiro debate trouxe logo uma novidade: O jornalista e comunicador Pedro Boucherie Mendes foi descrito como um migrante digital, que viveu boa parte da vida sem Internet – porque ela ainda não existia; Ana Garcia Martins, autora do famoso blogue A Pipoca Mais Doce, foi apresentada como alguém que o grande público só descobriu por causa da internet. Lado a lado num debate e… afinal, o entusiasta da rede foi ele, enquanto ela se mostrou cética.
A Associação DNS.PT
↓ Mostrar
↑ Esconder
Com sede em Lisboa, gere desde 2013 o Domínio .pt (o domínio de topo correspondente a Portugal, ou, com dizem os especialistas, o ccTLD (Country Code Top Level Domain) nacional. Segue um modelo participativo de organização interna, tendo como associados representantes do Estado, dos consumidores e das empresas da economia digital, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia; da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor; e da ACEPI – Associação da Economia Digital.
“Parece que estou aqui no papel do Pedro, porque pareço a Velha do Restelo em relação à internet”, referiu Ana Garcia Martins. “Parece que os papéis se trocaram”, notou a moderadora, Luisa Gueifão, presidente do conselho diretivo da Associação DNS.PT. A Pipoca Mais Doce ensaiou uma explicação: “Já estou há muito tempo na internet, enquanto o Pedro chegou há pouco, e, se calhar, ainda olha para isto com encantamento”. Ele não se fez rogado: “Não cheguei há pouco tempo, entrei no Facebook em 2007 e tive um blogue há 13 anos”. Depois do primeiro painel, a Chef de cozinha Justa Nobre debateu com Maria João Clavel, conhecida blogger de culinária, o estado da “cozinha” no antes e no depois da internet. No fim, o radialista e escritor Nuno Markl “enfrentou” a nativa digital Mafalda Sampaio, do blogue, canal de YouTube e revista A Maria Vaidosa. O moderador dos dois últimos debates foi Rui Unas, ligeiramente atrasado por um motivo que Internet alguma pôde ajudar a resolver: tinha ficado preso no trânsito. Em todos os debates, houve surpresas nas opiniões.
26% nunca navegaram
O passado e o presente da Internet deram mote às conversas. E o futuro também. Em breve intervenção inicial, Luisa Gueifão lembrou que 26% dos portugueses nunca navegaram na internet. “A nossa realidade não é a realidade de todos”, referiu. “Cabe-nos a nós, que estamos na net todos os dias, fazer alguma coisa em relação aos excluídos digitais. Chama-se a isso desenvolvimento de competências digitais.” A Associação DNS.PT tem dado passos nesse sentido, através de iniciativas que envolvem jovens e idosos, pessoas com poucos estudos ou posses.
“Vamos trazê-los todos para este meio de informação e de partilha de conhecimento”, apelou a presidente da Associação DNS.PT. Lançou ainda uma pergunta: como será o mundo daqui a 30 anos, tantos quantos passaram desde a criação do .pt? “Esqueçam, nenhum de nós consegue adivinhar”, respondeu. “Não sabemos se vai haver internet como a conhecemos hoje. Só há duas coisas que podemos fazer: colocar o ser humano no centro, sermos humanistas e colocar o ambiente como prioridade. Senão, não vamos ter planeta para viver.”
Sobre o domínio .pt, Luisa Gueifão apelou aos estudantes presentes no auditório, a que se referiu como “empreendedores do futuro”, para que “escolham estar na internet através do .pt”. “Todos nos orgulhamos hoje de Portugal, daquilo que os portugueses fazem lá fora no desporto e na cultura e também do que fazem em Portugal. O domínio .pt é símbolo disso mesmo. Estar na internet não é só estar nas redes sociais; é ter também uma presença sólida. Isso passa por ter um site, um domínio registado .pt. Os estudos que temos feito indicam que o .pt é um símbolo de confiança, de segurança e de inovação, quer para as empresas quer para os consumidores.”
Doce ou menos doce?
Durante o debate, Ana Garcia Martins contou que a internet já tinha entrado na sua vida antes de criar o blogue A Pipoca Mais Doce – que fará 15 anos em janeiro próximo. “É a minha relação mais duradoura”, brincou. “Tinha acabado a faculdade e estava a trabalhar como jornalista. Não tinha aquela vontade de andar atrás da notícia. Gostava era de escrever, e o jornalismo era a profissão que eu achava que me permitia fazê-lo.” Mas ao chegar ao já extinto jornal A Capital, percebeu que o tom e os temas de que gostava eram “muito voltados para o humor”, o que “não tinha espaço no jornal, por contingências editoriais”. Como naquela época se vivia uma febre portuguesa dos blogues, Ana Garcia Martins viu ali uma “excelente plataforma” para “divagar sobre os assuntos” que lhe interessavam. “Não havia Facebook nem Instagram, era muito mais difícil ganhar dimensão.” E, no entanto, foi isso que aconteceu, com amigos de amigos a aconselharem o blogue da então jornalista.
Hoje, porém, entende que a internet se transformou num lugar “um pouco estranho”, devido à forma como algumas pessoas utilizam as redes sociais. “Há 15 anos, quando comecei, era tudo muito mais leve. A internet era uma ferramenta de trabalho e as pessoas consultavam blogues para se divertirem e passarem um bom bocado. Agora, estão nas redes sociais essencialmente para se indignarem e arranjarem polémicas. Para nós, criadores de conteúdos, e para alguém como eu que procura uma vertente mais corrosiva ou sarcástica, tudo vira de repente uma grande confusão, com insultos e agressão verbal, o que faz com que me retraia. Estou bastante mais comedida.” Para gáudio da plateia, Ana Garcia Martins deu um exemplo: “Mesmo que vá escrever a coisa mais inócua, tenho de pensar 550 vezes sobre quem se vai ofender. Posso escrever ‘bom dia, está um dia incrível em Lisboa’ e há alguém que se chateia porque no Porto está a chover”.
Atento, Pedro Boucherie Mendes interveio: “Estás uma pipoca menos doce”. “Nunca fui muito doce”, respondeu Ana Garcia Martins. E o público riu-se outra vez. O jornalista tinha preparado uma intervenção que procurou apresentar a internet como um lugar “tudo menos estranho”. Disse que terá utilizado a net pela primeira vez em 1995 ou 96, na redação do jornal O Independente, onde trabalhava. E voltou atrás, até 1988, ano em que fez 18 anos e nasceu o .pt.
“Estranho, estranho era na minha universidade, na Avenida de Berna [em Lisboa], não haver internet e vigorar uma espécie de pensamento único, completamente ultrapassado. Os alunos que hoje estão na universidade têm a vantagem de ter internet e aceder a outro tipo de pensamento, além daquele que os professores tentam impor. Isso, desde logo, faz com que a internet seja um lugar tudo menos estranho”, sublinhou.
No tom irónico que muitas vezes o caracteriza, Boucherie Mendes elegeu outra vantagem da rede. “Estranho era estarmos interessados numa rapariga, ou num rapaz, e passarmos a vida a fazer quilómetros para ir a um café onde ela eventualmente pudesse passar. Era cansativo ir ao mesmo café todos os dias durante um mês, na esperança de que a Rute ou a Joana pudessem lá passar um dia. É muito mais difícil meter conversa pessoalmente do que através das redes sociais, certo?”. Evidentemente, Ana Garcia Martins tinha uma resposta. “Mas é mais autêntico.”
Fotos de cozido à portuguesa
No segundo painel, Rui Unas começou por elogiar o cozido à portuguesa de Justa Nobre e acrescentou que não sabe cozinhar. Neste detalhe, estava o início de um tópico que marcou a manhã e que já tinha sido aflorado antes: os efeitos do artigo 13.º da proposta de diretiva sobre Direitos de Autor, em preparação na União Europeia, e muito discutida em Portugal desde que o YouTuber Wuant publicou um vídeo a criticar a medida. Wuant disse que estamos perante “o fim da internet”, e a Comissão Europeia esclareceu que “o artigo 13.º não vai acabar com a Internet”, vai, “pelo contrário, dar força” aos criadores de conteúdos.
Justa Nobre contou: “Um colega de profissão pegou nas fotografias do meu cozido e pô-las no seu próprio site, o que me deixou um pouco indignada. Depois mandou um recado a dizer que tinha sido um engano do escritório e retirou as fotos”.
O .pt a crescer
↓ Mostrar
↑ Esconder
Nas últimas três décadas, foram registados um milhão e 100 mil domínios .pt, dos quais 80 mil só neste ano, indicam os dados da Associação DNS.PT. Portugal está hoje entre os 5 países europeus com maior crescimento do respetivo domínio territorial. Nos primeiros 4 meses de 2018, o crescimento foi de cerca de 12% face a igual período de 2017 – muito acima da média europeia, que ronda os 4%.
Maria João Clavel partilhou experiência idêntica relativa a fotos e receitas que ela própria criou, mais tarde reproduzidas em blogues ou redes sociais sem o seu consentimento. “Ao início, senti-me insultada, mas agora acho que é um elogio. Já ponho marcas d’água nas imagens e não me preocupo. Sinto que faz parte, mas não dou o mesmo valor a quem não cria conteúdos originais.”
O facto de haver muitas portuguesas a fazer conteúdos sobre culinária e alimentação em blogues, mas haver ainda poucas mulheres a chefiar cozinhas, mereceu um comentário de Justa Nobre: “A cozinha ainda é um mundo muito machista, mas quem ensina os homens a perceber o que é a comida são as mães”.
“Situações discutíveis”
Ao terceiro debate, o artigo 13.º surgiu novamente. “Acredito que a internet, com o artigo 13.º, vai deixar de existir como a conhecemos”, afirmou Mafalda Sampaio. “Fico dividido, genuinamente”, confessou Nuno Markl.
Na opinião da autora de A Maria Vaidosa, “a internet pode deixar de ser um lugar de partilha” e “provavelmente o Pinterest deixará de existir, porque todas as imagens que lá estão têm direitos de autor”. “Há blogues que partilham imagens minhas, como inspiração”, o que é positivo, considerou. “Mas se há alguém usa a minha imagem para fazer dinheiro com isso, sou a primeira a intervir.”
Depois de garantir que “as pessoas são mais felizes fora da internet”, Nuno Markl explicou o sentimento contraditório que tem sobre uma leitura restritiva dos direitos de autor na rede. Exemplificou com a série de YouTube, e espetáculo ao vivo, Uma Nêspera no Cu, de que é autor, juntamente com Bruno Nogueira e Filipe Melo. “Começámos a ver que os nossos episódios apareciam em canais de outras pessoas e que elas ganhavam dinheiro com isso. Como é o nosso trabalho, o nosso ganha-pão, fizemos uma coisa impopular e tivemos de rapar aquilo dos sítios onde estava indevidamente publicado.” Para o radialista, “há um lado de defesa da autoria que é legítimo”, se bem que o artigo 13.º “dá a ideia de que tudo poderá vir a ser monitorizado e imediatamente censurado, sem sequer o detentor dos direitos dizer que autoriza, o que pode levar a situações mais discutíveis”.
Posta toda esta polémica, será, de facto, a internet um lugar estranho?