Índice
Índice
Nuno Melo desfaz um tabu que se vinha instalando nos bastidores do CDS e entre alguns apoiantes de Francisco Rodrigues dos Santos: mesmo que a atual direção do partido consiga adiar as eleições internas do CDS para depois das eleições legislativas, não vão afastá-lo da corrida à liderança. “Para mim, é uma questão de princípio. É uma luta pela legalidade e pela decência. Quem pratica o que está a ser praticado no CDS não pode ser beneficiário no resultado daquilo que é profundamente perverso”, assegura.
Em entrevista ao Observador, gravada na cidade do Porto, o eurodeputado não é meigo nas palavras e acusa a atual direção do CDS de ter comportamentos dignos da “antiga União Soviética” ou da atual “Coreia do Norte”, apontando o dedo diretamente a Francisco Rodrigues dos Santos: “Todos sabemos que normalmente os ditadores só prevalecem quando os homens bons baixam os braços. E estamos a ter práticas de forte pulsão totalitária no CDS”.
Mesmo sem antecipar o desfecho da guerra jurídica que agora decorre, Melo promete continuar a tentar construir um programa alternativo. Por isso, e independentemente da realização ou não do Congresso, o eurodeputado revela nesta entrevista que vai organizar a convenção “É tempo de Construir”, em meados de novembro, onde pretende “juntar muita gente do partido e muitos independentes” para “discutir ideias e falar para o país”.
[Pode ver aqui os melhores momentos da entrevista de Nuno Melo ao Observador:]
Com a decisão do último Conselho Nacional, a sua candidatura acabou? Como é que pode ainda haver tempo de ter eleições internas antes das legislativas?
Eu, que sou um legalista, sabendo que aquela decisão é nula, quero acreditar que o Congresso se realizará a 27 e 28 de novembro e é nesse cenário que estou concentrado.
E se não houver eleições internas antes das legislativas antecipadas continua a ser candidato?
Se não houver eleições internas antes das legislativas a liderança do CDS não estará a perceber muito bem tudo aquilo que está a acontecer. Deverá refletir sobre se a simples vontade da manutenção de um poder que teme perder justifica um partido em polvorosa. O Congresso do CDS a 27 e 28 de novembro é um facto pacífico, estava marcado e foi cancelado a 24 horas das eleições dos delegados através de um SMS. O que fizeram foi dizer “bom, antes achávamos que venceríamos, agora não está a correr bem, afinal já não queremos Congresso”. As coisas não são assim num partido político e num partido fundador da democracia.
Mas se as eleições internas forem depois das legislativas mantém a candidatura?
Tenho essa intenção, embora esteja a fazer tudo para que este Congresso se realize. Vejam bem: António Costa está calado; Ventura está calado; toda a perturbação que está a acontecer no espaço político de centro-direita tem dois principais beneficiários, que são aqueles que Francisco Rodrigues dos Santos diz querer combater — o PS e o Chega. Estão calados porque percebem que o que está a ser feito no CDS é o maior disparate que poderia acontecer. O CDS está refém de uma metodologia que não é própria de um partido político. Pode ter sido vista noutras instituições, noutras agremiações, mas seguramente não num partido político com os pergaminhos e a história do CDS. O partido pacifica-se rapidamente se o Congresso acontecer. Espero que aquelas cabeças possam ser iluminadas pelo senso óbvio de quem tem de entender que está nas suas mãos a resolução deste problema.
[Ouça a entrevista a Nuno Melo na íntegra aqui]
Antecipando que o seu pedido de impugnação é aceite pelo tribunal do partido, o entendimento do Conselho Nacional de Jurisdição (CNJ) será o mesmo, a direção do partido pode sempre voltar a convocar um Conselho Nacional, voltar a adiar as eleições internas.
Pode fazer tudo o que quiser. Com este comportamento, o descrédito em que o partido tem sido lançado tem sido tão grande que há um momento em que a fuga para a frente deixa de ser solução. Porque depois aquilo que pode ser uma alternativa no país transforma-se num ativo tóxico. O país não gosta disto que está a acontecer e menos gostam os eleitores e militantes do CDS. A solução é muito simples: praticar a democracia. Estamos num fim de ciclo partidário e num fim de ciclo legislativo. O que é normal em qualquer pessoa que se queira de boa-fé num partido político é que no fim de dois ciclos que são coincidentes a liderança tenha oportunidade de escolher os protagonistas com que vai estabelecer a base programática que é aprovada no Congresso.
O grupo parlamentar.
Não faz sentido nenhum que o próximo líder do partido não tenha a possibilidade de fazer coincidir o grupo parlamentar com a sua liderança.
Ainda assim, há pouco dizia que se o Congresso for depois das legislativas admite ir a votos na mesma.
Sim, claro que sim.
Isso é absolutamente claro para si e está decidido na sua cabeça?
Para mim é uma questão de princípio. Não é pelo facto de se comportarem como se estão a comportar que me vão fazer desistir. Neste momento, já é uma luta pela legalidade e pela decência. Quem pratica o que está a ser praticado no CDS não pode ser beneficiário no resultado daquilo que é profundamente perverso. Estou aqui para lutar por aquilo em que acredito, independentemente do momento. Mas tenho a noção de que se o Congresso não acontecer o partido vai viver momentos muito, muito difíceis.
“O Presidente da República é um político muito antigo, muito hábil”
Pediu a Marcelo Rebelo de Sousa que “relevasse o golpe institucional que o CDS viveu”. O que é que pretende exatamente do Presidente da República?
Referia-me obviamente ao momento da marcação das eleições, apelando ao Presidente da República para que na marcação da data tivesse em conta o tempo necessário para que os partidos à direita estabilizassem as suas lideranças.
E se Marcelo Rebelo de Sousa não o fizer?
É uma prerrogativa do Presidente da República e teremos de adaptar as nossas decisões e o nosso comportamento. Eu preferiria que fossem na primeira semana de fevereiro ou mesmo na última semana de janeiro. O Presidente da República é um político muito antigo, muito hábil.
Falou com ele?
Ainda não. Mas está munido de todas as informações necessárias para que tome uma decisão.
Mas pediu uma audiência?
Pedi.
Já tem uma data?
Ainda não.
“Isto aconteceria talvez na União Soviética ou hoje na Coreia do Norte”
Descreve-se como um institucionalista. O Conselho Nacional é o principal órgão do partido entre congressos. Não tem legitimidade para tomar decisões?
Cumprindo a lei. Que foi o que não sucedeu.
Acabou de dizer que se houver um novo Conselho Nacional que cumpra as regras a decidir pelo adiamento das internas mesmo assim o partido ficará em polvorosa. Porquê, se nesse caso já haverá uma decisão legítima tomada pelo principal órgão do partido entre congressos?
Vamos começar por este Conselho Nacional. Do ponto de vista político, não é normal que estando em causa um adiamento do Congresso que tem dois candidatos declarados, o presidente do Conselho Nacional silencie opositores e privilegie um candidato. Francisco Rodrigues dos Santos teve todo o tempo que pretendeu e falou as vezes que quis; a mim disse-me “tem três minutos”, sobrepôs a sua voz à minha, desligou o microfone. A legitimidade parte do cumprimento de regras. Aceito a decisão de um órgão, desde que não seja aparente.
Já explicou isso. Mas se os conselheiros entendessem que as coisas não tinham sido feitas de forma normal e aceitável poderiam ter votado a seu favor?
Sim, se eu tivesse tido oportunidade para justificar, entre outras coisas, porque é que acho que o Congresso se devia manter. Se no tribunal não existir contraditório e for silenciada a posição da contraparte, isso não é um tribunal, é outra coisa qualquer. Aconteceria talvez na União Soviética ou hoje na Coreia do Norte. Num partido como o CDS não pode acontecer. Depois há a questão da legalidade: não é a 24 horas da realização das eleições [de delegados ao Congresso] que se envia um SMS a convocar o Conselho Nacional sem justificar nenhuma razão de urgência.
A razão de urgência presumo que seja a iminência de eleições legislativas antecipadas.
Nas questões jurídicas não pode presumir uma cosia dessas.
Temos aqui um conceito indeterminado que permite a antecipação das tais 48 horas.
O conceito não é indeterminado. A urgência tem de ser justificada. Não é incumprir 24 horas e não dizer porquê.
Insisto: havendo um Conselho Nacional convocado com as tais 48 horas que decida adiar o Congresso, aceita essa decisão?
Deixe-me recordar outra coisa: há uma decisão jurisdicional que foi presente ao presidente do Conselho Nacional a tempo, mas que este não a comunicou aos conselheiros e que obviamente também poderia ter influência no resultado.
Não está a responder à pergunta.
Se houver outro Conselho Nacional a questão política continua a ser a mesma: o partido foi convocado para um Congresso.
Portanto, não acha legítimo que o Conselho Nacional adie o Congresso.
Politicamente não resolve o problema. Mesmo que nesse momento diga “fico quieto, não faço mais nada”, o partido já não aceita isso pacificamente, mas, pelo menos, não tínhamos um simulacro. Mas insisto: este Congresso dá tempo para tudo. Só não se realiza se o Conselho Nacional, que é obviamente comandado pelo presidente do partido, tomar uma decisão dessas.
Acha que os conselheiros nacionais são comandados pelo líder do partido?
Não é isso que acho, mas há uma coisa que sei: num universo de duzentas e poucas almas, 60 conselheiros são pessoas da escolha direta de Francisco Rodrigues dos Santos.
Só percebeu isso agora? Isso é uma decisão institucional do partido, ter um Conselho Nacional com tantas inerências.
Pode querer ser ingénuo a esse ponto, concedo-lhe essa oportunidade.
Sempre foi contra essa regra no partido ou só a descobriu agora?
Vamos correr os 300 metros livres e dou-lhe 60 metros de vantagem. Solta a pistola, tenho de percorrer esses 60 metros e, ainda assim, ganhar a corrida. Tenho que aceitar que as coisas assim sejam.
Essas regras já existiam antes.
Sim, mas é aquele conceito de guerra justa. Quando está em causa um Congresso de liderança e uma moção estratégica tem de se perceber se isso é leal. Um partido institucionalista não salvaguarda apenas as aparências. Há dois candidatos declarados e um deles, por seu impulso, diz: “Ah, agora já não quero. Vou embora”. Acha isso normal? Eu não acho.
Consegue perceber que grande parte da direção atual queixa-se de ter sido vítima de práticas semelhantes no passado. Em direções anteriores, também havia inerências no Conselho Nacional que jogavam a favor do líder em funções.
Nunca no passado se decidiu o adiamento de um Congresso com candidatos anunciados. Nenhuma direção anterior tentou sequer alguma coisa parecida.
Foram adiados congressos em alturas sensíveis do partido, nomeadamente depois da crise do ‘irrevogável’.
Foram adiados congressos sem dois candidatos. É uma coisa completamente diferente, não é comparável.
São momentos importantes para a vida interna do país.
Não é comparável. E recordo que, em 2001, quando António Guterres se demitiu, Paulo Portas não adiou o Congresso. Antecipou-o e disse ‘quero legitimar-me na estratégia, na liderança e quero que o partido saia mais forte’. E nunca a direção nacional organizou conselhos nacionais pela internet, a ligar e a desligar o microfone quando lhe convinha. É um bocadinho como o lápis azul do tempo da outra senhora. Se o Conselho Nacional fosse presencial isso não acontecia.
Há dois pontos que a direção do CDS tem usado para negar a sua versão dos factos. Primeiro, que um dos membros do Conselho de Jurisdição, Otilia Gomes, é sua colaboradora, próxima de si e entrou, inclusive, na sua lista à distrital do CDS/Braga. Em segundo, a direção do CDS diz que não reconhece a decisão do tribunal do partido porque nem sequer foi feito o contraditório.
Mal seria que um arguido num tribunal dissesse perante uma sentença ‘não quero saber, não faço conta disto’. Alguém que se diz institucionalista, como é o caso do presidente do Conselho Nacional, não pode ser o primeiro a negar a decisão legítima do CNJ.
Deveria ter parado imediatamente os trabalhos?
Como é óbvio.
Sobre a relatora desse parecer, Otília Gomes…
O que se permitiram dizer sobre ela é uma enormidade e uma indignidade. É uma das melhores juristas que este partido tem e, além disso, estamos a falar de um partido onde todos nos conhecemos. No CNJ, todos nós temos uma ligação a alguém. Chamo-lhe atenção que o Francisco Rodrigues dos Santos tinha maioria no CNJ e perdeu. E se tivéssemos que atacar a imparcialidade de alguém, podia falar de Miguel Alvim [também membro do CNJ] que no Observador escreveu uma artigo de opinião a chamar-me de tudo, a dizer que apoiava o Francisco e a dizer que as pessoas que estavam comigo eram indigentes que caminhavam para o desemprego. Uma pessoa que assim se pronuncia não tem nenhuma imparcialidade ou credibilidade.
“Eu fico e luto. Sairei deste partido se me quiserem expulsar”
Adolfo Mesquita Nunes e António Pires de Lima, entre outros quadros do partido, anunciaram a sua saída do CDS, apesar de ter apelado a que os militantes não saíssem e que o acompanhassem na sua luta. Isso quer dizer que estas pessoas não olham para si sequer como uma possível solução para o partido?
Quer dizer que acham que o partido chegou a um ponto em que, por estas sucessivas formas de violar a lei, por estes procedimentos que esmagam a democracia, não se sentem em condições de conviver com isto. Respeito, mas lamento. Lamento porque, quando falo de uma pessoa como António Pires de Lima estou a falar de alguém que, de tão extraordinário gestor que é, qualquer empresa deste país gostaria de contar com ele num conselho de administração. O Adolfo Mesquita Nunes é reconhecidamente um dos quadros muito valiosos deste partido. Cada uma destas pessoas que saiu acrescenta na sua diversidade muito ao CDS. E, quando cada uma delas sai, não é apenas uma que sai — são muitas outras que vão atrás.
Mas o ponto é: não o veem a si como tendo a possibilidade de dar a volta ao partido.
Não, trata-se de cada um ter a sua opinião. Há pessoas que simplesmente atiram a toalha ao chão e dizem: “Para este peditório já não quero”. Não tem a ver com saber quem vai ser oposição ao Francisco, se é o Manuel, se é o Zé ou outro. Estão a ver o que está a acontecer e já não suportam isto. Porque o CDS não é uma associação de estudantes. E são pessoas que foram ministros, que são quadros de empresas, veem-se de repente a ser apoucadas, veem todos os procedimentos a serem torturados, veem a lei a ser violada, veem o espetáculo que está a ser dado e acham que, pela dinâmica que está a ser criada, isto se calhar para o futuro é muito difícil. Acontece que eu sempre quis lutar contra as ilegalidades e tenho um forte sentido de justiça. Portanto, não aceito que quem assim procede seja no final, sem luta, o beneficiário daquilo que só pode ser perverso. Respeito a decisão, mas o meu apelo é outro — e, se depender de mim, vou estar com cada uma dessas pessoas para as convidar a voltar. Se virão ou não, não sei, mas vou convidá-las porque fazem falta. E deploro a desvalorização que, do lado da direção, é feita em relação à saída destas pessoas. E até algumas publicações nas redes sociais de membros desta direção que aplaudem e se regozijam com as saídas que dizem ser das pessoas que fizeram do CDS um partido “fofinho”. Portanto, queremos é ter um partido troglodita? Deploro tudo isso.
Mas a verdade é que o partido tem uma longa tradição de saídas, até de presidentes. O próprio Paulo Portas lembrou esta semana que só três é que não deixaram o partido. Porque é que essas saídas — de Freitas do Amaral ou de Manuel Monteiro — não foram encaradas como um prenúncio de morte do partido, mas estas são?
Cada um escolhe os exemplos que quer. E os meus exemplos são os de quem ficou, como o dr. Paulo Portas e o professor Adriano Moreira — de quem José Ribeiro e Castro dizia que era a televisão a preto e branco. Também ouvi isso agora em relação a mim. Essa conversa da televisão a preto e branco mostra uma inspiração castrista do atual líder.
Acha que José Ribeiro e Castro é um inspirador de Francisco Rodrigues dos Santos?
Não sei se é, mas quando as expressões são clonadas tendo sempre a ver nelas alguma coisa.
Mas o ponto é: se o CDS sobreviveu à saída de Freitas do Amaral, de Manuel Monteiro e de vários outros, porque é que não há de sobreviver à saída de Adolfo Mesquita Nunes e de António Pires de Lima?
Não tenho pretensões a Zandinga na política portuguesa. Por isso, não lhe posso dizer aquilo que o CDS vai ser. Mas há uma coisa que sei: é que a saída de pessoas assim transforma conjunturalmente a vida do CDS numa realidade que é muito mais difícil do que se ficassem.
No seu caso, há algum cenário que o leve a sair?
Eu fico e luto. Sairei deste partido se me quiserem expulsar. Mas a minha decisão é ficar e lutar por aquilo em que acredito.
Mesmo perdendo?
Perdendo, ganhando… Já perdi tantas vezes, já ganhei outras tantas. Aliás, sabe que no CDS perde-se mais do que se ganha, as coisas são assim. Todos sabemos que normalmente os ditadores só prevalecem quando os homens bons baixam os braços.
Francisco Rodrigues dos Santos é um ditador?
Acho que estamos neste momento a ter práticas de forte pulsão totalitária no CDS. Esta promiscuidade entre diferentes órgãos para que se legitime, com violação de regras, o adiamento de um Congresso que os próprios quiseram, numa disputa que a dado passo acharam que podiam perder, é uma pulsão manifestamente totalitária. Deram-me o prazo mínimo, esmagado, com um Congresso feito, disparatadamente a par do que seria o Congresso do Chega, depois de o líder ter feito campanha com os meios do partido, dando a volta ao país de Norte a Sul, achando que eu não conseguiria fazer a campanha que era necessária. Azar nítido: comecei a dar a volta ao país, a ver salas cheias. No Porto, falava e via pessoas com lágrimas nos olhos, mostrando um amor ao partido que há muito tempo não se sentia. Em Lisboa, a mesma coisa, salas cheias. E em Coimbra também. É evidente que isto teve uma consequência. E a consequência foi o patamar seguinte: a conversa do “interesse nacional”, que é uma conversa de faz-de-conta, porque quem queira relevar o interesse nacional não promove um ato que deixa o dr. António Costa e o Ventura em grande satisfação. Não está em causa o interesse nacional — está em causa o poder pessoal.
Se vencer as eleições internas, vai fazer algum esforço de consensualização…
Fazem todos falta, desde que estejam de boa fé.
E espera que Francisco Rodrigues dos Santos faça o mesmo consigo?
Não tenho de falar pelo Francisco, falo por mim. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, já dizia o Ortega y Gasset.
“Assunção Cristas não se sentia confortável com esse discurso mais à direita”
Uma das suas circunstâncias é ter sido cabeça de lista do CDS nas Europeias de 2019. Foi o pior resultado de sempre do partido. Porque é que acha que, sendo a pessoa que teve a maior derrota de sempre, é também a pessoa ideal para recuperar o partido?
Podia dizer isso do Paulo Rangel também, quero ver se lhe perguntam isso quando fizerem uma entrevista. Mas eu por acaso não concordo nada com isso.
Mas na noite das eleições, disse: “Eu não transformo as derrotas em vitórias”. Agora está a transformar.
Se tive esse resultado em 2019, também tive o melhor resultado em 2009. A pessoa é a mesma. Houve qualquer coisa, então, que mudou entretanto.
Muita coisa: passaram-se mais de dez anos.
Não se passaram só mais de dez anos: alteraram-se protagonistas, houve uma dinâmica partidária… Vamos ter esta discussão com alguma boa fé.
O senhor é que disse: “Eu não transformo as derrotas em vitórias”.
Naquele momento, íamos para eleições legislativas e a Assunção Cristas ia ter um desafio muito difícil. Era minha obrigação, e repetiria hoje, chamar a mim todas as responsabilidades…
… mesmo não acreditando nisso?…
… salvaguardando quem é líder e vai a votos, para lhe dar as melhores condições para ter um bom resultado.
Vai responsabilizar Assunção Cristas pela crise dos professores e pelo resultado das europeias?
Nada. Zero. Nunca diria isso, seria um disparate.
Paulo Rangel disse isso sobre Rui Rio.
Mas eu não faço. São episódios que não ajudaram, mas que não foram determinados pela Assunção. Mas às vezes, nas dinâmicas das campanhas acontecem coisas boas ou más. Há uma coisa que sei. Em 2009 elegemos dois eurodeputados, quando se dizia que não íamos eleger nenhum. Em 2014, o eurodeputado que perdemos foi em coligação com o PSD. E, em 2019, o eurodeputado que o CDS tinha, manteve-o.
Perdeu foi muitos votos.
Perdeu alguns votos, sim. Só que isso acontece num momento em que o centro direita já se está a reconfigurar. Se hoje estivéssemos aqui a falar de Francisco Rodrigues dos Santos com 6%, que foi a percentagem que tivemos nessas eleições, não estaria aqui.
Então, aquele resultado foi uma vitória?
Não estou a dizer que foi uma vitória. O que estou a dizer é que neste momento estamos a falar em 1%, com o Francisco.
Presumo que esteja a falar em sondagens.
Não, por acaso, estou a falar do resultado nas eleições autárquicas nos sítios onde fomos sozinhos.
Mas não pode fazer as contas assim — está a deitar fora todos os votos do CDS nos sítios onde teve coligações com o PSD. Não há comparação possível entre os dois números.
É a sua opinião, não é a minha.
Está a comparar realidades distintas.
O que é mensurável é o que é expresso em urna. Se hoje tivéssemos um partido com a expetativa de ter 6% dos votos, eu não estaria aqui. Sabe porquê? Porque o partido nas eleições seguintes teve pouco mais de 4%. Nas autárquicas, onde fomos sozinhos, com a nossa mensagem e o nosso símbolo ficámos com uma média de 1,4% e, em 70% dos casos, atrás do Chega, e em alguns atrás da Iniciativa Liberal. Isto é um sinal. E não é porque uma liderança estabelece num papel com o dr. Rui Rio que, onde formos coligados, valemos 20% desses votos, que a realidade se altera. Se fossemos a votos sozinhos, é de acreditar que estaríamos mais próximos dos 1,4% que tivemos em urna do que desses 20%. E há outra questão em relação às coligações. Qual é o meu interesse em dar os meus votos e o símbolo do CDS ao PSD para no fim eles terem todos os vereadores, como aconteceu em muitas das coligações autárquicas?
Mas o senhor também participou em coligações autárquicas.
Pois participei. Mas a grande diferença é que eu sou presidente de uma assembleia municipal em Vila Nova de Famalicão há vinte e tal anos e lá o vice-presidente da Câmara é do CDS, temos outro vereador, temos um grupo municipal muito relevante e temos vários presidentes de junta. Ali, nós partilhamos o poder e sedimentamos o eleitorado — e o PSD percebe que precisa realmente de nós. É muito diferente ir a um concelho onde damos o nosso símbolo e o nosso voto ao PSD e no final do dia o PSD tem os vereadores todos. Em alguns sítios estamos a dar todo o poder ao PSD. Se eu mandasse no partido, não faria nenhuma coligação com o PSD em que o vereador da vitória não fosse nosso.
Fez parte de uma direção que teve o pior resultado de sempre em legislativas do CDS. Já percebeu o que correu mal?
Já — e não fujo a essa resposta.
Deixe-me só acrescentar um dado: tem dito que o CDS deixou de ser o partido dos contribuintes, dos reformados, da lavoura. Mas foi essa mesma direção que quis transformar o CDS num catch-all party, que deixou de falar para nichos.
Felizmente, já fiz parte de várias direções. Pode ir só buscar as más, mas também pode escolher uma ou outra das boas.
Esta foi a última direção de que fez parte.
Sim, mas uma vida não é feita de um momento, é feita de um balanço. Mas não quero fugir à pergunta. Tenho uma enorme admiração pela Assunção Cristas e acho que até podia ter sido um caso sério da política portuguesa. E acho que um dos problemas dela foi a extraordinária vitória que teve em Lisboa, porque criou em muitos de nós a ilusão de que poderíamos de facto disparar dali, em eleições legislativas, para resultados mais ou menos equivalentes. O que é que aconteceu? Nas eleições europeias, quando o dr. Rui Rio assumiu que o PSD era um partido estritamente de centro, e bateu sempre na mesma tecla, significou que se nós não ocuparmos o espaço político à direita ele fica disponível para outras realidades quaisquer — no caso, a Iniciativa Liberal e o Chega. O que eu quis fazer nas Europeias foi ocupar o espaço político à direita. E, de resto, fui muito zurzido por isso. O facto é que, na altura, havendo já uma recomposição partidária à direita, conseguimos perder pouco mais de 1% dos votos em relação às outras eleições.
Então quem estava errada era Assunção Cristas e não Nuno Melo?
Não, são diferentes perceções. Se for presidente do CDS, vou fazer como eu entenda, com as pessoas que estiverem comigo. Nessas eleições, quis colocar o partido à direita. E a Assunção não se sentia confortável com esse discurso mais à direita. E essa dicotomia criou um problema de mensagem. Quanto às legislativas, a opção do catch-all party é de uma direção com a qual sou solidário, mas que acho que parte muito do resultado eleitoral em Lisboa. Houve quem achasse que, por causa daquele resultado — que também teve razões conjunturais, por causa da candidatura do PSD e pelo facto de o PSD estar muito dividido — criou essa ilusão. Isto é um bocado como estar a ver o jogo depois de conhecer o resultado, mas a direção, onde me incluo, achou que, fazendo um discurso um bocadinho mais generalista, a coisa resultava. Acredito que agora temos que recuperar os quadros e dizer que neste momento o partido não teme as ideias que o CDS deixou escapar. E queria deixar-lhe uma novidade importante: por isso mesmo, independentemente do que aconteça em relação ao Congresso, vamos fazer a Convenção “É tempo de construir”, onde vamos juntar muita gente do partido e muitos independentes. E vamos discutir ideias e falar para o país.
Em relação às ideias, no discurso de lançamento da sua candidatura falou de algumas delas e disse isto: “Alguns ficarão chocados, mas é mesmo o que eu penso: lutar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres”. No CDS, há pessoas que ficam chocadas quando alguém defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres?
Não, mas é uma questão de perspetiva. Há pessoas que, no espaço político do centro-direita, e sou um deles, contestam uma lógica de quotas que tenta fazer uma transformação sociológica com base administrativa.
Mas, na sua cabeça, no CDS há pessoas que ficam chocadas com a igualdade de direitos entre homens e mulheres?
Quero trazer para o CDS aquilo que são temas que não podemos deixar à esquerda. A causa dos salários: ninguém vive com dignidade com o salário mínimo em Portugal.
No discurso também disse esperar que ninguém ficasse chocado por defender salários condignos. Estava a temer que alguém no CDS ficasse chocado, é isso?
Não, o que acho é que nos habituámos à ideia de que há determinadas causas que só podem ser tratadas pela esquerda. Porque, preferencialmente, o centro-direita vai a outras. Ora, há causas que eu entendo que não são ideológicas, são causas de civilização. O CDS não tem de ser um partido que, por impulso pavloviano, está apenas do lado do patronato. Não: temos que defender condições de vida dignas no trabalho, com salários possíveis mas a crescer, para que a sociedade seja mais justa. Não devemos deixar este discurso à esquerda. No CDS pode haver pessoas habituadas a ver a defesa destas causas normalmente à esquerda. E nós temos de resgatar estas causas.
[Veja aqui a entrevista a Nuno Melo na íntegra:]
Agradecimentos: Sheraton Hotel & Spa Porto