São sete e meia da manhã quando entro no snack-bar Pirata, na Rua Morais Soares, à procura de conhecer melhor a Lisboa que amanhece e de sentir o pulso aos Arroios na antecâmara das sempre entusiasmantes eleições europeias.
Ao balcão, o senhor Carlos vai servindo o pequeno-almoço a dois clientes que pela interação silenciosa com o empregado de mesa percebo serem habituais. Uns minutos depois, dois trabalhadores da construção civil entram no café e pedem um dito e um copo de vinho branco, enquanto lamentam um destino que as raspadinhas que sacam do bolso teimam em manter inalterado. Têm ambos o olhar fixo na televisão ao fundo da sala, onde o noticiário anuncia um tiroteio vespertino na Amadora. “Olha, a Amadora”, diz um deles, como se a roleta incessante da informação fosse uma reencarnação dos Jogos sem Fronteiras. “Ah, isso é sempre”, diz o outro, ciente de que não há nada de novo debaixo do sol.
As desgraças sucedem-se perante o olhar anestesiado destes colegas, que despacham o copo de três ao ritmo lamurioso da televisão, voltando apenas a mostrar sinais de vida quando se anuncia a morte de uma idosa, atropelada acidentalmente pelo marido. A notícia desta tragédia, depois das histórias de criminalidade e do incêndio numa prisão em Matosinhos, tem o impacto de um alívio cómico. O mais entusiasta dos dois sorri com a forma sempre nova que a morte encontra para nos surpreender, ao passo que o outro lamenta o azar do pobre casal.
A seguir, narra-se o episódio de um ovarense, subitamente reduzido à condição de homem por uma manchete que anuncia: “Sequestrado vive terror: Apontaram arma à cabeça do homem”, numa narrativa que elimina as contingências espaciotemporais da história para, enfim, despertar da apatia os impávidos espectadores, que assim talvez sintam o leve terror intercalado pelos anúncios a um suplemento vitamínico. Nada feito, não funcionou.
Pedem a conta e preparam-se para sair enquanto aquele canto de sereia teima em arrastá-los para uma história que, passada em Bragança, soa a hollywoodesca: Nélida e Sidney, a versão patusca de Bonnie e Clyde, tentaram atropelar GNR e PJ. Ao que parece, a história é de há uns anos, mas, como acontece com as epopeias que verdadeiramente importam, parece ter acontecido hoje e sempre. Sento-me, enfim, enquanto espero por notícias de Bruxelas.
Um homem passou a última hora a entrar e a sair do snack-bar. Quando sai, fuma um cigarro, quando entra, bebe um vinho gaseificado que partilha o nome com o estabelecimento comercial.
Espero mais um pouco.
Duas octogenárias sentam-se na mesa atrás de mim para tomarem um café e um rissol enquanto põem a conversa em dia. Peço para me juntar e elas acedem relutantemente. Anuncio que venho da parte do Observador e a mais afoita das duas diz-me que não lê jornais, só vê aquilo, apontando para a televisão onde se apresenta o novo episódio da novela do José Castelo Branco. A seguir, anuncia-me que isto anda tudo a roubar, declara o seu apoio ao Chega e apela aos leitores deste jornal que, em vez de perderem tempo com artigos desinspirados deste cronista, vejam antes o programa A Verdade da Mentira, no canal da Igreja Maná, onde aos sábados garante ser habitual ver deputados do Chega.
Depois, e de forma algo surpreendente, defende com unhas e dentes artigos da Constituição que eu desconhecia por completo. Pergunto-lhe o nome e ela, destemida, diz que não tem problema nenhum em dizer que se chama Maria Antónia, anunciando ainda que não tem vergonha de Deus, para que depois, chegada a sua hora, Deus não se envergonhe dela.
Juliana, mais tímida, proíbe-me de partilhar o seu nome com os leitores, antes de dizer que a religião mudou muito nos últimos tempos e que por isso se afastou da Igreja Católica onde crescera, sem contudo a trocar por uma nova. A gota de água foi a ligeireza com que hoje se comunga sem antes se jejuar. Não acha bem. Acha mal. Ainda assim, confessa que também só lá ia porque as patroas da mãe a obrigavam.
Maria Antónia volta à ribalta, para contar a história da sua conversão. Era católica (“cá somos todos”), mas o pai do seu filho cegara ao voltar da Guiné e, depois de uma digressão por todos os bruxos e médicos de Lisboa, foi curado por um pastor. Apesar da falta de visão, diz, tornou-se um evangelizador que nem imagina. Juliana aproveita um momento de distração de Antónia com as notícias de Betty para me dizer que na igreja da amiga são todos uns exploradores. Pergunto-lhe se falam sobre isso e Antónia, que só parecia desatenta, responde, sem desviar os olhos da televisão: “Nem vale a pena”. “Mas respeitamo-nos muito uma à outra”, garante Juliana. “Está bem, mas não andamos aí aos abraços”, diz Antónia, num suspiro, acrescentando: “Quando esteve no hospital, não esteve praticamente morta? Quem é que intercedeu por si? Fui eu! Não vale a pena, está a ver?”.
Antónia começa a citar com uma desenvoltura impressionante alguns versículos da Bíblia, enquanto discutem a inevitabilidade de se ficar doente quando se envelhece. Depois, falam de outros tempos, em que Sá-Carneiro, Soares e o CDS ainda estavam vivos. Antónia lamenta que só o Chega ensine as pessoas a agir segundo a Constituição e eu sinto a necessidade de garantir que estamos a falar da mesma coisa. A seguir, discutem a idade de Juliana. Juliana diz ter 87 anos, mas Antónia garante serem só 83. À hora de fecho desta edição, ainda não fora possível chegar-se a um consenso.
Antónia tem um sorriso malandro, quase infantil, difícil de descrever, tenho pena de que não estivessem lá comigo para o verem. Fala-me de alguns milagres do apóstolo da sua igreja, anuncia que as imagens da guerra da Ucrânia são coisas muito antigas, que Marcelo andou a negociar com os russos em São Tomé e que Sá-Carneiro foi assassinado por malta do PSD, enquanto, de dez em dez segundos, faz o gesto de quem arruma os pratos e chávenas da mesa, pega na carteira e se prepara para sair.
Finalmente, levantam-se. Juliana sussurra-me: “Isto também já é fanatismo a mais” e volta a dizer que não permite que use o seu nome, mas que podemos usar as fotografias. Pergunto-lhe como se quer chamar e Juliana diz-me o seu nome completo. Volto a explicar, Juliana diz que, pronto, sabe lá ela, tanto faz e Maria Antónia, já junto à porta, grita: “Diga um nome qualquer. Fica Juliana, pronto.” E lá vão elas, rua abaixo.
Na televisão, vejo o Jorge Gabriel apresentar a segunda meia-final dos Cantares ao Desafio, onde os artistas versam alegremente sobre herança e traição. Lá fora, Joana bebe um café para acalmar, depois de quase ter batido com o carro a levar os filhos à escola. Pergunto pelas Europeias, mas nada me diz. O marido vem ali ter e seguem para o restaurante de sushi que abriram há uns meses nas Avenidas Novas.
A seguir, falo com outra Joana, desta feita uma optometrista que trabalha ali na porta ao lado e que me fala do sonho juvenil de entrar na Academia Militar, traído pela sua baixa estatura, da vontade de ver os Scorpions este ano no Rock in Rio e do arraial a que irá mais logo com as amigas. Depois, vai trabalhar e eu aproveito para trocar dois dedos de conversa com o senhor José, um autoproclamado conservador do Norte que trabalha no Pirata desde que o café se transferiu para ali vindo dos Restauradores. Conta-me que veio de Viseu para Lisboa sozinho aos 13 anos e que gosta de governos que façam coisas, enquanto, lá ao fundo, sem som, Sebastião Bugalho é levado em ombros por dois indivíduos com ar de guarda-costas.
O senhor José confessa que está esperançoso num Portugal melhor, mas, olhando sobre o ombro para a televisão, parece nem reconhecer o rapaz entronizado, tão distante daquele outro que há décadas chegara a Lisboa sem ninguém à sua espera. Antes de me ir embora, diz que um dia viu no cinema uma frase que o marcou muito: “A liberdade não é difícil de conseguir, mas é muito difícil viver com ela”. Aponto-a no meu caderno, enquanto ele pega no comando para mudar de novo para a RTP onde três raparigas de biquíni se preparam para descer no escorrega gigante do Parque Aquático de Amarante, e pergunto que filme era esse. Encolhe os ombros. Já não se lembra.