Textos e fotos dos enviados do Observador Carlos Diogo Santos e João Porfírio a Zaporíjia, na Ucrânia
Os carros vão chegando e entram em filas separadas por fitas e paletas de madeira. No final estão polícias para fazer o registo de quem chega. O parque de estacionamento exterior da Епіцентр (Epicentr), uma das grandes superfícies de construção e bricolage de Zaporíjia, foi preparado para funcionar esta semana como o final de uma viagem difícil e o início de uma nova vida para todos aqueles que vêm de Mariupol — havia apoio psicológico, comida, bebida. E uma equipa da ONU que esperou até ao fim do dia — em vão — pela chegada do primeiro grupo de cem pessoas que viria da Azovstal.
Problemas nas negociações ou atrasos no processo: os motivos pelos quais os civis que vêm daquela fábrica, em cujas caves se refugiam há meses, não terem chegado ainda não são conhecidos, não havendo sequer certezas de que esta terça-feira será a vez de eles irem para uma das filas daquele parque. Depois de António Guterres ter negociado os corredores para a sua retirada com Putin e Zelensky, a primeira data desejada chegou a ser a última sexta-feira. Mas o processo complicado atirou tudo para o início desta semana. Só que afinal tudo terá parado a meio, e agora, enquanto a ONU negoceia nos bastidores, são ainda outros os que vão chegando. De Mariupol, mas não da fábrica de aços, que à noite aliás voltou a ser bombardeada.
Irina quer voltar em breve: “Casa é casa”
Irina Sokolova veio, mas já está com a cabeça no regresso. É, aliás, conversa recorrente entre amigos: “Dizemos que voltaremos mesmo sem luz, sem nada, para reconstruir tudo.” Basta que os russos saiam. E Irina está convencida de que o poderá fazer em breve: “Chego aos 50 anos a 31 de maio e já os quero fazer lá”. O medo levou-a a sair por agora, mas esta supervisora de supermercado tem noção de que em qualquer lado para onde vá será, na melhor das hipóteses, “uma convidada”, porque “casa é casa”.
O que não quer voltar a ver é a sua cidade tal e qual a deixou agora — nem sequer consegue fazer uma descrição do cenário sem começar a chorar. “Eu não lhe posso explicar, não posso mesmo descrever o que aquilo é. Estive numa cave e os meus pais não puderam ir para lá por serem mais velhos. Só me lembro de o meu pai ficar a chorar e a minha mãe a rezar. Os mísseis estavam a cair, os aviões começavam a sobrevoar, tudo sobre as nossas cabeças”.
Irina chegou a estar num abrigo numa fábrica próxima da Azovstal e quando percebeu que já não podia ficar mais em Mariupol, a 19 de março, decidiu fugir para Volodarsk — eram 8 pessoas, mulheres grávidas, crianças de 3 anos, pessoas velhas e a sua família. Ficaram num campo de refugiados, mas o que lá encontraram foi ainda pior. Conta que os russos vagueavam pelas ruas — eram uns “filhos da mãe e estavam sempre bêbados”. “Volodarks é hoje um autêntico guetto, é impossível lá estar. Em Mariupol, eu vivia nos subúrbios e não vi a maior parte das coisas más, quando cheguei a Volodarks é que vi tudo”. Irina continua a chorar nas traseiras da carrinha branca que a trouxe juntamente com a neta e a nora até Zaporíjia, um transporte privado organizado por conhecidos para tirar perto de uma dezena de pessoas daquelas regiões.
O terror que levaram para a sua cidade, Irina só consegue explicar de uma maneira: “Eles pensam ‘se nós vivemos pior que o nosso vizinho, então ele deve viver pior’”. Mas a ucraniana está completamente convencida que a cidade vai dar a volta por cima e usa até uma frase ucraniana que sugere que tudo vai ficar bem no final: “Tudo será Ucrânia”. Até lá, até poder voltar, vai para Dnipro.
“Ainda não acredito que isto é real”
À entrada do estacionamento, fora das linhas definidas, um cão a pular e a ladrar denuncia um reencontro. O dono teve de vir mais cedo, a 16 de março. E agora o cocker veio com Daria Fedorova, assistente numa sociedade de advogados.
“Foi muito emocionante ver a família aqui, ainda não acredito que isto é real”, conta Daria, com um largo sorriso e voz alta: “Eu preciso de ir para casa, abrir um champanhe, relaxar. Só depois é que vou acreditar…” Todo o percurso foi feito sem sobressaltos: “Surpreendentemente estava tudo bem. Ouvimos relatos de amigos nossos a dar conta de grandes dificuldades, mas hoje foi bem mais fácil, não estávamos à espera”.
Costuma-se dizer que à terceira é de vez, mas no caso de Daria foi à quarta. “No início da guerra saí de Mariupol fui para Belosorayska Kosa e depois para Melitopol. Eu e estes familiares que vêm comigo tentámos três vezes, mas só agora conseguimos”, explica. Se não tivesse sido desta, voltariam para Melitopol e tentariam mais tarde: “O que poderíamos fazer? Não tínhamos outras opções”.
Uma das coisas que lhe vêm à cabeça dos últimos tempos foi o esforço que as tropas ucranianas fizeram para ajudar as pessoas que ficaram em Mariupol, quando tiveram de sair. “Eles ajudaram-nos a arranjar caves e manter-nos seguros”, recorda agora, salientando que evitou sempre o contacto com os russos. Talvez por isso não tenha presenciado nada de terrível: “Muitas pessoas que conheço contaram-me coisas horríveis que se passaram com elas, outras também me disseram que encontraram soldados normais”.
Mas Daria não consegue esconder que esta segunda-feira é um dia de sorrisos e não de pensar no cativeiro em que viveu — tentou sair muito pouco de casa. “Nós somos sortudos por não termos vivido na pele crimes, porque toda a gente com quem falo viveu. Eles vagueavam, roubavam, roubavam carros…”, finaliza.
“No caminho as mãos tremiam”
Artyon Cuts fugiu, mas a sua família ficou para trás. O taxista de Vasylivka chegou perto das 16h ao parque de estacionamento numa carrinha branca de caixa fechada. Lá em casa preferiram não se por à estrada com ele e com o colega que o acompanha sem mais garantias de que os corredores estariam realmente a funcionar. Artyon percebe agora melhor o porquê: “Eles [russos] estavam nas estradas a disparar”.
A violência do lado russo, diz, já não o espanta. Nos últimos tempos teve de lidar diariamente com a agressividade das tropas enviadas por Moscovo — para se proteger, na maioria do tempo, esteve escondido na cave de sua casa.
No carro à sua frente, Oleh (nome fictício) também aproveita para contar que o caminho, no seu pequeno carro com os miúdos e os animais, não foi fácil. No exterior pode ler-se em ucraniano “crianças”, um alerta que nesta guerra nem sempre evitou o disparo das forças russas.
“Na estrada as minhas mãos tremiam, porque o caminho é muito stressante. Mas só sei que quando disseram que o corredor ia abrir eu pensei que não ia continuar em casa, até porque já estávamos a ficar sem comida…”. Mas nem toda a gente veio consigo, também era impossível, porque o carro já vem com mais pessoas do que a lotação permite. “A minha mãe ficou, porque ela está com medo de sair de casa, de deixar a casa para os russos”, conta.
Oleh também não assistiu a comportamentos violentos por parte dos russos nas ruas, até porque tentou sempre evitar o cruzamento com eles, mas “esteve com medo permanentemente”, sobretudo depois do que viu em Bucha. “Estive quase sempre em casa, no abrigo, não vi, por isso, nada na rua”, diz, enquanto a mulher o interrompe para falar do que sabia: “Eles roubam as casas, fazem tudo o que querem”. E na sua zona, conta, quem queria sair também tinha de levar uma banda branca no braço ou qualquer sinalética branca visível.
“Isto aqui é outro planeta”
Olena anda a saltar de cidade em cidade à procura de um porto seguro e ainda não sabe se o vai encontrar dentro da Ucrânia. Esteve um mês e meio em Mariupol, onde vive, depois foi para Berdiansk, seguiu-se Melitopol (ficou num campo de estudantes reconvertido para receber refugiados) e agora chega a Zaporíjia. Ainda que a sua casa tenha resistido, com pequenos estragos, está sem janelas e tão depressa não terá lá ninguém a viver. Nem ela nem as dos prédios vizinhos, que foram bombardeados e estão totalmente destruídos.
“Todos os dias havia bombardeamentos, nos primeiros dias com artilharia pesada e depois com aviões”, recorda a esta técnica oficial de contas, a dois anos da reforma: “Não contactei com eles, só ia uma vez de manhã ao quintal de casa para cozinhar e depois voltava para a cave. Não temos gás, não temos eletricidade…”
“Vocês não têm ideia, isto aqui é outro planeta”, disse enquanto esboçava um sorriso. Um outro planeta que, ainda assim, não sabe se será suficiente para a fazer sentir-se segura. “Ainda não decidi se vou ou não deixar o país, preciso de uns dias para arejar a cabeça e decidir se vou ou não ficar aqui”, diz ao Observador, insistindo: “Preciso mesmo esquecer o som dos bombardeamentos”.
Só não veio sozinha, porque traz Alanchik, a sua pequena cadela de dois anos — “este cão é o meu bebé, a minha criança”.
Os seus filhos já tinham vindo para Zaporijia a 25 de abril — a filha e a neta, inclusive, estão na Alemanha. Conta ainda que o genro trabalha na Azovstal, mas que conseguiu escapar mais cedo — “provavelmente está em Dnipro, mas não consegui ainda falar com eles, por falta de rede”. “Eles eram voluntários e não podiam ficar em Mariupol…”