As memórias em forma de fotografia estão coladas numa parede. A descrição que acompanha a moldura de purpurinas diz que são registos do ano letivo 2022/23, mas a superfície vetusta em que se agarram são de um edifício que não vai para novo. Visto de fora, ninguém diria. O amplo pátio é rodeado pela fachada amarela que nos dias de sol faz alguma sombra à raiz das árvores que se posicionam ao centro e cresceram mais do que a altura do telhado. Só uma das quatro é que mede tanto quanto a garotada do Colégio Nuno Álvares que faz daquele espaço o recreio como, um dia, também o fez Nuno Tavares.
Não só de fotografias se fazem aquelas paredes. Um desenho de Bach ergue-se num dos corredores que Nuno Tavares conhece de ginjeira e que levam à Sala 2 da ala musical. É recebido pela professora Sofia Gomes que o desafia a tocar violoncelo. Sofia pede um tempo. “Vou buscar um para o artista”, diz. O tempo que levou entre sair da sala para ir buscar um instrumento com as medidas certas para Nuno e voltar foi suficiente para perder o antigo aluno do colégio. Nuno agarrou-se ao piano. Foi desafiado a fazê-lo e não resistiu. “Acho que ainda sei qualquer coisa”, afirma orgulhoso. Ao contrário do que acontece no futebol, ali gosta de se sentar no banco. Confortável diante do piano, começa a teclar All of Me de John Legend. Quando uma eventual voz que o acompanhasse deveria cantar a parte da letra que diz My head’s under water // But I’m breathing fine, está já a fazer olhinhos às teclas e a inclinar a cabeça como um profissional.
Sofia regressa com o violoncelo na mão. Quando volta a entrar na sala, a professora faz um ar desiludido por Nuno não ter resistido ao piano. Então, não faz nada mais nada menos do que acompanhar com as cordas o som que vai ouvindo a sair das teclas. Nuno engana-se. “Professora, qual é esta nota?”. Recebe uma resposta à altura. “Faltaste a algumas aulas, estás a ver o que o futebol te faz?”. Riem-se com a denúncia. A professora defende-o de quem observa. “Primeiro é o aquecimento…”.
Para os alunos do local de ensino pertencente à Casa Pia de Lisboa é dia de usar farda. Sabendo da visita do antigo aluno, agora com 23 anos, vestem as camisolas do Marselha com “30, Nuno” nas costas. “O Nuno é uma das referências para estas crianças”, revela José Lage, coordenador do curso básico de música, que acompanhou o percurso do internacional português Sub-21 na escola. Ele começou aqui na creche. Cresceu aqui, tem familiares aqui. Toda a gente fala no Nuno. Na questão da música então, é sempre… Uma figura de televisão, uma figura do futebol, é uma referência para os miúdos todos. Toda a gente o admira. Quando vem cá é sempre uma enchente”.
Nuno Tavares é rodeado mal chega à escola naquela que é uma das três, quatro visitas que faz por ano à instituição. Cumprimenta todas as crianças que o interpelam, mas guarda os calorosos abraços para os antigos professores que retribuem com entusiasmo. Uma das primeiras paragens de Nuno é na Sala 7-M. Uma turma de cerca de duas dezenas de alunos enchem as mesas onde estão arrumados livros com letras garrafais na capa: “História 8.º ano”, lê-se. No dia em que Nuno visita o colégio, a sala está cheia, ninguém falta às aulas. Rosália Palhes ignora por momentos os atuais alunos para dar atenção a um velho conhecido. Quando ia abandonar o espaço em frente ao quadro, onde se esteve alguns minutos à conversa com Rosália, um curioso pergunta-lhe. “Quantas vezes chumbaste?”. E responde: “Chumbei uma, depois tive a sorte de apanhar esta professora”.
Percebendo o interesse das crianças, retém-se mais um pouco e, desta vez, é ele que lança uma pergunta. “Quem é que daqui quer seguir música?”. Levantam-se meia dúzia de dedos. “O violoncelo é o melhor que podem ter na música”, provoca, saindo em defesa do instrumento ao qual dedicou mais tempo a aprender a tocar. Quando sai da sala em definitivo é atingido por um elogio: “Ganda golo”. Fixou em aberto se o aluno se referia ao único que o lateral marcou na equipa principal do Benfica, ao que colecionou no Arsenal ou a um dos seis que registou esta época no Marselha.
“O Nuno começou na música com seis anos, mas não no violoncelo. Começou a tocar um instrumento de sopro que era o bombardino”, comenta José Lage. “Foi um excelente violoncelista que podia ter continuado os seus estudos de violoncelo se quisesse, mas ele quis escolher o futebol”. Na Sala 2, onde tocou em dueto com a professora Sofia Gomes, Nuno Tavares tinha aulas individuais de violoncelo, embora, de forma menos intensiva, também desse uma mãozinha no piano. “Era concentrado naquilo que fazia. Por isso, é que atingiu os níveis que atingiu em violoncelo, porque tinha essa característica que é a concentração e o saber trabalhar em grupo por causa da orquestra”, explica José.
Nuno só deixou o Colégio Nuno Álvares quando já estava há um ano na formação do Benfica. Se ao nível do futebol o caminho teve várias curvas, a música manteve-se uma constante. O jogador começou a jogar no Casa Pia e acabou mesmo por ter uma experiência no Sporting. O que parecia estar a ser um desenvolvimento na projeção de uma possível carreira de futebolista teve consequências ao nível das notas (das avaliações, não musicais), relembra José Lage. “No 6.º ano estava no Sporting, mas a mãe não gostou da prestação escolar dele e tirou-o e voltou para o Casa Pia. No 8.º, 9.º ano, foi para o Benfica. Aqui, as aulas começam às 9h e acabam às 18h. Tivemos que criar um horário especial para ele. Tivemos aí alguma flexibilidade em termos de horário e ele cumpriu sempre”.
“Sempre tive jeito”, diz Nuno Tavares colocando a modéstia num saco. “Até aos dias de hoje, ainda pratico sempre que posso. Deixa-me confortável”. E entre o futebol e a música… não dá para escolher. “É juntar o útil ao agradável. Quando não estou a jogar à bola, para me distrair, pego no piano ou no violoncelo. Dá sempre para conciliar as duas coisas”.
Com apontamentos de gramática nas paredes, mas com a sala cheia pela presença de sete alunos e do professor Carlos Tony, o responsável por Nuno ter aprendido a tocar violoncelo, a pequena orquestra brinda-o com um arranjo de The Final Countdown dos Europe. Quando termina a música, o professor Carlos corrige algumas falhas dos jovens músicos. “Eu também era assim”, assumiu Nuno. Ao agarrar o arco e com ele manipular as cordas, mostrou que foi dia de voltar a ser.
Um passado musical, um futuro em aberto
“A mim deixa-me muito contente vir à minha escola antiga. Foi onde me formei e posso dizer que foi aqui que tudo começou em termos de escolaridade e de futebol. Foi tudo um só”. Se tudo começou no Casa Pia (instituição e clube), a verdade é que a carreira de Nuno Tavares soprou-o para longe. Esta época, o lateral esquerdo que vai disputar o Europeu Sub-21 com a Seleção Nacional esteve emprestado pelo Arsenal ao Marselha. Em França, o defesa fez 39 jogos e seis golos esta temporada.
O regresso à equipa de Mikel Arteta ainda é uma incógnita, mas da oportunidade na Ligue 1 saiu uma certeza. “O Marselha foi a melhor experiência que tive desde que sou profissional. Foi uma época bem conseguida da minha parte. Fico feliz por ter contribuído com golos. Foi uma época muito positiva para mim”.
O plantel da equipa treinada por Igor Tudor, juntou a Nuno Tavares outro português. Vitinha deixou o Sp. Braga em janeiro para rumar ao sul de França. “O Vitinha não entrou da forma que queria, mas tem melhorado treino após treino. Para o ano, vai vingar e vai estar mais confiante. Era meu dever integrá-lo no grupo da melhor forma por falarmos a mesma língua, por estarmos na mesma seleção e por sermos amigos. Para o ano, vai estar ainda mais confortável”.
Longe, mas atento, Nuno Tavares não perdeu o rasto à equipa com a qual conquistou uma Supertaça e que este ano conquistou a Primeira Liga. “O Benfica foi um justo vencedor. Não há dúvidas, liderou o Campeonato do início ao fim. Fui formado no Benfica também. Sempre que o Benfica ganha qualquer coisa, sinto-me contente, como é óbvio. O Benfica vive de títulos, por isso, se o Benfica ganha títulos, estou contente”.
Numa altura em que os encarnados, com a saída de Grimaldo, perderam uma solução no corredor esquerdo, o jovem de 23 anos admite não pensar se seria uma boa opção para Roger Schmidt ainda que considere um regresso ao clube da Luz no futuro. “Não foi uma opção que pus em mente sequer [jogar pela equipa de Roger Schmidt]. Joguei no Benfica, gostava de voltar a jogar no Benfica, como é óbvio. Todas as pessoas que saem do Benfica, quase de certeza que querem voltar ao Benfica, porque é uma grande instituição. Neste momento, estou focado no Europeu e é o mais importante”.