Professor da Faculdade de Letras de Lisboa e investigador-coordenador do Instituto de Ciências Sociais, Nuno Gonçalo Monteiro, de 67 anos, faz questão de sublinhar que fala enquanto historiador e não como comentador. Em entrevista ao Observador, a propósito da publicação do livro 1822: Das Américas Portuguesas ao Brasil, diz que o Brasil “não tem muita vontade de se lembrar de Portugal” — porque é um país com “sonhos de grandeza” incompatíveis com a memória da ligação a um pequeno país que há 200 anos deixou de ter ascendente sobre os negócios públicos brasileiros. Isso explicará a ignorância que no Brasil existe sobre o bicentenário da proclamação da independência, que se assinala nesta quarta-feira.
Segundo um estudo agora conhecido, realizado pela portuguesa Pitagórica e pelo brasileiro Ipespe, o desconhecimento é partilhado dos dois lados do Atlântico: 52% dos inquiridos brasileiros e 51% dos portugueses não sabem que este ano passam 200 anos sobre o acontecimento que ficou conhecido como Grito do Ipiranga. Nuno Gonçalo Monteiro adianta uma explicação para aquele resultado em Portugal: trauma coletivo.
O livro de que se fala foi proposto pela editora aos autores (a chancela Casa das Letras do Grupo Leya) e a coordenação esteve a cargo de investigador do ICS e da também historiadora Roberta Stumpf. O volume já teve apresentação na Feira do Livro de Lisboa (que decorre até 11 de setembro) e retoma trabalhos de investigação já conhecidos, além de incluir alguma pesquisa recente ainda pouco difundida. Destina-se sobretudo ao grande público em Portugal. “Se tivesse sido pensado para o público brasileiro teria por exemplo um retrato mais detalhado dos conflitos regionais” no contexto da independência, segundo o coordenador.
Em 1822: Das Américas Portuguesas ao Brasil encontram-se ensaios de quatro cientistas sociais portugueses e quatro brasileiros. A saber: Alain El Youssef, Andréa Slemian, Isabel Corrêa da Silva, Isabel Lustosa, Jorge M. Pedreira, Miguel Figueira de Faria e os dois coordenadores.
Um estudo brasileiro divulgado esta semana indica que mais de metade dos portugueses e dos brasileiros não sabe que se assinala este ano o bicentenário da independência do Brasil. É surpreendente?
Não sou especialista em inquéritos de opinião atuais, mas convém não achar tudo assim tão excecional. Os norte-americanos também não fazem de ideia de muitos factos históricos.
Mas que leitura tem esta ignorância?
Do ponto de vista português, a rutura com o Brasil foi um acontecimento traumático. Foi vivido como tal à época. A sociedade portuguesa do fim do século XVIII e inícios do século XIX era uma espécie de contínuo com o Brasil, como nunca foi com África, aliás. Havia muito mais gente a ir para o Brasil, em termos relativos e por vezes também em termos absolutos. Mesmo no século XX, tirando um ano ou dois, o principal destino de emigração dos portugueses foi o Brasil, antes de ser França. A integração de Portugal com o Brasil, que termina em 1822 mas também continua depois a outros níveis, foi vivida como um acontecimento traumático, que parecia contrariar os sonhos imperiais que se estava a querer construir. A independência do Brasil encerrou de forma drástica um ciclo em que Portugal era um país Atlântico. Praticamente desde a Restauração [1640] Portugal mantinha as suas ligações europeias, mas tinha-as descentrado da Ásia para as concentrar na América.
Esse trauma ainda não foi ultrapassado?
É um trauma que está inscrito. Os portugueses andaram a alimentar um sonho imperial em África durante os séculos XIX e XX. Falar de uma independência não seria a coisa que desse mais jeito. Além disso, as pessoas que pontificavam na zona que fez a independência do Brasil, ou seja, o centro-sul — São Paulo, Santa Catarina, Porto Alegre, uma parte de Minas, menos o Rio de Janeiro — não tinham nenhuns vínculos com Portugal. O Brasil contemporâneo, a partir de meados do século XIX, já não tem uma ligação com Portugal como tinha antes, e a partir de meados do século XX é um Brasil que começa a olhar para os EUA.
Prevalece um certo ressentimento em relação a Portugal?
A minha opinião pode ir contra a corrente. Penso que esse ressentimento é em grande medida uma recriação feita a partir do momento em que o Brasil sente dificuldades. O Brasil é a terra do futuro desde há 80, 90 anos. Mas depois vive quebras nos indicadores de desenvolvimento e de igualdade social. Sempre que parece ir dar o salto, as coisas não se concretizam. Por isso, à esquerda e à direita, há um discurso de imputação de responsabilidades à herança portuguesa: a violência, a corrupção, o atraso económico, a desigualdade social.
Faz sentido?
Para quem o protagoniza faz sentido porque é uma forma de desresponsabilização: “A culpa não é nossa, a culpa é deles”. A resposta que o historiador sensato tem que dar é esta: há muitas heranças coloniais — a escravatura é uma delas, embora o Brasil pudesse ter terminado com ela mais cedo —, mas há muitos aspetos que não têm nada que ver com heranças coloniais. Por exemplo, a violência urbana no Brasil. É um fenómeno que não se relaciona com a violência rural, decorre de que o Brasil se urbanizou apenas no século XX, tal como Portugal. Eram sociedade agrárias, muito desiguais, muito pobres, que sofreram processos de urbanização muito rápidos e complexos. No Brasil, foi uma catástrofe porque concentrou nos centros urbanos uma enorme quantidade de população desenraizada que não foi absorvida. Ou seja, essas imputações têm fundamento em alguns casos, mas não noutros.
O ressentimento baseia-se num discurso ideológico?
Muito ideológico. É um discurso esquemático. Não permite distinguir entre continuidades indiscutíveis e mudanças que tiveram lugar nos últimos 200 anos. É como se disséssemos que Portugal não se desenvolveu por causa de D. João V ou por causa do Marquês de Pombal, que perseguiu os jesuítas.
Mas é um discurso que colhe.
Colhe e passa nas escolas, desde logo. É um discurso que cobre o espectro político brasileiro de uma ponta à outra. Basta ver que em relação à Guerra na Ucrânia há hoje no Brasil uma visão muito crítica da Europa e isso está presente em toda a cultura política do Brasil.
Será o equivalente ao ressentimento que os portugueses têm em relação a Espanha?
Fui formado nisso durante o Estado Novo, mas não acho que os portugueses tenham hoje um sentimento anti-espanhol comparável ao que havia no tempo em que andei na escola e em que fazíamos redações sobre a reconquista de Olivença. Aliás, a independência do Brasil, tal com a rutura de Portugal como a monarquia hispânica, são acontecimentos remotos. Não estamos a falar da relação entre Portugal e Angola, cuja rutura se deu no tempo de vida de muitos que ainda cá estão. Diria que a imputação ao remoto passado é, em muitas áreas, uma forma de gerar uma unidade coletiva contra um fantasma relativamente inócuo. Portugal não é um ator político muito temível. Dito isto, deixe-me acrescentar: é evidente que a sociedade portuguesa atual deveria assumir mais claramente o papel que os súbditos do rei de Portugal tiveram no tráfico de escravos. Isso é verdade, não nos era ensinado na escola e é um aspeto relevante da nossa História.
Porque é que emprega a expressão “súbditos do rei de Portugal”?
Primeiro, porque até à independência eram todos portugueses, cá e lá. Depois, porque a ideia de que o comércio de escravos foi todo ele triangular e centrado em Lisboa não é verdadeira. Houve, por exemplo, muito comércio direto entre Luanda e o Rio de Janeiro, ou entre a zona da Mina e Salvador da Bahia. Estou a dizer que os portugueses ainda não têm uma relação normal com o tráfico de escravos.
Sugere que Portugal, através de representantes eleitos, deve pedir desculpa ao Brasil e a África pelo esclavagismo?
Os pedidos de perdão sobre coisas passadas são de um domínio mais ou menos religioso. É uma transposição direta de práticas da cultura eclesial, sobretudo de igrejas protestantes americanas. Sou muito crítico de pedidos de desculpa por acontecimentos remotos, mas acho que os países devem incorporar na História e na memória as coisas que aconteceram. Sobretudo na cultura das pessoas de gerações mais recuadas estava muito pouco difundido o papel que os súbditos do rei de Portugal tiveram no tráfico de escravos. Foram dos maiores praticantes do tráfico de escravos. Ora, isso faz parte da História portuguesa, como muitas outras coisas.
Mas como é que não temos noção disso se sabemos que houve escravatura no Brasil e que Portugal era a potência colonial?
Essa consciência é recente. Não existiria há 40 anos. Nasci no tempo do Estado Novo, fui estudante nessa época, e não se falava nisso. É um dado que merece ser incorporado, não para qualquer ato de contrição ou para qualquer prática auto-punitiva, mas porque a memória histórica se deve fazer a partir de factos verdadeiros — discutíveis na sua interpretação, por vezes, mas comprováveis. Não posso dizer sobre o passado tudo o que me apetecer, posso é interpretar de maneiras diferentes. Nós, historiadores, esforçamo-nos por interpretar, mas também por apresentar evidências e indicadores que são sustentáveis.
Quer explicar um pouco melhor a ideia de que pedidos de desculpa por acontecimentos passados são do domínio do religioso?
Porque em última análise pedir desculpa pelo passado remete para a noção religiosa de pecado. É por isso. É uma transposição planetária de uma prática de certos países. Vivemos num mundo em que circulam os valores da liberdade, da democracia, e bem, mas também circulam modelos de comportamento que tendem a ser impositivos e uniformizantes. Tenho uma relação crítica com essa transposição impositiva à escala planetária. Não estou a defender um isolacionismo, estou a defender a liberdade de circulação de ideias. Mas devemos manter uma relação crítica com a circulação de modelos e fórmulas.
Falemos do livro. Há factos novos ou interpretações novas?
Aparece a ideia de que se criou o Brasil como entidade política antes de existirem propriamente brasileiros. É uma ideia que já tem algum tempo, não fui eu que a criei. Entre muitas outras. O livro sistematiza ideias atualizadas e de maneira relativamente legível para um público que se pretende amplo. Partimos de investigações antigas e também de trabalhos recentes que ainda não foram muito difundidos. A independência do Brasil começa de alguma maneira por um processo de independência de Portugal. A cabeça não estava em Lisboa, estava no Rio. Paradoxalmente é esse processo que vai indiretamente desencadear a independência do Brasil. Há outro aspeto do livro que é importante: o Brasil podia ter-se partido como se partiu a América espanhola. Isso não aconteceu desde logo porque existiu um princípio de legitimidade dinástica, que coincide com o princípio de legitimidade popular.
Faz sentido dizer que a independência do Brasil foi exemplar?
Não posso querer doutrinar. Não posso dar normas, sou historiador, interpreto. Foi uma independência diferente das outras. Melhor ou pior, podemos discutir. Ainda hoje há quem entenda que o sul rico do Brasil poderia ter-se separado do norte mais pobre. A componente monárquica contribuiu para essa independência diferente, como um princípio de legitimidade que subsistiu. Por outro lado, é preciso ter em conta que houve grandes conflitos entre regiões e dentro de regiões, houve tentativas republicanas, nomeadamente em Pernambuco. Um fator de que pouco se fala, e que terá pesado, foi que o corpo de oficiais, sobretudo o topo do Exército brasileiro, era quase todo nascido em Portugal. Isso talvez tenha contribuído para que não aparecessem tantos caudilhos como na América espanhola e a fratura no território não se desse. Isto que acabo de dizer não é ciência, é uma hipótese.
As Invasões Francesas levaram à fuga da família real para o Brasil em 1807 e criaram condições para a independência, o que é sublinhado no livro. Mas também se lê que “foi o processo constitucional português que acabou por precipitar a independência do Brasil”. Esta é uma ideia pouco comum.
Quando as tropas de Junot entram cá, já não há recuo possível e a coroa portuguesa, que tentava evitar a guerra por todas as formas, sai para o Brasil. Não é um acontecimento remoto de 50 anos antes, é um acontecimento concreto de 1807-1808. As coisas aceleram-se de maneira extraordinária. Em certa medida, o Brasil torna-se um centro político, e um centro político autónomo, entre 1808 a 1810. Deixa de ter de comerciar apenas com Portugal, os portos passam a estar abertos à navegação britânica. O estatuto colonial em termos de comércio, desaparece. Depois, tem todas as instituições de governo que existiam cá e para cúmulo a corte está lá. A alta nobreza acaba por voltar toda, mas o aparelho administrativo, judicial e militar fica lá montado, no Rio de Janeiro. Passa a existir o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Pode-se fazer um paralelo entre esta fase e aquela em que Portugal se tinha integrado em Espanha. O Rio de Janeiro de inícios do século XIX é equiparável a Madrid ou Valladolid de meados do século XVII: a cabeça da monarquia não está em Lisboa. Ora, do ponto de vista da cultura política, 1822 é também o ano da Constituição em Portugal. A mudança faz-se dentro de uma cultura política liberal, independentemente de D. Pedro ter pulsões mais ou menos autoritárias. A nação tem representantes e a imprensa tem o seu papel. A independência do Brasil é um momento de cultura liberal, no sentido político que o termo tinha na altura, o que tornava ilegítima qualquer apropriação autoritária.
Escreve que a imprensa reforçou a polarização no Brasil. Ou seja, com D. João VI do outro lado do Atlântico os jornais e os panfletos começaram a ter um papel mais relevante na vida pública, é isso?
Começa a chegar ao Brasil imprensa vinda de Londres, como começa a chegar a Portugal. Jornais que são impressos em Londres, em português e feitos para o mercado português, que não há maneira de impedir. Alguns até são patrocinados pela embaixada portuguesa em Londres com o objetivo de combater a imprensa crítica da monarquia. Há uma explosão da imprensa, é um momento muito importante do ponto de vista cultural.
Embora não houvesse muita gente a saber ler.
Exatamente, mas as que liam, liam muito. E há formas de difusão, como a leitura coletiva, etc. Claro que a maioria da população não era abrangida, claro que 30 ou 40% da população brasileira era constituída por escravos e havia muitos homens-livres pobres, mas há alguns momentos de participação popular no processo. Não era a política de massas do século XX, mas a participação na esfera política sofre um alargamento, tanto em Portugal como no Brasil, e isso ajuda à independência. Os favoráveis de um lado e do outro mobilizam-se. A imprensa é muito violenta, há um artigo no livro, de Isabel Lustosa, sobre isso. Já não é o Antigo Regime, é o nascimento da imprensa moderna, digamos assim. É um aspeto fundamental e também aqui se pode dizer que a imprensa no Brasil é uma marca da cultura política liberal.
Portugal esteve 300 anos no Brasil, de 1500 a 1822, e há 200 anos que não está. O tempo do domínio colonial prevalece. Esta comparação permite concluir o quê?
Que uma parte substantiva do que o Brasil é hoje, para o bem e para o mal, foi construída no período colonial. Isto inclui a continuidade territorial. A administração daquele território era bastante uniforme — o que se fazia à custa de ir tirando território às populações ameríndias, como é óbvio. Câmaras, capitanias, paróquias. Isto não se passava na Índia portuguesa, por exemplo. Note-se que uma grande parte do que se passa no Brasil… A coroa organiza o modelo administrativo, etc., mas uma grande parte do que acontece deve-se a quem para lá vai. Tanto o tráfico de escravos, como a emigração portuguesa, a maior parte do qual tem origem no Minho, não é a coroa que organiza.
A celebração do bicentenário incluiu a exposição pública do coração de D. Pedro IV em Brasília, que viajou desde o Porto. Houve alguma polémica. Como é que viu este episódio?
Com franqueza, o Brasil não tem muita vontade de se lembrar de Portugal. Os seus sonhos de grandeza não se compadecem com um voo tão pequenino. Acho que se deve evocar a independência do Brasil, que é um aspeto fundamental da História do Brasil e da História de Portugal. Não se entende Portugal se não entendermos que o Brasil fez parte de Portugal de forma intrínseca. Mas o episódio do coração não me pareceu muito feliz. Talvez tenha sido impressionante, mas não me pareceu uma invenção de ritual muito interessante.