[esta entrevista foi originalmente publicada a 23 de junho de 2023]
Quando pensamos nos países nórdicos, pensamos em civilização, estado social, social democracia, índices de felicidade e, paradoxalmente, suicídio. Até aos anos 1990, quando a generalidade dos países escandinavos apostaram em planos de prevenção, as taxas de suicídio eram das mais altas da Europa, com a Finlândia e a Dinamarca à frente, acima dos vinte por cem mil habitantes. Entre os nórdicos, a Noruega sempre teve das taxas mais baixas, tendo atingido o valor mais alto em 1988, com 16.8, cifra que desde então tem vindo a descer, situando-se atualmente nos 11.8, de acordo com a OCDE. Aumentar a informação sobre suicídio e como reconhecer o risco e lidar com ele, facilitar o acesso aos cuidados de saúde mental, estimular a procura de ajuda, restringir os métodos mais utilizados e adaptar as medidas de prevenção aos grupos mais vulneráveis tem sido a estratégia do país, explica Lars Melhum, psiquiatra, investigador e diretor do Centro Nacional para o Estudo e Prevenção do Suicídio da Universidade de Oslo, que há décadas estuda o fenómeno e aconselha o governo sobre as medidas a tomar para o prevenir.
É diretor do Centro Nacional para o Estudo e Prevenção do Suicídio da Noruega. O suicídio é um problema nacional no país?
Não estamos entre os que têm as taxas mais altas na Europa, mas também não somos os que têm a taxa mais baixa, penso que é semelhante à de Portugal [9 por 100 000], cerca de 12 por 100 000 habitantes. O que é muito e o que é pouco depende dos olhos de quem observa, por isso diria que é um grande problema, sobretudo porque são mortes que poderiam ter sido evitadas. Por exemplo entre os jovens, temos muitos anos perdidos de vida. Abaixo dos 25, para rapazes e raparigas, o suicídio é a principal causa de morte. Isso diz alguma coisa sobre como é raro pessoas dessa idade morrerem, quando há paz, quando há bons cuidados de saúde, não há pobreza e as necessidades básicas estão satisfeitas. Ainda assim, no país, menos de 1 por cento morrerá por suicídio.
Em Portugal, as taxas de suicídio são mais elevadas entre os mais velhos. Na Noruega, os mais jovens são o maior problema?
Entre os 15 e os 24 anos, a taxa está ligeiramente abaixo da média e a partir dessa idade a distribuição é relativamente equilibrada. Portanto, a diferença da Noruega em relação a Portugal e a muitos outros países é que não vemos um aumento da taxa de suicídio nos mais velhos, o que é interessante. Também não há uma taxa mais alta nos adolescentes, mas está ao mesmo nível que a dos adultos, o que também é diferente dos outros países, em que a taxa diminui nas faixas etárias mais jovens. Portanto, a nossa linha de variação é muito plana.
Como interpreta isso?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Recorro a Émile Durkheim, o famoso sociólogo francês que estudou o suicídio, que dizia que este, ao nível populacional, era uma expressão de tendências sociais, económicas, culturais e outras nas sociedades. Portanto, a minha interpretação desses dois aspetos seria que, no que respeita aos mais velhos, a Noruega oferece-lhes uma qualidade de vida, proteção social e condições de vida muito favoráveis. No fim da vida, se não tiver um bom Estado Previdência, é como dizem nos EUA, se fica sem dinheiro, fica sem vida [“if you run out of money, you run out of life”]. Isso não acontece na Noruega. Por outro lado, cá, a população não está concentrada nas cidades.
Como é que isso influencia as taxas de suicídio?
Há exceções à regra, mas se ficar no lugar onde nasceu, onde tem a sua família e onde conhece tudo e todos, provavelmente vai sentir-se mais confortável à medida que envelhece, e eu diria que isso conta para alguma coisa. Em relação aos jovens, há algumas tendências que é importante relevar. No nosso país, a igualdade entre homens e mulheres é muito importante e isso levou a uma realidade muito favorável que é todas as mulheres em idade ativa trabalharem e terem uma carreira, o que significa que homens e mulheres estarão muito ocupados com o seu trabalho e isso pode levar a alguns problemas na transição de algumas crianças mais vulneráveis, deixadas ao cuidado de jardins de infância e escolas. Claro que não posso provar isto, mas penso que poderá ser uma das explicações. É um dos muitos assuntos sobre os quais, como sociedade, temos de refletir. O que, como sociedade, podemos fazer para proteger as crianças de serem crianças? A transição da infância para a idade adulta é muito arriscada e, nesses anos, temos de pôr um “cinto de segurança” nas nossas crianças e nos nossos adolescentes. Esta é uma tarefa para pais, escolas, sistema de saúde e sociedade como um todo, para que não morram só porque são adolescentes.
E como é que põe esse “cinto de segurança”?
Por exemplo, com programas nas escolas para ensinar as crianças a reconhecer sinais de alerta e problemas em si próprias e nos seus pares, a saber onde e como procurar ajuda e também a lidar com sentimentos e emoções difíceis, que são normais, mas que podem ser muito problemáticos para os adolescentes. Estes programas são fundamentais, porque criam ao mesmo tempo um sistema externo de ajuda em situação de crise, mas também um recurso interno de autoajuda. Por outro lado, também é essencial treinar professores sobre como ajudar os adolescentes e tornar visíveis e acessíveis os cuidados de saúde mental. Devemos ter uma abordagem mais pública da saúde mental na população para que mais pessoas tenham acesso aos cuidados, porque sabemos que, mesmo num mundo perfeito em que existisse um psiquiatra ou um psicólogo em cada esquina, haveria pessoas que preferiam morrer a ser vistos na sala de espera de um psi e isso é, no nosso tempo e na parte do mundo em que vivemos, mais associado a ser homem do que a ser mulher.
O género é um fator de risco no suicídio?
Há três vezes mais suicídios nos homens do que nas mulheres e, na faixa etária mais velha e nos adolescentes, este número sobre para cinco vezes mais. Por outro lado, se olhar para a procura de ajuda na área da saúde mental, há quatro vezes mais mulheres que procuram ajuda do que homens. Outra questão importante é que, quando fazemos ensaios clínicos randomizados para tratamento de pessoas suicidas, e eu tenho feito muitos, conseguimos nove mulheres para cada homem, o que significa que estamos a generalizar as nossas descobertas científicas sobre como tratar pessoas com depressão e ideação suicida de participantes que são sobretudo mulheres, não sabemos realmente como é que os homens respondem a esses tratamentos. Isto é trágico e difícil, temos de corrigir, claro, mas é muito difícil, eu tentei e não é fácil. Homens e mulheres são diferentes e querem continuar a sê-lo e por isso temos que criar recursos para tornar possível que até aqueles que não têm apetência para procurar e aceitar ajuda possam tê-la.
A prevenção é muito importante. Quando pensa em medidas de prevenção, sabendo que a maioria das pessoas que cometem suicídio são homens, em que medidas pensa especificamente dirigidas a estes?
Já fomos bem-sucedidos em muitas medidas, particularmente para os homens, mas sou um otimista e acho que podemos fazer muito mais. Deixe-me dizer-lhe o que já fizemos e o que podemos fazer no futuro. Uma medida que tomámos já há muito tempo foi mudar a legislação respeitante ao uso e porte de armas de fogo, porque no nosso país cerca de um terço das casas têm pelo menos uma arma e nesse tempo e, antes de mudarmos as leis, o suicídio com arma de fogo entre os homens representava 50 por cento de todos os suicídios, que subia para 70 por centro nos rapazes entre os 15 e os 19 anos, o que significava uma maioria de todos os suicídios. Tragicamente, eu diria, uma grande parte desses suicídios nos adolescentes eram muito impulsivos. Eles não queriam realmente morrer, mas morriam porque quando se põe uma arma na boca e se puxa o gatilho não há volta atrás, enquanto se tomar comprimidos, sobreviverá na maioria dos casos, e este é o método mais escolhido pelas raparigas.
O peso da diferença de género não é tão determinante na tentativa de suicídio como na sua concretização?
Se me perguntar quantas pessoas fazem tentativas de suicídio, dir-lhe-ei que são muito mais raparigas do que rapazes, mas, dada a diferença de método escolhido por uns e outros, há muito mais rapazes que morrem do que raparigas. Com a mudança de legislação, que limitou drasticamente o acesso às armas, após alguns anos, o suicídio com arma de fogo caiu a pique, particularmente entre os rapazes, portanto estimamos que esta única medida salvou uma série de vidas, vidas jovens, sobretudo de rapazes.
E não encontrarão outros métodos, igualmente letais?
Não inteiramente. A curto prazo, não, se pensarmos a 25 anos, talvez haja alguma substituição, mas não completamente, e em 25 anos estamos a falar de milhares de vidas salvas. Limitar os métodos é uma conhecida medida de prevenção, adotada também no que respeita ao acesso a pesticidas, a certos medicamentos ou mesmo à criação de sistemas de segurança, por exemplo, no fornecimento de gás doméstico. Nos Estados Unidos, deviam definitivamente limitar o uso e porte de armas, porque 50 por cento de todos os suicídios em homens e mulheres são cometidos com armas de fogo, e não o fazem. É uma loucura.
Além desta, que outras medidas foram tomadas na Noruega?
Vou falar-lhe de outras coisas que podemos fazer para prevenir o suicídio entre os homens, sobretudo aqueles que não procuram ajuda. Uma delas é criar e tornar acessíveis ferramentas que pessoas que estejam deprimidas e suicidas possam usar mesmo que não queiram ir a um psicólogo ou um psiquiatra, como a I Fight Depression, uma ferramenta digital de autoajuda para pessoas com depressão. Estamos a operar em colaboração com outros países da Europa, penso que Portugal também está envolvido, e sabemos que ajuda quem que não quer ir para terapia, mas estaria disposto a experimentar este tipo de abordagem. Esta é uma medida que penso que devíamos desenvolver mais e aplicar sistematicamente, particularmente para os homens. Outra coisa que temos feito mais recentemente é trabalhar com campanhas de informação pública.
A nível nacional?
O que estamos a fazer agora é promover campanhas de informação regionais. Temos cinco regiões e estamos a ir uma a uma e avaliamos antes e depois.
O que são essas campanhas?
Passa por informação, vídeos, entrevistas, mensagens, anúncios, nas redes sociais, na televisão, no cinema, na imprensa diária, mas também cursos de formação para elementos-chave da comunidade local sobre como detetar o risco de suicídio e como lidar com este – professores, membros da igreja, profissionais de saúde nas urgências e nos cuidados primários. A mensagem principal é que faz bem e é seguro falar sobre ideação suicida, se tiver um amigo e estiver preocupado com ele, não tenha medo de perguntar “estás a pensar suicidar-te?”, isto acompanhado de informação sobre o que fazer, dependendo da resposta que recebe. Ou seja, a ideia é por um lado reduzir o medo na comunidade de fazer as perguntas, mas também incentivar a procura de ajuda entre aqueles que estão com pensamentos suicidas. Trata-se de campanhas de consciencialização multidisciplinares e a vários níveis, para que mais gente na comunidade esteja alerta para o problema e para o que pode ser feito. Penso que isto é fundamental para empoderar a população, num espírito de primeiros socorros em saúde mental, que ajuda sobretudo aqueles que de outra maneira não procurariam ajuda,
Quer dizer que ao contrário do que muitos pensam, inclusive os media, que têm como regra não noticiar suicídios, para não provocar um efeito de contágio, o suicídio é um problema sobre o qual se deve falar?
Eu diria que os media podem ser usados para o bem e para o mal. Pode e deve falar-se de suicídio, mas de forma que não provoque o tal efeito de contágio, por isso cuidado a descrever aspetos de suicídios concretos, desnecessários para cumprir as obrigações dos media para com o seu público. Sabemos que há uma relação de causa-efeito de certos tipos de cobertura mediática, e tenho a certeza que sabe do que estou a falar, mas se se abordar o suicídio de forma construtiva e pedagógica, pode mesmo ter o efeito Papageno, que é preventivo porque cria esperança, no sentido em que o apresenta como um problema grave, mas para o qual há saídas e soluções. Há muita coisa que podemos fazer.
Como evoluiu a taxa de suicídio nas últimas décadas na Noruega?
Na última década, as taxas de suicídio têm-se mantido bastante estáveis e esse é o nosso desafio atualmente, porque baixámos de níveis mais altos, mas nos últimos 10 a 15 anos estabilizou, portanto não conseguimos baixar ainda mais. Pensamos que temos de chegar aos frutos mais altos da árvore, apanhámos os que estavam mais em baixo, agora temos de chegar aos que estão lá em cima. Tivemos muito sucesso, mas se queremos ter mais temos de fazer mais, gastar mais dinheiro, mas também fazer coisas diferentes. O que estou a dizer ao nosso Governo é: se querem atingir a meta do suicídio zero, têm de gastar mais dinheiro. Tenho muitas ideias sobre o que podemos fazer.
E que ideias são essas?
Penso, por exemplo, que temos de adaptar mais a ajuda a necessidades mais específicas. No Centro Nacional para o Estudo e Prevenção do Suicídio criámos um sistema que está a verificar o que aconteceu em todos os casos de suicídio que se deram em tratamento nos serviços de saúde mental ou no período de um ano após o fim do tratamento. Isto cobre cerca de 45% de todos os suicídios neste país. O suicídio não é só uma questão de saúde mental, mas é muito uma questão de saúde mental e se queremos fazer alguma coisa substancial, temos de pensar sobre como tornar mais efetivo o investimento que fazemos nesta área e adaptar os serviços à medida de cada caso, particularmente dos que tiveram alta recente de serviços psiquiátricos, seja ambulatório ou internamento. Se olhar para o que acontece aos que se suicidam no primeiro ano após a alta, verificará que metade deles o fazem no primeiro mês. Isto diz alguma coisa sobre a importância do acompanhamento neste período crítico, por isso recomendo que se crie um programa para seguir todos os pacientes que têm alta dos serviços de saúde mental durante os primeiros três meses.
A depressão e a depressão combinada com abuso de substâncias, transtorno de personalidade, transtorno bipolar, esquizofrenia e outras psicoses, e transtorno de personalidade borderline. Estas são as doenças mentais com maior correlação com o suicídio.
Um estudo que conduziu demonstrou maior eficácia da Terapia Comportamental Dialética (TCD), em relação à Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) clássica para o tratamento de pessoas com ideação suicida. Em que consiste esta terapia e porque é que é mais eficaz?
Na verdade, esta é uma abordagem concebida para pessoas com transtorno de personalidade borderline, simplesmente porque são o grupo de diagnóstico com maior número de crises suicidas e se vai tratar este tipo de doentes, tem de ter um tratamento que seja eficaz na ideação suicida. A TCD tem uma série de estratégias direcionadas para esta questão, por exemplo, no início do tratamento faz uma hierarquia de alvos de tratamento, de forma a priorizar com o paciente as questões a tratar e enquanto esse alvo estiver ativo e se o suicídio estiver na lista de problemas vai sempre para o topo das prioridades. O racional para isto é que o tratamento pode ser perfeito, mas se o paciente estiver morto não serve de muito, por isso tem de priorizar o que pode pôr em risco todo o tratamento.
E quais são as estratégias?
O foco é colocado em tudo o que aumenta o risco de suicídio e é monitorizada a ideação suicida e a vontade de se magoar, de se automutilar, o que é contrário ao que muitos clínicos fazem. Muitos clínicos consideram que falar sobre suicídio ou dar-lhe atenção aumenta o risco e por isso deve evitar-se esse tópico com pessoas que têm este problema. Na TCD não fazemos isso, abordamos o assunto enquanto estiver ativo e fazemo-lo de forma a reduzir o risco, pondo em ação uma análise em cadeia, em que o paciente e o terapeuta vão analisar metodicamente o que aconteceu quando a ideação suicida começou a aumentar. Qual era a situação, o que se passava internamente – pensamentos, sentimentos, influência de drogas, álcool ou outras substâncias –, ou o que se passava em redor, com os amigos, mulheres ou maridos, no local de trabalho. Houve algum acontecimento negativo, algo que tenha desencadeado no paciente um sentimento de desesperança, desespero, raiva ou o que quer que seja e que o levou ao episódio de autoagressão? Vamos meticulosamente analisar isso com o paciente e no início vai ser difícil, mas após algum tempo o paciente apreende o mecanismo e aprende a fazê-lo sozinho.
E consegue?
Consegue. O sentimento de que as coisas acontecem sem razão e que os pacientes muitas vezes sentem no início não é verdade, há sempre uma causa, um gatilho, e com a TCD aprende a identificar esse gatilho e a evitá-lo e, se não conseguir evitá-lo, aprende a lidar com ele e, se não conseguir lidar com ele, pode tentar aquilo a que em terapia chamamos as competências de sobrevivência à crise: como sobreviver tendo ideação suicida sem tirar a própria vida. Toda a gente que teve o coração partido, se sentiu infeliz, triste, sem esperança, e toda a gente já experimentou estes sentimentos, sabe que vai passar, mais cedo ou mais tarde, mas há que sobreviver até passar, e é isso que se aprende a fazer em terapia. Há esta terapia individual e depois há o treino de competências, em grupos terapêuticos.
Que competências são trabalhadas nesses grupos?
Como ser mais mindful, por exemplo, para observar o que se passa na minha mente, mas também à minha volta, não só para estar mais consciente do que podem ser problemas, mas também para experimentar as emoções e viver a vida mais ativamente e viver em vez de andar em piloto automático. Penso que todos podemos e devemos fazer isto para vivermos mais plenamente. As competências de mindfulness são muito importantes, assim como as de regulação de emoções, necessárias para aprender a regular emoções difíceis, de forma a conseguir geri-las e lidar com elas, que, por exemplo, nos adolescentes, passa por fazê-los encontrar o meio termo e aprender a não pensar e sentir de forma tão polarizada, a preto e branco, tão nos extremos, pensar de forma mais dialética. Tudo isto aborda diretamente o suicídio ou problemas altamente relacionados com o risco de suicídio.
A Terapia Comportamental Dialética está a ser adotada a nível nacional na Noruega está a ser como primeira linha de abordagem a este problema?
Sim, começámos a investigação há muitos anos e quando os estudos revelaram resultados positivos em termos de eficácia, iniciámos um grande projeto de implementação e até agora formámos cerca de 700 terapeutas – a formação dura cerca de um ano –, que estão distribuídos por todo o país. Portanto, temos 43 clínicas que estão a fornecer este tratamento, de norte a sul do país. Era bom que fossem mais, mas é acessível e no nosso país todos os cuidados de saúde mental, ou quase todos, são financiados pelo Estado.
O acesso rápido e simples a cuidados de saúde mental é muito importante para prevenir o suicídio. Que políticas têm sido adotadas na Noruega para alargar o acesso?
Absolutamente. E apesar de termos um serviço de cuidados de saúde mental muito desenvolvido no nosso país, ainda não temos o suficiente. No que respeita à TCD, o acesso é muito bom, mas diria que precisamos não de mais recursos humanos, mas de os utilizar de forma mais sábia e eficaz. Gostaria de analisar melhor como usamos o dinheiro de forma a podermos priorizar melhor os recursos para os serviços de emergência e cuidados dos doentes agudos e acompanhar os doentes tratados nos serviços de saúde de forma mais eficaz.
Neste momento, acabámos a revisão das linhas orientadoras nacionais para prevenção do suicídio nos serviços de saúde mental e de tratamento de adições. Iniciámos a primeira geração dessas linhas orientadoras em 2008 e 15 anos depois fizemos uma revisão muito séria das mesmas, atualizando-as com as novas evidências científicas nesta matéria. Quando um Governo emana linhas orientadoras, está a assumir responsabilidades, por isso é necessário um processo exaustivo, mas já as temos e estamos a planear a sua implementação.
E quais são as principais linhas orientadoras?
Desde 2008, quando foram implementadas as primeiras linhas orientadoras, apareceram novas evidências científicas, por exemplo a Terapia Comportamental Dialética, que é agora recomendada para o tratamento de pessoas com ideação suicida, assim como o plano de intervenção de segurança, que é uma breve intervenção que pode ser aplicada em vários contextos quando as pessoas estão suicidas, não só nos serviços de saúde mental, mas também nestes, que foi criado por investigadores americanos e que começámos a usar há uns anos e que entraram nas linhas orientadoras como intervenção recomendada.
Em que consiste?
Basicamente, é o desenvolvimento de um plano de segurança que o clínico faz com o paciente, com uma série de estratégias de autoajuda que este pode usar sozinho de forma a ficar em segurança e não fazer mal a si próprio no intervalo entre as sessões ou depois da alta. É dar ao paciente a noção de quais são os sinais de alerta e do que fazer quando estes se manifestam, por exemplo recorrendo às estratégias aprendidas na TCD, para se distrair das emoções negativas, ou usando o que chamamos a caixa de esperança.
Caixa de esperança?
É uma estratégia que recomendamos que os clínicos desenvolvam com os seus doentes: criar uma pasta no computador ou no smartphone ou ter uma caixa que pode pôr debaixo da cama e para lá vão todas as coisas que lhe lembram que a sua vida vale a pena ser vivida, que tem pessoas que ama, pessoas que a amam, lugares onde gosta de estar, pode ser uma carta de alguém, um poema, uma recordação de infância, uma fotografia, uma lista de sonhos, qualquer coisa que a ligue à sua vida e lhe lembre coisas que estão esquecidas.
O passo seguinte do plano de segurança são as pessoas que a rodeiam: quem a pode ajudar a pensar noutras coisas, quem a pode fazer sentir-se um pouco melhor, alguém a quem pode ligar, põe o nome na lista, com sorte, será mais do que uma pessoa. Também pode pensar em lugares de segurança, um café, uma biblioteca, um jardim, ligares onde haja mais gente para não se sentir tão isolada, para se sentir parte da raça humana. Mas o pilar do plano de segurança será a ajuda profissional, os contactos de emergência, os lugares onde procurar ajuda profissional e claro as urgências. Todas estas estratégias são baseadas na evidência e o pacote foi testado em ensaios clínicos randomizados. É uma lista compreensiva de recomendações.
Os países do sul da Europa têm a ideia de que o suicídio é um problema dos países nórdicos. Os números desmentem esta ideia. Consegue perceber as razões para este mito?
É uma ideia feita, mas essa era a situação há décadas. De uma forma simplista, é seguro dizer que as taxas de suicídio no sul da Europa eram baixas e na Escandinávia eram altas. Já não é assim, os números agora estão equilibrados e há até casos em que as situações se reverteram. Tivemos uma subida da taxa de suicídio entre os anos 1960 e o fim dos anos 1980 e a partir dos anos 1990 começaram a descer, mas antes dos anos 1960, as taxas de suicídio na Noruega eram muito baixas, enquanto na Dinamarca eram muito altas, por isso também havia diferenças entre os países nórdicos. Agora estão equilibradas, mas por exemplo a Finlândia teve sempre a taxa mais alta de suicídio [atualmente é de 15.3], pelo menos no último século.
A partir dos anos 1990 começa a descer e isso deve-se às medidas e políticas de prevenção adotadas ou também a outros fatores sociais ou económicos?
Eu acredito fortemente que sim, que se deve às medidas de prevenção adotadas, mas não há como prová-lo porque não há estudos controlados para fazer essa análise da evolução da taxa de suicídio a nível nacional.
As mudanças na sociedade, por seu lado, desde os anos 1990 até agora, diria que teriam antes um poder de fazer crescer o suicídio, porque, simplesmente por terem mais recursos e melhores condições de vida, não quer dizer que as pessoas sejam mais felizes. Podem nem sequer ser mais saudáveis ou podem ter mais saúde física, mas não mental, porque estão a levar vidas mais desprotegidas. O homem e a mulher médios do que precisam realmente é de pertencer a algum lado, de se sentir seguros e ligados em comunidade. Para alcançar a estabilidade e a felicidade é preciso reduzir o consumo e os gastos e aumentar o tempo e energia para cultivar as relações com outras pessoas, cultivar as amizades, cuidar dos filhos, cuidar dos mais velhos. A tendência das nossas sociedades tem sido de optar por soluções menos coletivistas e mais individualistas e eu não acredito nisso.
Na Noruega, temos uma prática chamada Dugnad, que não encontra em mais nenhum lugar, e que tem que ver com isto. Juntamo-nos todos, com roupas e equipamentos de trabalho, por exemplo, para juntos ajudarmos a tratar de um jardim ou de qualquer coisa que precisa de ser arranjada. Não tem que ver com poupar dinheiro, mas com criar um espírito de comunidade e a Dugnad é isso – toda a gente ajudar para melhorar a escola, o bairro, o que seja, com trabalho voluntário, que os cidadãos organizam sem pedir ao Governo ou ao Estado ou ao Município. Acho que isto é muito importante.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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