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Nem sequer terá visto o carro que o atingiu no momento do acidente. Quem estava no local diz que Nuno Santos estaria de costas quando foi atropelado na A6 pelo carro oficial do ministro Eduardo Cabrita. E que nesse momento tinha acabado de saltar por cima do rail do separador central da autoestrada para retornar à berma contrária onde os colegas estavam a trabalhar. O que dizem sobre a forma como foi atropelado estará sustentado pelo que sobra das roupas que usava, contou ao Observador uma fonte familiar. Após o embate, o corpo do trabalhador de 43 anos terá sido projetado no ar, tendo caído a cerca de quatro metros de distância. Dos outros três trabalhadores que o acompanhavam, apenas um — o que conduzia a carrinha — viu tudo o que aconteceu, mas tem estado em silêncio: está em choque. Após ter presenciado tudo, os seus gritos, entre lágrimas, chamaram a atenção dos outros dois, que estavam fora da carrinha e de costas para o acidente: “Ele morreu. Ele morreu. Ele morreu’, relatou ao Observador fonte da empresa, descrevendo o que os trabalhadores viram. O corpo de Nuno, quase irreconhecível, caiu numa valeta de cimento no separador central da A6.
Entre o estado do choque deste trabalhador e o silêncio do Ministério da Administração Interna, o que aconteceu ao certo no passado 18 de junho, ao quilómetro 77,6 da A6, junto a Azaruja, ainda é uma incógnita. Nem à família são dadas respostas para as suas dúvidas: sabem apenas o que a comunicação social tem revelado. Procuram essas respostas, mesmo que elas acabem por revelar que a culpa foi de Nuno — preferem isso ao silêncio.
A eventual negligência do trabalhador é, pelo menos, a versão que tem sido apresentada pelo Ministério da Administração Interna: poucas horas após o acidente, emitia um comunicado no qual garantia que o carro oficial de Cabrita não tinha sofrido “qualquer despiste” e atribuía responsabilidade à vítima que “atravessou a faixa de rodagem”. Nuno tinha, sim, ido até ao separador central da A6: até agora ninguém sabe porquê, mas família e amigos afastam a hipótese de negligência.
Um dos colegas que estavam fora da carrinha e que pediu anonimato explicou ao Observador que nem ele nem o outro trabalhador sabem o motivo que levou Nuno a atravessar a estrada até ao separador central. Deixa, no entanto, a garantia de que a vítima, chefe de equipa, era muito cuidadosa e que estava sempre a alertar os colegas para os carros que iam passando na autoestrada. Quem já trabalhou com ele diz ser capaz de pôr “as mãos no fogo” em como não houve descuido da parte de Nuno. Certo é que acabou por ser atropelado pelo carro oficial de Cabrita. Mas o que aconteceu ao certo?
Nuno terá sido atingido quando saltava o rail de proteção. Era chefe de equipa e costumava conduzir a carrinha — naquele dia, não foi assim
Não era suposto Nuno estar a trabalhar na berma da estrada naquela tarde de sexta feira. É chefe de equipa e normalmente é ele quem vai atrás dos trabalhadores a conduzir a carrinha que alerta os condutores, com uma seta luminosa, para os trabalhos a decorrer na estrada. Mas naquele dia um dos três colegas, que sofre de um problema de saúde, estava com dificuldade em andar e Nuno ofereceu-se para trocar com ele. Por isso, o outro trabalhador foi para a carrinha que habitualmente Nuno conduzia e ele pegou no soprador e foi trabalhar para a berma da A6, para junto dos restantes dois.
Carro de ministro Eduardo Cabrita atropela mortalmente uma pessoa na A6
Durante toda a manhã e início da tarde, Nuno foi soprando as ervas e folhas para fora da autoestrada. Estava posicionado entre a carrinha e os dois colegas da frente, que iam fazendo a limpeza das bermas. Os trabalhadores garantem que estavam todos na berma: um dentro da carrinha e os restantes três a pé. Nuno estava separado cerca de 100 metros dos colegas. Nesse dia, a equipa estava até entusiasmada porque começa a aperceber-se que iam sair do trabalho rapidamente: era sexta-feira e podiam ir de fim de semana mais cedo.
De costas para a autoestrada, os dois trabalhadores da frente (que ainda não terão sido chamados pela GNR para contar detalhes deste caso) não se aperceberam em que momento Nuno deixou a equipa para ir da berma, à direita, até ao separador central. Devido ao barulho das máquinas que usavam, garantem também que não ouviram o carro do ministro Eduardo Cabrita a aproximar-se, a colisão ou uma eventual travagem — ou sequer adiantam hipóteses sobre a velocidade a que o carro poderia seguir.
Da pouca informação de que dispõe, sabe o Observador, a família acredita que, no momento em que foi atropelado, Nuno estava a saltar por cima do rail do separador central, para atravessar a estrada e regressar à berma onde tinham ficado os seus colegas. Estaria de costas para os carros que seguiam na direção de Lisboa e, por isso, foi atingido nas costas do seu lado direito.
No local, não existem quaisquer marcas de uma possível colisão do carro com o rail, nem sequer marcas de uma travagem no local — o que aliás é motivo de estranheza para o advogado da família, José Joaquim Barros. “Não se percebe porque é que o [condutor do] carro não viu o obstáculo à sua frente com tanta visibilidade e tanto tempo para poder reagir”, disse à agência Lusa, acrescentando precisamente: “Não há sequer uma travagem no local”.
Carro de Cabrita terá sido movido para outro local. Versões da Brisa e trabalhadores desmentem MAI quanto à sinalização dos trabalhos
O ministro da Administração Interna regressava do Centro de Formação de Portalegre da GNR onde tinha presidido à Cerimónia do Juramento de Bandeira dos formandos do 43.º Curso de Formação de Guardas. Seguia na A6 em direção a Lisboa, mas não se sabe a que velocidade. Até agora o MAI não o revelou, escudando-se no segredo de justiça. Neste momento, há dois inquéritos a decorrer: um do Departamento de Investigação e Ação Penal de Évora e outro do INEM sobre a alegada demora da chegada do socorro ao local. Não há conclusões nem de um nem de outro.
Uma das dificuldades em perceber o que aconteceu estará no facto de não haver câmaras da Brisa que captassem o quilómetro 77,6 da A6, onde aconteceu o acidente. As câmaras ajudariam a esclarecer não só como o acidente aconteceu, como também se os trabalhos que estavam a ser feitos estavam bem sinalizados. No comunicado emitido logo após o acidente, o MAI garantia que “não havia qualquer sinalização que alertasse os condutores para a existência de trabalhos de limpeza em curso”.
Estas informações já foram desmentidas por fontes da Brisa, a empresa responsável pela manutenção da estrada, que tinha subcontratado a empresa Arquijardim, para a qual trabalhava a vítima — tal como noticiou o Observador. O que dizem os trabalhadores também vai neste sentido: o trabalho de limpeza era feito em andamento, pelo que não era possível alertar os condutores com sinais de trânsito fixos — razão pela qual os trabalhadores eram protegidos à retaguarda por uma carrinha com um sinal luminoso. Além disso, os próprios usavam calças e coletes refletores para serem facilmente avistados — como era o caso de Nuno.
Outras dúvidas persistem sobre quantos carros seguiam com o ministro. Um dos trabalhadores viu três carros parados segundos após o acidente, mas um deles seguiu imediatamente viagem. Eduardo Cabrita seguiria no do meio. O ministro falou com a GNR logo após o acidente, segundo contou ao Observador um dos trabalhadores que estiveram no local, e ficou no local durante várias horas, até ao final da tarde.
Viúva soube logo que carro do ministro estava envolvido. Até hoje, só recebeu flores, uma carta, uma mensagem de Ventura e uma chamada da assessora de Marcelo
Dois militares da GNR foram avisar a mulher da vítima ao seu trabalho, dizendo que “tinha havido um acidente muito grande”, contou ao Observador fonte familiar. Assim que disseram que esse acidente tinha sido na A6, percebeu logo que só podia ser com o seu marido. Só quando chegou a casa é que os dois militares lhe contaram de quem era o carro.
Mais do que a ausência de respostas, a família de Nuno lamenta a falta de ajuda e preocupação com a mulher e com as duas filhas da vítima. Do Ministério da Administração Interna chegou um ramo de flores e uma carta de condolências assinada pelo ministro Eduardo Cabrita. Do Presidente da República, veio uma chamada telefónica feita por um dos seus assessores, que se disponibilizou a ajudar a viúva caso precisasse. Nenhum deles esteve presente no funeral. A mulher de Nuno recebeu também uma mensagem do líder do Chega, André Ventura. Ao que o Observador apurou junto de fonte familiar, essa mensagem está agora a ser analisada pelo advogado da família, que quer afastar qualquer aproveitamento político do caso. Para já, à família resta o apoio de amigos e da população de Santiago de Escoural, onde vivem.