De acordo com o ChatGPT, a canção Ninguém, Ninguém foi escrita pelo compositor português Carlos Paião, que – para quem não sabe – é o objeto de um dos maiores mitos pop portugueses: de acordo com a vox populi, Carlos terá sido levado a enterrar ainda vivo e o seu caixão apresentaria, por dentro, marcas das unhas de um desesperado Paião a raspar na tampa do dito.
Não é exatamente certo como o mito nasceu, até porque a causa da morte de Paião (um trágico acidente de viação em idade excessivamente nova) é sobejamente conhecida – nem porque é que alguém enterraria Paião ainda vivo, embora neste caso se possa presumir que quem o enterrou achasse que estivesse morto (o que muito provavelmente estaria). Também é difícil perceber como é que alguém teria tido acesso ao interior do caixão para verificar as marcas das unhas.
De João Simão a Marco Paulo, o romântico que só queria ser cantor (1945-2024)
O que sabemos é que não foi Carlos Paião a escrever Ninguém, Ninguém, antes a dupla britânica formada por Peter Yellowstone (compositor) e Mike Tinsley (letrista). Originalmente, a canção chamava-se Midnight Lover, tendo sido tornada popular por Joe Dolan, trovador popular irlandês que ficou também na história como a “hiena rugidora”.
Ninguém, Ninguém foi lançada originalmente em 1978, lado B do single Canção Proibida, lado A que não ficou na história da mesma maneira, até porque não conseguiu alcançar o mesmo valor que a irmã mais nova: Ninguém, Ninguém é o paradigma da forma como Marco Paulo (que morreu aos 79 anos) atravessou gerações. Como sobreviveu à travessia do deserto que resta a quem é votado ao mundo do nacional-foleirismo, como aconteceu com o cantor de nome próprio João Simão. As gerações passaram, Marco Paulo manteve-se — e não só se manteve como inscreveu, mais involuntariamente do que outra coisa, as suas gravações no nacional cançonetismo. Ou seja: os versos e refrães de Marco Paulo fazem parte da memória de tal maneira que os cantamos como se estivessem entre nós desde sempre.
[“Ninguém, Ninguém”, de Marco Paulo:]
Quem escreveu Ninguém, Ninguém — ou mais acertadamente, António José, o homem que adaptou o original, tal como adaptou muitas outras canções gravadas por Marco Paulo — certamente não esperava que em 1978 a canção fosse editada como lado B (no ano seguinte faria parte do álbum Concerto Ligeiro). E, sim, é verdade, no momento do seu lançamento, Ninguém, Ninguém não era a principal aposta do artista e da editora, mas sim uma canção “para encher”. Durante muitas décadas pôde argumentar-se que Eu Tenho Dois Amores era a canção mais emblemática de Marco Paulo; hoje é possível que seja Ninguém, Ninguém, mas toda a gente terá o seu Marco Paulo preferido (ou mais odiado).
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Também se pode apostar com à vontade em como quem compôs a canção não imaginava que um dia esta seria arranjada assim: nos sete segundos iniciais, antes da entrada vocal de Marco Paulo, a ascensão das cordas parece equivaler ao processo mental de alguém que, a dirigir-se para o trabalho, se recorda que se esqueceu do filho em casa e volta para trás a toda a velocidade, à beira de um ataque de ansiedade.
Mas o que é exatamente Ninguém, Ninguém e o que explica a sua popularidade? Tenho uma teoria sobre a eficácia da pop que se resume a: funciona porque embrulha uma história em 3 minutos e tem um refrão que fica no ouvido. Mas o que por norma memorizamos da canção não é a história completa, antes um par de frases – durante anos, para mim, o que Lou Reed cantava em I Can’t Stand It era “It’s hard being a man / living in a garbage can”, e tratava-se de uma canção de pendor social. O que ele realmente canta é “It’s hard being a man/ Living in a garbage pail”. Ainda podemos argumentar que tem esse pendor, mas não é exatamente a mesma coisa.
Em Ninguém, Ninguém há um par de linhas fortes que julgo ser o que toda a gente conhece e que equivalem ao refrão:
“Ninguém, ninguém/ Poderá mudar o mundo
Ninguém ninguém / É mais forte que o amor
Ninguém, ninguém, ninguém”
Não é exatamente claro o que se está a passar aqui: na primeira oração parece haver um apelo ao conservadorismo, ou uma resignação perante as forças-fortes que comandam o universo, algo estranho em 1978, quando acabávamos de sair de uma revolução; na segunda oração, a canção é conduzida a uma hagiografia romântica que estará no cerne do seu êxito: “Ninguém é mais forte que o amor”.
A canção parece dizer que não controlamos nada nesta vida ou, pelo menos, o que acontece lá fora no mundo; a nossa única esperança é o amor e mesmo o amor é mais forte que nós, pelo que apenas podemos aceitá-lo. As consequências ontológicas da frase são múltiplas: poderá uma pessoa amar duas ou três ou quatro pessoas? E se sim, aquela com que mantém uma relação tem de aceitar que o outro ame múltiplas pessoas? E se eu amar a Maria e não conseguir controlar o amor (porque o amor é mais forte que tudo, relembremos) e a Maria não me amar, não seria melhor eu controlar o meu amor (algo que aparentemente não consigo, se interpretar literalmente letra)?
[Marco Paulo na RTP na década de 80, com “Ninguém, Ninguém”:]
Seja como for, esta dimensão épico, hiper-romântica da vida como um absoluto definido exclusivamente pelo êxito amoroso que tudo redime e justifica é, de há muito, extremamente apelativa. O arranjo escolhido para a canção é apropriado: arranca num frenesim, antes de, pelos sete segundos, Marco Paulo distribuir sílabas à velocidade a que um cowboy disparava balas nos antigos westerns:
“Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada
Vão falando porque é fácil inventar, todos inventam por aí
Acertaram sem saber que uma paixão anda agora dentro do meu coração
Desta vez podem dizer seja o que for, mas isto agora é mesmo amor”
Tudo isto é cantado em menos de 30 segundos e, ali aos 25 e 29 segundos há uns coros (“A-aa, A-aa”) que são tão inesperados e kitsch que é impossível não sorrir; depois vem a ponte, com um suave toque de chanson, cordas elegantes e acabamentos existencialistas:
“De quem fui, de quem sou, onde vou?
Só eu sei mais ninguém sabe
Ninguém
Sim ou não, quem me dá a razão para tudo o que acontece?
Ninguém”
Como chegámos aqui? A canção começa por nos dizer que “Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada”, depois parece denunciar uma sociedade de bufos invejosos (“Vão falando porque é fácil inventar, todos inventam por aí“), mas conforta-nos porque “isto agora é mesmo amor”.
Mas será? “De quem fui, de quem sou, onde vou? / Só eu sei mais ninguém sabe” parece insinuar que não é certo que o narrador esteja propriamente comprometido com uma pessoa; há outra interpretação possível: o que alguém fez no passado pouco importa, tudo o que interessa é este amor aqui e agora. Não sendo o amor propriamente racional (ao fim e ao cabo, ninguém é mais forte do que o amor), ele parece surgir quando quer sem que possamos fazer nada – daí, o narrador perguntar “Quem me dá a razão para tudo o que acontece?” e dar a resposta “Ninguém”.
Talvez uma canção sem estes entraves semióticos, uma canção mais simples em que um narrador dissesse “Amo-te e pronto”, fosse menos apelativa. A visão do amor que aqui é apresentada tem, afinal, entraves: os comentários dos outros, um eventual passado aparentemente promíscuo – e ultrapassar esses obstáculos torna ainda mais épica a ascensão à apoteose que se começa a adivinhar quando Marco Paulo canta:
“Se te quero afinal bem ou mal ninguém nos vai separar
Ninguém
Deixa lá que ninguém mudará este amor que me pertence
Ninguém”
E é neste momento, ao minuto e 90, que dá entrada pela primeira vez o refrão, em toda a sua plenitude de êxtase, o refrão que eleva Ninguém, Ninguém ao ar rarefeito de mitologia pop portuguesa, o refrão que faz homens e mulheres sonharem com um amor que redima tudo o que passaram na vida:
“Ninguém, ninguém
Poderá mudar o mundo
Ninguém ninguém
É mais forte que o amor
Ninguém, ninguém, ninguém”
À luz de tudo o que ficou para trás, a ideia da canção torna-se mais clara: apesar de todos os entraves à concretização deste amor, a empreitada amorosa vai para a frente simplesmente porque está escrito nas estrelas que assim seja, porque o amor quer, escolheu-nos e ninguém se consegue opor à sua força gravítica.
Ninguém, ninguém consegue explicar exatamente porque é que uma versão sobre-arranjada, com trejeitos disco-sound e coros caricatos, de uma qualquer canção escrita por um compositor inglês desconhecido, traduzida – ou reescrita – por ainda outro desconhecido, gravada como lado B de um single, se tornou, décadas depois, um símbolo da ideia de canção romântica.
Mas talvez seja simples: qualquer canção em que alguém jure a força do seu amor durante um refrão épico, dobrado por cordas vertiginosas, tem uma chance de encontrar, algures no mundo, almas a precisar do bálsamo de esperança encerrado em Ninguém, Ninguém.